O Estado sem Estado: offshores, paraísos na terra

Os offshores não são territórios sem Estado, onde prevalece uma espécie de mercado em estado natural. Pelo contrário, são zonas em que as leis e regulamentações foram cuidadosamente criadas para cumprir um objetivo específico, que é o de atrair fluxos financeiros estrangeiros. Artigo de Francisco Louçã e Mariana Mortágua.

22 de abril 2020 - 22:09
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Imagem de Wilfried Pohnke por Pixabay

O primeiro offshore conhecido na história localizava-se em Delos, na Grécia, onde, no século II (a.e.c.) o comércio estava isento de impostos e taxas. Depois disso encontramos as feiras francas ou cidades e portos Europeus da Idade Média, que beneficiavam de privilégios fiscais associados ao exercício de atividades comerciais específicas. Mais tarde, no século XIX, os estados de New Jersey e Delaware, nos EUA, criaram regimes fiscais próprios para atrair empresas sediadas noutros estados, sob o nome de zonas offshore. Nos anos 1920 do século passado, a Grã-Bretanha consolidou o conceito ao estabelecer uma diferença entre o local do registo da empresa e a respetiva obrigação de pagar impostos nesse território. Seguiram-se os regimes para não residentes criados nas Bahamas, no Luxemburgo e na Suíça que, a partir da década de 1930, desenvolveu também a sua tradição de sigilo bancário absoluto.

No entanto, e apesar destes antecedentes, foi o processo de globalização financeira, assente na liberdade de circulação de capitais e nos processos de liberalização e expansão da finança, que contribuiu definitivamente para a proliferação daquilo a que chamamos territórios offshore, a partir dos anos 1980. Este movimento foi legitimado pelo neoliberalismo em ascensão, que elevou os princípios do individualismo e liberdade de negócio acima de outras considerações económicas, sociais, mas também morais, que procuravam estabelecer limites ao funcionamento e expansão dos mercados.

Estas considerações sobre o contexto ideológico e político que permitiu a multiplicação deste tipo de jurisdições é útil para recordar que os offshores não são territórios sem Estado, onde prevalece uma espécie de mercado em estado natural. Pelo contrário, são zonas em que as leis e regulamentações foram cuidadosamente criadas para cumprir um objetivo específico, que é o de atrair fluxos financeiros estrangeiros. Por isso, e na ausência de um único critério que seja consensual, o FMI define os centros financeiros offshore da seguinte forma:

  • a) “Jurisdições que possuem um número relativamente grande de instituições financeiras envolvidas principalmente em negócios com não residentes;
  • b) Sistemas financeiros com ativos e passivos externos desproporcionais à intermediação financeira doméstica projetada para financiar economias domésticas; e
  • c) Mais popularmente, centros que fornecem alguns ou todos os seguintes serviços: tributação baixa ou zero; regulamentação financeira moderada ou leve; sigilo bancário e anonimato.”[1]

A combinação destas três descrições permite-nos compreender o conceito por detrás do termo offshore que, à letra, quer apenas dizer “fora de costa” e, menos literalmente, significa “noutro lugar”. Para se tornarem competitivos na atração de capitais e património estrangeiro, estes territórios oferecem, antes de mais, garantias de segurança e confidencialidade, que se podem traduzir depois de diferentes formas. Os paraísos fiscais são jurisdições em que os não residentes pagam poucos ou mesmo nenhuns impostos. Os paraísos judiciários oferecem enormes facilidades na instalação e criação de sociedades, frequentemente com legislação muito permissiva quanto ao seu funcionamento e características, podendo ainda garantir formas de cooperação judiciária internacional limitada. As jurisdições de sigilo oferecem confidencialidade profissional e bancária, que pode também estar associada a garantias de não cooperação com autoridades judiciárias estrangeiras. A maior parte dos territórios offshore combina um ou mais destas características, que são aplicadas em diferentes graus.

Dependendo também das suas características, as utilizações de offshores são múltiplas. A facilidade na criação de empresas de fachada, geridas por gabinetes de solicitadores e advogados, em que a identidade do beneficiário último é desconhecida, permite desde a ocultação de património, por exemplo num caso de divórcio ou de falência fraudulenta, à lavagem de dinheiro associado ao tráfico e terrorismo. Noutras vezes, ao objetivo de ocultação da fonte e destino dos rendimentos é adicionado um outro, que é o do pagamento de menos impostos. Em alguns casos mais simples trata-se simplesmente de rendimentos não declarados no seu território devido, noutros, associados a grandes empresas e grupos económicos, estão em causa complexas operações contabilísticas, nomeadamente através da manipulação de preços de transferência, com o objetivo final de reduzir a fatura fiscal nos países em que as operações estão localizadas.

