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O Zeca passou a vida a dar-me conselhos

O encenador e diretor artístico Hélder Costa conheceu Zeca Afonso em Coimbra, na República do Prá-Kis-Tão. Já o último encontro teve lugar em Azeitão: foi “num dia absolutamente tétrico”, aquando da eleição de Cavaco Silva com maioria absoluta.
Hélder Costa durante uma edição dos "Encontros Imaginários".

Em conversa com o Esquerda.net, Hélder Costa recorda o momento em que conheceu Zeca Afonso:

“Conheci o Zeca em Coimbra, numa altura em que ele já não vivia lá mas ia lá muitas vezes. A primeira vez que o ouço era um caloiro, tinha acabado de chegar. Estava na República do Prá-Kis-Tão, eram três ou quatro da manhã quando comecei a ouvir um gajo a cantar. Os mais velhos disseram logo que era o Zeca. O Zeca subia, sozinho, a cantar com uma voz extraordinária. O primeiro impacto foi, portanto, de um romântico, algo relacionado com o romantismo do século XIX”

O convívio levou a que criasse “uma amizade entre a malta”:

“Ele tinha amigos em várias repúblicas, na Prá-Kis-Tão, nos Incas, na Rás-Te-Parta, e ia dormindo por lá. Foi-se criando uma amizade entre a malta. Dava-nos conselhos engraçadíssimos, como dizer-nos que devíamos comer bolos com creme porque alimentavam mais. O Zeca passou a vida a dar-me conselhos”

Hélder Costa assistiu, em Coimbra, à criação da “Menino d'Oiro”:

“Lembro-me perfeitamente que um dia estava na Rás-Te-Parta e o Zeca estava a dedilhar umas coisinhas, que haviam de dar origem à “Menino d'oiro”, e da alarvidade daqueles que diziam que aquilo era uma “mariquice”, todos indignados porque já não era o fado de Coimbra”

Segundo o encenador e diretor artístico da Barraca, o luto académico em Coimbra, em 1962, teve grande impacto no Zeca:

“Em 1962 temos o luto académico. As equipas de futebol e hóquei juntaram-se ao protesto. Entretanto, surge um convite para o Orfeon ir aos Estados Unidos. Muitos cederam. Chamaram o Zeca e convidaram-no a ir. Ofereceram-lhe molhos de notas, mais a garantia da edição de dois discos, e ele, que era o gajo mais bizarro, respondeu que não queria nada disso. E não fez. E ali há um salto dele. Dá-se uma radicalização. Era muito emotivo, muito sensível e não gostou da tentativa de o humilharem a esse ponto. E criou-se uma determinação de outro estilo”

Hélder Costa fala também sobre o momento em que Zeca canta na Música Velha, em Grândola:

“O Zeca começa também a cantar em Medicina, em Ciências, até que lhe disse que já chegava, que não podia cantar só para estudantes. Em 64 falei-lhe da Música Velha, em Grândola. Contactei a malta amiga que estava na direção para que o convidassem. Disse-lhes que arranjava um programa com o Carlos Paredes, que estava na moda, na primeira parte, e na segunda parte o Zeca. Estreou lá várias canções e, três ou quatro dias depois, enviou para a Música Velha, para o José da Conceição, meu primo, um poema escrito a tinta verde, que deu origem à “Grândola, Vila Morena”. A carta entretanto ficou tão bem guardada que nunca mais ninguém a encontrou”

Em 1967, Hélder Costa vê-se obrigado a fugir para Paris, após ter sido denunciado à PIDE, onde acaba por viver com José Mário Branco. No âmbito do Teatro Operário, de que era fundador, arranja três espetáculos no Luxemburgo para o Zeca. Além fronteiras, o convívio era regular.

Já em Portugal, e após o 25 de Abril, Hélder Costa convenceu Zeca Afonso a fazer as músicas da peça “Zé do Telhado”:

“Assim que a direita começou a tomar conta disto, saltaram os críticos musicais a dizer que a música do Zeca era horrível. E ele entrou em crise total. Quando eu escrevi a peça Zé do Telhado para a Barraca, em 1978, convidei o Zeca a fazer a música. Ele respondeu-me que não fazia mais música. Só quando disse que não ia fazer a peça, e depois de me acusar de fazer chantagem [risos], é que lá aceitou. Perguntou-me para quando era a peça e eu disse-lhe que queria estrear o mais depressa possível. Foi para São Francisco, onde alugava uma casa, ali ao pé de Grândola, e passado uma semana chegou com várias músicas. Acabei também por escrever algumas coisas, a letra de uma canção, uma coisa popular, um discurso... Colaborámos assim. Felizmente foi um êxito. Ganhámos o prémio do Festival de Barcelona. Ficou aí tudo maluco, tudo à rasca”

Depois da colaboração na peça “Zé do Telhado”, foi a vez de “Peregrinação”:

“Quando fiz a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, chamei o Fausto, que tinha começado a fazer música inspirada na Peregrinação, e convidei também o Zeca e o Orlando Costa. Foi um espetáculo incrível. O Zeca produziu coisas loucas, fantásticas. Foi quando escreveu a “Utopia”. Todos os dias chegava com mais música. A uma certa altura já tinha um espetáculo com três horas e tal. Até que chega todo satisfeito com uma música extraordinária. Eu, muito sério, disse que aquela música não entraria na peça. Ficou muito triste. Depois da estreia lá lhe disse que aquela canção era extraordinária, mas que não podia fazer um espetáculo de quatro horas. Era a Canção da Paciência, que é fantástica. Até arrepia! A canção entrou no próximo espetáculo”

O Zeca dormia muitas vezes em casa de Hélder Costa:

“Ele dormia várias vezes lá em casa. Um dia, estava eu a dormir e ouço: “Ó Hélder, Hélder!”. Levanto-me e estava o Zeca no fundo do corredor, de perna cruzada. Diz-me: “Este cão vai ladrar toda a noite?” [Risos]

O último encontro foi “num dia absolutamente tétrico”:

“A última vez em que estivemos juntos foi num dia absolutamente tétrico. Foi o dia em que o Cavaco foi a eleições e ganhou com maioria absoluta. O Zeca ligou-me para ir ver as eleições em casa dele em Azeitão. Disse-me que a Zélia não estava e que estaríamos sozinhos. Foi um dia inteiro em pânico. (…) Lembro-me que, quando a transmissão acaba, o Zeca diz-me: 'Ó Helder, e agora?”


*Hélder Costa - encenador, actor e dramaturgo, um dos membros fundadores do grupo de teatro A Barraca.

Testemunho gravado pelo Esquerda.net via telemóvel a 20 de fevereiro de 2017.

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