Joaquim Vieira foi responsável pela direção da série Figuras da Cultura Portuguesa do Século XX, integrada na coleção Fotobiografias do séc. XX, edição do Círculo de Leitores. Foram selecionadas apenas oito figuras, entre as quais Zeca Afonso.
O jornalista realizou ainda o documentário "Maior que o Pensamento", uma produção Nanook, de 2011, para a RTP, sobre a vida e obra de Zeca.
Quando fui para a universidade, o Zeca era uma referência
Conheci o Zeca no âmbito profissional. Durante uma entrevista coletiva - no sentido em que estavam vários jornalistas com ele - no Expresso. Penso que terá sido em 82 ou 83, quando já estava doente. Foi numa pousada em Óbidos, fomos lá almoçar e falar com ele. Posteriormente, exprimiu, através de um amigo comum, o desejo de se encontrar comigo na sua casa de Azeitão. Acabei por ir adiando e não corresponder a esse pedido. Depois fiquei arrependido.
O que conheço do Zeca não é tanto desse encontro de Óbidos, mas sim de, por um lado, ter acompanhado muito a sua obra antes do 25 de Abril. Tive contacto com a música do Zeca muito cedo, andava ainda na escola secundária. A sua música não era muito tocada nas rádios, devido à censura, mas existiam sempre os discos, portanto, havia a possibilidade de o ouvirmos. Lembro-me em particular do “Menino de ouro” e “Os Vampiros”, que teve um impacto enorme na altura e toda a gente conhecia. Percebia-se a quem se referia, pelo que a música causou um abalo extraordinário. Isto para aí nos anos 60. Quando fui para a universidade, o Zeca era uma referência. Organizavam-se concertos com ele, com músicas dele, foi editado na Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, que eu frequentava, um livro com letras das suas canções, chamado “Cantares”…
Reunia três qualidades: a poesia, a música e a voz
Os seus concertos eram sempre muito agitados, no sentido em que havia sempre um espírito de contestação muito forte. A música do Zeca era muito importante por isso, porque mobilizava as pessoas. Havia quem o criticasse por não ser demasiado direto e óbvio nas letras. O Zeca era um poeta e, portanto, fazia as coisas através de metáforas. Creio que isso só valorizava a sua obra, mas existia uma esquerda mais extrema radical que achava que ele devia ir mais direto ao assunto. A uma certa altura, instalou-se uma discussão acerca disso. Num concerto em Paris, no início dos anos 70, ele foi contestado por uma fação mais radical, por elementos de extrema-esquerda, e ficou sempre com essa marca, esse trauma, até ao fim da vida. Foram só meia dúzia de pessoas, ainda assim perturbaram o concerto. Mas esse debate fazia-se mais nos bastidores, fora do âmbito da sua atuação. Todos os seus concertos eram muito mobilizadores, porque todas as pessoas estavam lá com um espírito de contestação, de oposição ao regime, e o Zeca reforçava e criava laços. Nesse aspeto, o protagonismo, a importância que tem é, de facto, essa. Porque há várias maneiras de o fazer, mas ele fazia-o com um grande talento musical, e poético também. Reunia as duas qualidades. Aliás, reunia três qualidades: a poesia, a música e a voz. A voz do Zeca também era muito importante, era uma voz única, diferente. É através dessas três componentes, no fundo, que o Zeca se transforma naquilo que é. Temos um contemporâneo dele, que é o Adriano Correia de Oliveira, que tinha também uma voz fabulosa mas não compunha nem escrevia, cantava letras de outros e músicas também de outros. O Zeca nessa medida foi insuperável, ninguém chegou ao nível dele.
Representava, mais do que qualquer outro cantor, a oposição musical ao regime
Fui responsável pela direção da série Figuras da Cultura Portuguesa do Século XX, integrada na coleção Fotobiografias do séc. XX, edição do Círculo de Leitores. Foram selecionadas apenas oito figuras, e eu achei que o Zeca devia figurar entre essas oito. Ele tinha essa caraterística de um trovador, e era o aquele que tinha levado a arte da canção de protesto a um nível mais elevado.
O meu documentário “Maior que o Pensamento” surgiu a partir da fotobiografia. Achei incrível que não existisse nenhum documentário biográfico sobre o Zeca e que ele o merecia, como também merecia figurar na coleção das fotobiografias do século XX. Fiz a proposta à RTP, eles aceitaram. Era suposto ser um documentário de 60 minutos, mas a matéria era tanta, a sua vida foi tão rica, que, depois de recolher o material, percebi que não conseguia resumir a sua vida em apenas 60 minutos. Se o tentasse fazer, só diria banalidades. Para ir mais fundo, era preciso fazer uma coisa maior. Ficou com o triplo do tempo. E eles aceitaram, excecionalmente, porque não era comum a RTP fazer um documentário desta dimensão, em três partes. Ficou por praticamente o mesmo preço. O meu objetivo era, de facto, fazer aquilo como achava que devia ser feito. O documentário está dividido em três partes, que são três fases da vida do Zeca. Primeiro as Raízes, que tem que ver com a origem da carreira dele, como é que aquilo aparece, o que tinha feito antes, o contexto familiar. Há uma história de família muito complicada – a separação dos pais, com a ida dos pais e da irmã para Timor e a guerra, durante a qual os japoneses ocupam a ilha, com ele e o irmão em Coimbra sem saberem se os pais e a irmã estavam vivos. Depois, a segunda parte é a parte da Resistência, quando o Zeca toma consciência de que é contra o regime. Toma consciência disso já um bocado tarde, já se tinha licenciado. Uma viagem que faz a Angola, integrado na Tuna Académica de Coimbra, na qual viu o tratamento que estava a ser dado aos trabalhadores africanos, é um momento decisivo na formação da sua consciência. Essa parte da Resistência vai até ao 25 de Abril. Depois, a terceira parte é a parte da Liberdade, para a qual ele contribuíra antes de várias formas. As suas músicas eram muito ouvidas pelos militares em África, com gira-discos no meio do mato. E o 25 de Abril foi feito por militares, que tinham tomado consciência da situação também em parte por causa da música do Zeca. Tanto mais que fizeram questão que a senha para a saída das tropas no 25 de Abril fosse uma música do Zeca. Não era para ser o “Grândola, vila morena”, mas tinha que ser uma canção do Zeca. Foi o “Grândola…” apenas porque era das poucas canções dele que não estavam proibidas de passar na rádio. E isso quer dizer muito, quer dizer que, de facto, o Zeca representava, mais do que qualquer outro cantor, a oposição musical ao regime. Nessa medida, tem esse papel assegurado na História, precisamente por isso.