Não existe uma única listagem dos territórios offshore, uma vez que a sua classificação depende, em último caso, dos critérios adotados. Num relatório publicado em 2000, a OCDE identificou várias jurisdições que, segundo a sua metodologia, poderiam ser classificadas como paraísos fiscais. Segundo a própria instituição, entre 2000 e 2002, 31 dessas jurisdições comprometeram-se a adotar os standards de transparência e troca de informações impostos pela OCDE. As sete jurisdições que ficaram de fora – Andorra, Principado do Liechtenstein, Libéria, Principado do Mónaco, Ilhas Marshall, e as Repúblicas de Nauru e Vanuatu – acabaram por fazê-lo até 2009. Como consequência, a OCDE declara que “nenhuma jurisdição está presentemente listada como um paraíso fiscal não cooperante pela Comissão de Assuntos Fiscais”.

Esta abordagem, que obriga a compromissos mínimos de cooperação por parte destas jurisdições, foi seguida de algumas iniciativas internacionais que procuram estabelecer mecanismos de troca de informações financeiras entre países. A mais importante, o Common Reporting Standard – CRS, estabelece um modelo de troca automática de informações financeiras e tributárias que foi acordado por um vasto conjunto de países, e começar pela União Europeia em 2017, que instituiu o seu próprio mecanismo de troca automática e recíproca de informações financeiras entre Estados-Membros, através de uma diretiva comunitária conhecida por DAC2. 

Nauru é a mais pequena república do mundo (13 mil habitantes), Niue tem menos de dois mil habitantes, as Ilhas Marshall 60 mil, Tonga 112 mil e Vanuatu 200 mil habitantes (todas no Pacífico). Mas a chamada lista “cinzenta” (a segunda) inclui também vários países europeus: Áustria, Bélgica, Suíça, Luxemburgo, Mónaco, Liechtenstein e Andorra, além de vários territórios britânicos (e um dos EUA e outro da Nova Zelândia)

Apesar destes esforços e avanços, as organizações internacionais que tratam do tema duvidam da eficácia de algumas das medidas e compromissos quanto à transparência e troca de informações, que temem que não venham a ter efeitos práticos, servindo apenas para a legitimação pública dos offshores. Em 2018, a Tax Justice Network publicou um relatório com o seu Índice de Sigilo Financeiro, que classifica as jurisdições quanto ao seu sigilo e dimensão das atividades financeiras offshore. O ranking demonstra que, na maior parte dos casos, os maiores centros financeiros offshore não estão localizados em ilhas distantes e exóticas, mas nos maiores países da OCDE, que mantém importantes praças financeiras onde o sigilo, as isenções fiscais e as facilidades regulatórias são a regra. Os círculos preenchidos a azul no mapa apresentado representam as dez jurisdições que, segundo a Tax Justice Network, mais contribuem para o sigilo financeiro mundial. São elas: Suíça, EUA, Ilhas Caimão, Hong Kong, Singapura, Luxemburgo, Alemanha, Taiwan, Emirados Árabes Unidos (Dubai), e a ilha de Guernsey. Portugal surge neste ranking na 63ª posição, devido ao Centro Internacional de Negócios da Madeira.

Alguns destes territórios são pequenas ilhas: Nauru é a mais pequena república do mundo (13 mil habitantes), Niue tem menos de dois mil habitantes, as Ilhas Marshall 60 mil, Tonga 112 mil e Vanuatu 200 mil habitantes (todas no Pacífico). Mas a chamada lista “cinzenta” (a segunda) inclui também vários países europeus: Áustria, Bélgica, Suíça, Luxemburgo, Mónaco, Liechtenstein e Andorra, além de vários territórios britânicos (e um dos EUA e outro da Nova Zelândia). Os Estados Unidos têm movido grandes pressões contra o segredo bancário na Suíça, e apresentaram uma queixa judicial internacional para forçar que o fisco norte-americano receba informação acerca dos depósitos de 300 mil contas de cidadãos nacionais na Suíça, em particular no seu maior banco, a UBS. Segundo os cálculos oficiais, o fisco perderia cerca de 100 mil milhões de dólares com esse processo de evasão.

A estimativa apresentada pela Tax Justice Network aponta para um montante entre 21 e 32 biliões de dólares localizados em jurisdições de sigilo em todo o mundo, e para fluxos financeiros transnacionais ilícitos entre 1 e 1,6 biliões de dólares. Segundo o mesmo relatório, os países africanos terão perdido mais de um bilião de dólares em fuga de capitais para estas jurisdições desde 1970, mas não é só nos países em desenvolvimento que o problema assume dimensões astronómicas. Um estudo da Comissão Europeia aponta para que, em média, entre 2001 e 2016, ativos financeiros equivalentes a 26% do PIB nacional tenham sido localizados em territórios offshore.[2]

No caso de Portugal, existe uma região offshore em atividade, a Madeira (há outra autorizada, mas que nunca foi operacionalizada, que é a ilha de Santa Maria nos Açores). O Relatório do Orçamento de Estado para 2009 revelou que a perda fiscal em IRC devida à existência deste offshore era então de 1.796 milhões de euros, ou seja, que eram transaccionadas operações isentas de IRC no valor de cerca de 7.000 milhões de euros (cerca de 4% do PIB nacional).

