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A utilização de offshores em Portugal, o caso da ESCOM

A investigação parlamentar ao paradeiro do dinheiro das comissões do negócio dos submarinos, durante a comissão de inquérito à queda do BES, permitiu perceber o modus operandi das operações de fuga ao fisco com recurso a offshores, contado na primeira pessoa por um administrador da ESCOM. Artigo de Mariana Mortágua.
Foto de Marco Verch/Flickr/CC 2.0

Aconteceu em 2014, durante os trabalhos da Comissão de Inquérito à derrocada do império Espírito Santo. Luís Horta e Costa, antigo administrador da Escom,[1] tinha sido chamado à Assembleia da República para explicar, entre outras coisas, o negócio da venda de dois submarinos ao Estado português em 2004. A polémica centrava-se no paradeiro de 27 milhões de euros, pagos a título de comissão pelo fornecedor dos submarinos – a Ferrostaal – à Escom, intermediária da operação. Desses, sabia-se que 5 milhões tinham sido entregues aos membros do Conselho Superior,[2] e que 16 milhões foram repartidos por três administradores e um consultor da Escom. Faltava saber o que acontecera aos 6 milhões que ficavam a sobrar, e especulava-se sobre se teriam sido usados para corromper políticos ou membros das forças armadas portuguesas.

Foi em tom descontraído que Horta e Costa esclareceu a audiência. A ESCOM não tinha corrompido ninguém. O dinheiro em falta tinha ‘apenas’ sido gasto a montar um esquema de ocultação e fuga ao fisco: “quisemos dificultar o acesso a essa informação e esperar por uma oportunidade para regularizarmos os impostos com melhores condições fiscais”.[3] E lá explicou o que entendeu revelar, com a descarada tranquilidade de quem descreve uma ida ao supermercado.

A operação começou por ser montada através de uma empresa especializada no Brasil. À cabeça foram gastos 2,1 milhões de euros para abrir um fundo - Feltree Investment Fund – domiciliado no POBT Bank and Trust, nas Bahamas. Desse fundo saíram 13 milhões de euros para os administradores e consultor da Escom. Uma outra quantia, 8,25 milhões, foi transferida para a Afrexports, uma sociedade do Grupo Espírito Santo sedeada nas Ilhas Virgens Britânicas. Daí, 5 milhões foram transferidos para as contas do Conselho Superior do GES, no KBL Swiss Private Bank, em Genebra. Outros três milhões completaram a parte da comissão pertencente à Escom. O resto foi gasto, ao que se sabe, em despesas associadas ao negócio e à operação financeira, advogados e consultoras, incluindo 940 mil euros associados aos custos de um empréstimo junto do BES Cayman, que serviu para antecipar o recebimento da dita comissão.

Luís Horta e Costa esclareceu por fim como foi possível repatriar o dinheiro escondido: “há uma lei aprovada aqui na Assembleia da República, e foi essa que a gente aproveitou”.[4] Horta e Costa referia-se ao RERT I, o primeiro Regime Excecional de Regularização Tributária, aprovado em 2005, que estabelecia uma amnistia para quem repatriasse dinheiro oculto fora do país. Viriam a existir depois mais dois RERT, um em 2010 e outro em 2012.[5]


Notas:

[1] Empresa angolana então pertencente ao Grupo Espírito Santo.

[2] Órgão informal, composto por membros dos vários ‘clãs’ da família Espírito Santo e liderado por Ricardo Salgado.

[3] Expresso, 24.12.2014.

[4] Público, 15.01.2015.

[5] Adaptado do prefácio de Mariana Mortágua ao livro de Carlos Pimenta, (2018) Os Offshores do Nosso Quotidiano, Coimbra: Almedina.

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