A maior dificuldade na construção do documentário, e lamento muito que assim tenha sido, prendeu-se com o facto de viúva não ter querido falar comigo. É pena, porque, certamente, teria dado um contributo muito positivo, complementar, em relação aos outros depoimentos dados para o documentário. Não falando ela, também não falaram os filhos dela e do Zeca. Mas creio que acabei por superar essa dificuldade. O documentário reuniu o contributo de muitas pessoas que conheceram o Zeca, algumas entretanto falecidas, como o José Niza, o pintor moçambicano Malangatana ou o intérprete de fado de Coimbra Luís Góis. Sendo a pessoa que foi, com uma presença pública constante a partir de certa altura, não foi difícil reunir a informação e os testemunhos. A questão está, às tantas, em lidar com essa massa de informação toda. Foi importante contar com os testemunhos de estrangeiros, porque dão um pouco a medida da projeção internacional do Zeca.
Depois do 25 de Abril o Zeca viajou um pouco por todo o mundo
A seguir ao 25 de Abril, sobretudo, o “Grândola…” teve um impacto internacional tremendo. E, embora fosse já conhecido antes do 25 de Abril, sobretudo em Espanha, depois do 25 de Abril o Zeca viajou um pouco por todo o mundo, se não em pessoa, pelo menos a música dele. Não foi a mais sítios por impossibilidade física. Ele tinha muitas solicitações para andar lá por fora. Era muito intenso. Aqui em Portugal, em 1975, existiam concertos todos os dias. E o Zeca participava nesse processo. Tinha aquela coisa contraditória de reclamar que as condições eram péssimas mas acabava por ir a todas. Não conseguia dizer que não, era um coração muito generoso. E embora fosse muito insistente, teimoso, acabava sempre por participar. Achava que, se não fosse, havia sempre alguma coisa que faltava. Era um dever que não tinha cumprido. Embora, curiosamente, haja quem diga que se terá cansado da sua própria personagem e, em certa altura, tenha querido ser outra pessoa, que não tivesse toda essa disposição e essa necessidade de responder a todas as solicitações. De facto, era algo esmagador, uma pessoa não tinha vida, estava praticamente ao serviço daquilo.
Deu a volta completa à música portuguesa, a esta música das canções
Vejo sobretudo o Zeca como um músico e um poeta extraordinário, fora de série, que enveredou pela canção de intervenção. A marca é essa, sem dúvida nenhuma. O Zeca é uma referência para os conceitos de liberdade, mas é na parte da música, da criação das canções, que creio que está a parte fundamental na vida do Zeca e daquilo que é a sua imagem.
O Zeca deu a volta completa à música portuguesa, a esta música das canções. Em votações que se costuma fazer sobre o disco mais importante da música portuguesa, esta música do universo das canções, costuma-se referir que é as “Cantigas de Maio”, mais do que qualquer outro. Isso representa, efetivamente, a revolução que acabou por introduzir na música. Se calhar, involuntariamente, não pretendia fazer isso. O “Cantigas de Maio” é um disco coletivo, com uma participação fundamental do Zé Mário Branco. O Zeca não sabia música, não conhecia uma única nota, e o Zé Mário tinha o curso do Conservatório, portanto, era um músico plenamente formado. Até esse período, o Zeca apenas cantava à guitarra e à viola. Na viola, o Rui Pato é muito importante para dar substância ao acompanhamento. Mas, de qualquer forma, era sempre viola e guitarra ou apenas viola, não passava disso. É o Zé Mário que introduz vários instrumentos, quase uma orquestra, que dá uma riqueza extraordinária ao álbum “Cantigas de Maio”. Depois continuou noutros. O Zeca tinha um talento extraordinário como melodista. Encarregava-se de criar a linha melódica, era quase um repentista, espontaneísta, mas ficava aí. Depois alguém tinha de fazer a base, o acompanhamento instrumental e tudo isso. E o que o Zé Mário cria é mais do que acompanhamento, porque a nível de instrumentação acaba por passar a fazer parte da essência daquilo que é a personalidade da canção. Como acontece no “Grândola…”, com o som dos passos sobre as pedras. É uma ideia do Zé Mário. Aí não há nenhum instrumento, é só o som dos passos. O contributo do Zé Mário é fundamental. De qualquer maneira, sem as melodias do Zeca esse álbum não existia.
Testemunho gravado pelo Esquerda.net via telemóvel a 20 de fevereiro de 2017.