Como conheceu o Zeca Afonso?
Para já, é preciso dividir essa pergunta em duas. Eu conheci o Zeca sem o conhecer, numa altura em que nem sequer era um grande adepto da música portuguesa, quando era adolescente. E, de repente, o Zeca aparece com uma fulgurância enorme, com canções como “O menino do bairro negro” e “Os vampiros”, sobretudo, que é uma espécie de canção charneira, uma canção muito corajosa e de uma metáfora brutal. É uma canção que eu de vez em quando canto, que volto a introduzir no meu repertório, porque é realmente uma canção importantíssima. Esse foi o meu primeiro conhecimento, no sentido em que comecei a conhecê-lo sem o conhecer realmente mas passei a admirá-lo.
Depois só conheci o Zeca quando estive em vários países durante os nove anos em que estive lá fora, dos quais, quatro anos e meio em Paris. E aí conheci pessoalmente o Zeca, porque antes de partir nunca o tinha encontrado. Estivemos várias vezes juntos, também com o Zé Mário, e fui a vários espectáculos que deu. Era uma pessoa fascinante de conhecer ao vivo. Eu ia gravar, ou estava a gravar, o meu primeiro disco e lembro-me de o Zeca ir lá a casa e mostrar-me canções do seu próximo disco, e eu mostrar-lhe também canções. Ele dizia: “as minhas canções estão ultrapassadas, essas é que são”. E eu pensava: “ele é maluco, isto é eterno, não é ultrapassável”. Mas o Zeca dizia isso assim. Tinha muita graça.
Quais foram as experiências que mais o marcaram no convívio com o Zeca?
Já estou a falar disso. Primeiro foi antes do 25 de Abril, embora não tenham sido tantas vezes como isso, mas andámos muito, tivemos longas conversas...
Foram companheiros de muitas viagens...
Sim. E depois, sobretudo após o 25 de Abril, cruzámos-nos muitas vezes em concertos, não só naquela época do PREC em que as condições eram mais precárias, e o Zeca queixava-se muito delas também, embora, por outro lado, acorresse a todos os fogos. E fui encontrando o Zeca. Foi sempre alguém muito estimulante para mim. A última vez que o vi foi na casa dele de Azeitão, já pouco tempo antes dele morrer.
Qual é, para si, a maior herança que o Zeca deixou?
O Zeca deixa uma herança enorme. No Brasil, que é um país do qual eu conheço muito bem a música, houve sempre uma espécie de passagem de testemunho, existiram sempre gerações anteriores que inspiraram o que se ia fazendo. Quando chega a época do Chico Buarque ou do Caetano já tinha havido antes o Ary Barroso ou o Dorival Caymmi, e depois a Bossa Nova com o Jobim e o João Gilberto, etc. Ao passo que o Zeca é como se viesse do nada. De facto, não vem do nada, mas ninguém tinha feito uma coisa assim em Portugal. Começou pelo Fado de Coimbra, depois pelo que chamou Balada de Coimbra, e, entretanto, soltou-se, ao sentir que era uma amarra, e passou a ser um inovador nato. Ele sempre foi um inovador.
É essa fase que mais o marca em termos musicais?
Sim, claro. Porque a partir daí não pára. Ele depois também vai viver para Moçambique e regressa com a herança da música africana. Há coisas que têm muito carácter africano. O “Venham mais cinco” tem aquele toque africano de que ele aliás gostava muito. Há canções que são quase africanas de raiz, como a canção que fez para o MPLA. E, portanto, a importância do Zeca passa por ele ser tão inovador, tão inventivo na maneira como compunha e tão surpreendente. Era, de facto, uma personagem surpreendente, desarmante, porque tinha um humor muito ácido, era muito auto-crítico. Tinha muita graça no convívio quotidiano porque tinha um humor realmente espantoso, desarmante, como digo. Era uma personagem sempre inquieta, sempre atento e, muitas vezes, insatisfeito. Era uma personagem fortíssima e cheia de contradições que ele próprio explanava no seu comportamento. O que eu acho que é muito rico.
Recordo-me de ouvir um testemunho sobre o Zeca, creio que do Rui Pato, em que ele falava exactamente do seu humor...
É impossível fugir a isso quando se conhece o Zeca. Quem não conhece, pode achar que é uma pessoa mais séria, e é sério no seu trabalho, mas tinha também este tipo de humor completamente surpreendente e que era praticado às vezes em ocasiões um bocado insólitas.
O que é que o Zeca representa, actualmente, na música e na sociedade portuguesa?
O Zeca é sempre charneira importantíssima, embora as gerações mais novas não o conheçam tão bem. Nos anos 90 uma série de bandas fizeram um disco chamado “Filhos da Madrugada” e deram um espectáculo no Estádio de Alvalade. Mas é natural que haja uma geração que o conheça melhor, embora seja lamentável, porque ele é tão rico que pode inspirar gerações mais novas. De qualquer forma, há sempre gente que o vai conhecendo e o Zeca continua a ser importantíssimo na música portuguesa.
Queria também sublinhar que é pena - e é um bocado difícil atribuir culpas, a culpa é de muitos, porque a editora do Zeca nessa altura faliu, etc – que os seus discos e a sua música não estejam tão bem distribuídos como deviam estar, o que também desmotiva as pessoas. Não sou especial defensor, embora as minhas músicas estejam no Spotify, mas, que eu saiba, são ainda poucas as músicas do Zeca que estão nesse género de plataformas de streaming. Não se ouve o Zeca, não se vai querer ouvir. Ouçam o Zeca, vale a pena!
*Sérgio Godinho - Cantor, compositor, escritor (para adultos e crianças), ator (de teatro e cinema), realizador.