No caso de Portugal, existe uma região offshore em atividade, a Madeira (há outra autorizada, mas que nunca foi operacionalizada, que é a ilha de Santa Maria nos Açores). O Relatório do Orçamento de Estado para 2009 revelou que a perda fiscal em IRC devida à existência deste offshore era então de 1.796 milhões de euros, ou seja, que eram transaccionadas operações isentas de IRC no valor de cerca de 7.000 milhões de euros (cerca de 4% do PIB nacional). Os dados desde então indicam que se perderão cerca de 1.000 milhões de euros anuais em benefícios em IRC na zona da Madeira, mas nem sempre tem sido apresentada a conta desses benefícios. A União Europeia questionou a legalidade dessa concessão, mas vários governos portugueses têm persistido na sua defesa.

Em todas as investigações judiciais sobre delitos financeiros em Portugal no século XXI foram encontradas evidências do uso de sociedades offshore para ocultar operações ou para promover acções ilegais (assim aconteceu nas investigações ao Banco Comercial Português, Banco Português de Negócios ou Banco Privado Português).

Como vimos pelo exemplo da Escom (tratado noutro artigo deste dossier), os offshores funcionam em rede, com cada jurisdição a desempenhar um papel específico na circulação e ocultação de fundos, esquemas que, em último caso, podem também fazer uso de instrumentos legais, como os RERT.

Tal como a Tax Justice Network, também a Oxfam aponta para a importância dos territórios da União Europeia, onde estarão localizados dois terços da riqueza ocultada em offshores, nesta rede. A City de Londres, no Reino Unido, é disso o maior exemplo, mas devemos referir também Malta, que gere um verdadeiro offshore, a Suíça, conhecida pelo seu regime de sigilo bancário, a Holanda e a Irlanda, que oferecem legislações fiscais claramente mais favoráveis, ou o Luxemburgo, que assinou acordos fiscais secretos com 340 multinacionais para garantir um imposto residual (Jean Claude Juncker, futuro presidente da Comissão Europeia, era então o seu primeiro-ministro). Em Portugal, também o Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM) deve ser incluindo nesta vasta lista de territórios. Embora as suas regras tenham sido alteradas ao longo do tempo, o regime da Madeira continua a atrair centenas de empresas fictícias utilizados para os mais variados esquemas de triangulação financeira e fraude fiscal.[3]

Mil empresas dentro de um apartamento

“A suite 605 é um escitório de 100 m2 situado no 6º andar do Edifício Marina Forum, no nº 77 da Avenida Arriaga, no Funchal. (…) Na última década, mil empresas passaram pela Suite 605. Uma simples conta aritmética permite-nos concluir que cada empresa ocupa um espaço exíguo de apenas 0,1m2, o equivalente ao tamanho de um mosaico de cozinha ou de um disco de vinil.

Este cenário virtual com miniaturas da realidade só é possível no mundo imaginário de As Viagens de Gulliver ou num verdadeiro paraíso fiscal, onde as empresas-fantasma não têm trabalhadores e estão empilhadas dentro de uma caixa de correio.

O mais curioso é o facto de a inspeção tributária não estranhar a elevada densidade empresarial que se esconde numa sala equipada com apenas uma linha telefónica. Se estas empresas tivessem presença física no Funchal e realizassem uma chamada telefónica com a duração média de dez minutos para contactar clientes e fornecedores, cada uma destas entidades teria de esperar dez mil minutos (uma semana!) para efetuar um novo telefonema.”[4]

No entanto, a fuga ao fisco, em particular por parte de empresas mundiais, não necessita de recorrer a ilegalidades. O planeamento fiscal pode ser promovido explorando subterfúgios legais. No caso de uma das maiores empresas do século XXI, a Apple, os valores que tinha depositado em 2105 fora dos EUA equivaleriam ao PIB da República Checa. A sua estrutura internacional, a Apple Sales International, usa a Irlanda, que tem uma taxa de IRC de 12%, para conseguir um pagamento de impostos reduzido (mas a Comissão Europeia argumenta que a empresa terá pago uma taxa efetiva de 0,005%). Ora, a empresa cria a propriedade intelectual na Califórnia e produz na China, entre outras localizações, sendo a sua atividade na Irlanda residual.

Notas:

[1] IMF (2000), Offshore Financial Centers, IMF Background Paper, Washington: FMI.

[2] Comissão Europeia (2019), Estimating Tax Evasion by Individuals, Working Paper 76, Luxemburgo: EC.

[3] Para mais informações consultar a investigação jornalística franco-alemã ‘Money Island’ e o Relatório sobre o Regime Fiscal do CINM (2017), elaborado pela então eurodeputada Ana Gomes.

[4] João Pedro Martins (2011), Suite 605, Lisboa: SmartBooks.

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