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A União Europeia e os offshores: defeito ou feitio?

Lux Leaks, Panama Papers, Paradise Papers: há muito que conhecemos a evasão fiscal e o recurso a offshores como forma de fintar a tributação de rendimentos ou riqueza. Ao longo dos anos, multiplicaram-se as revelações de práticas ilegais, as promessas de que “dessa vez, tudo seria diferente” e a garantia de cooperação internacional para combater o problema. Mas as ações estão longe de acompanhar as palavras.
Um relatório da Comissão Europeia constatou que residentes fiscais da União Europeia detinham 1,5 biliões de euros em paraísos fiscais offshore em 2016, o equivalente a cerca de 10% do produto da UE. No mesmo relatório, estimou-se que as perdas de receita fiscal para os estados-membro cheguem aos 46 mil milhões de euros em cada ano. Portugal é dos mais penalizados por esta tendência, sendo o terceiro país da UE com mais riqueza em offshores: entre 2001 e 2016, houve 50 mil milhões de euros desviados para paraísos fiscais para evitar a tributação no país, cerca de um quarto do PIB português. Entre 2004 e 2016, a receita fiscal perdida foi de 1,3 mil milhões, 1% do PIB, sendo apenas superado por Malta e Chipre.
Os números dão-nos uma ideia da dimensão do problema, já que cada euro de receita fiscal perdida para paraísos fiscais é menos um euro disponível para financiar os serviços públicos, escolas, hospitais, transportes públicos ou políticas de redistribuição de rendimento nos países. Foi isso que Johan Langerock, assessor da Oxfam, disse ao Jornal de Negócios: “Menos receita fiscal significa menos serviços públicos ou taxas de IVA mais altas para o cidadão comum.” Langerock considerou ainda que, dadas as dificuldades que as pessoas sofreram com as medidas de austeridade, estes valores “são chocantes”. Não é caso para menos.
Desengane-se quem olha para as instituições internacionais como parte importante do combate a estas práticas. Na União Europeia, favoreceu-se desde o início a lógica perversa da “competitividade fiscal” entre os países, que incentiva a corrida para o fundo na tributação das empresas multinacionais e delapida as receitas dos Estados. Depois de várias insistências, só em 2013 foi possível superar o sigilo bancário na UE e fomentar a troca de informação fiscal individual entre os países. Mas a evasão fiscal ao nível das empresas continua a ser o “elefante na sala” dentro da União. Países como a Holanda ou a Irlanda especializaram-se ao longo dos anos no dumping fiscal, captando receita de impostos devidos noutros estados-membro e distorcendo a própria “concorrência equilibrada” que a Comissão Europeia pretende garantir entre as empresas no mercado único.
O relatório “É tempo da União Europeia fechar os seus próprios paraísos fiscais”, publicado pela Tax Justice Network, uma rede internacional independente que estuda matérias fiscais, revelou que alguns dos estados-membro mais afetados pela pandemia ou com mais casos confirmados perdem cerca de 9,2 mil milhões de euros para a Holanda todos os anos. Em vez de declararem os lucros no estado-membro onde estes são gerados, as empresas desviam-nos para a Holanda, onde pagam taxas de imposto que podem ser inferiores a 5%. Os dados, referentes apenas ao que foi publicado pelos EUA sobre empresas norte-americanas, são esclarecedores: França perde 2,5 mil milhões em receita fiscal, Itália e Alemanha 1,4 mil milhões e Espanha 900 milhões. Portugal e Bélgica perdem, respetivamente, 236 milhões e 950 milhões em impostos em cada ano. Sem regulação exigente, o dumping fiscal é um negócio lucrativo para a Holanda.
No Índice de Paraísos Fiscais Empresariais, publicado pela mesma rede em 2019 para averiguar os países com práticas mais abrangentes e agressivas de evasão fiscal ou captação de receita fiscal indevida, a Holanda ocupava um honroso quarto lugar. Mas está longe de ser um caso isolado: também Luxemburgo (6º), Irlanda (11º), Bélgica (16º), Chipre (18º), Hungria (20º), França (22º), Malta (23º) ou Alemanha (24º), todos estados-membro da UE, constam nos lugares cimeiros desta lista.
O facto de a Comissão Europeia apenas considerar como paraísos fiscais 12 territórios (todos fora da UE) diz tudo sobre a seriedade do combate à evasão fiscal na União. Não deixa de ser curioso que as Ilhas Caimão, o pequeno território britânico que, além das vistosas praias, ficou conhecido pelas mais de 100.000 empresas registadas (1/5 das quais no mesmo edifício), apenas passe a ser considerado para a lista negra dos paraísos fiscais da União após a conclusão do Brexit e a saída do Reino Unido. Para a União Europeia, parece que o combate pela justiça fiscal só se justifica se for como instrumento de retaliação.
É certo que existem propostas interessantes em discussão nas instituições europeias: é o caso da proposta para uma “Base de Tributação das Empresas Comum e Consolidada", cujo objetivo era fixar uma taxa mínima de imposto sobre estas empresas na UE, criar padrões comuns para o cálculo da matéria coletável das empresas e distribuir a receita de forma adequada entre os países. No entanto, propostas como esta são repetidamente bloqueadas no Conselho Europeu pelos países que mais beneficiam do dumping fiscal, além de motivarem não raras vezes oposição das bancadas da direita no Parlamento. O que não implica que não seja o caminho a seguir: se a União Europeia não for capaz de medidas de cooperação que evitem o saque fiscal entre estados-membro, será cada vez mais difícil justificar o projeto europeu.
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