O golpe militar que derrubou Salvador Allende em 1973 vitimou milhares de pessoas, destruiu os partidos políticos e as organizações dos trabalhadores e impôs o modelo precursor do neoliberalismo. Foram 17 anos de uma brutal ditadura. As fotos e vídeos tristemente famosos do palácio presidencial sendo bombardeado por aviões da Força Aérea do Chile mostraram ao que os comandantes das Forças Armadas estavam dispostos.
Foram presos e assassinados milhares de opositores, em particular militantes dos partidos de esquerda, ativistas da classe trabalhadora, estudantes e camponeses, que foram alvo direto da junta fascista. Os milhares de refugiados e exilados foram perseguidos desde os primeiros decretos dos golpistas. Entre eles, parte dos cerca de 3 mil brasileiros que trabalhavam e/ou estudavam no país. Alguns participaram das instâncias de governo, muitos militavam nos partidos de esquerda chilenos. Vários brasileiros e brasileiras foram presos, torturados e/ou assassinados.
Nos anos subsequentes, foram criados campos de concentração como na Ilha Dawson, no Estreito de Magalhães, e a ditadura instituiu uma sinistra polícia política, a DINA, que perseguiu e assassinou chilenos no país.
As garras da DINA chegaram ao exterior, sendo os casos mais famosos o general Prats (ex-comandante do Exército e opositor ao golpe), que teve o automóvel em que viajava com sua esposa explodido no bairro de Palermo em plena Buenos Aires, em setembro de 1974, e Orlando Letelier, que foi embaixador nos Estados Unidos e ministro de Relações Exteriores no governo Allende e foi assassinado por um carro bomba em Washington DC, a poucos quilómetros da Casa Branca, em setembro de 1976.
As conquistas sociais mais importantes foram liquidadas. A educação, a saúde, a segurança social foram privatizadas, assim como as riquezas naturais, inclusive a água. Os sindicatos tiveram a sua atividade drasticamente restringida, o trabalho foi precarizado, a reforma agrária foi em boa parte revertida e os mapuches foram tratados manu militari. Não por acaso, as incessantes lutas nos últimos dez a doze anos no Chile, inclusive o estallido social de 2019, levantavam bandeiras ligadas ao legado da ditadura.
Agora, no cinquentenário do golpe, um importante sentimento parece perpassar boa parte da população chilena em relação à recordação do que foi o governo da Unidade Popular. Os mártires são homenageados, a começar por Allende e Victor Jara, assim como emerge o interesse sobre a experiência e a memória do período de 1970 a 1973.
O Chile em 1970
O Chile tinha cerca de 10 milhões de habitantes, uma alta taxa de urbanização (75%) e uma trajetória de quase cem anos de organização do movimento operário; o mais antigo e poderoso partido comunista das Américas, ao lado de um também antigo e forte partido socialista, que tinha uma grande ala esquerda. A democracia burguesa era bastante antiga e estável para os padrões latino-americanos: desde 1932 não havia golpes militares, o que não significava que eles não interviessem na vida política e não praticassem massacres terríveis como o dos mineiros do salitre em Iquique, naquele longínquo 1907, ou que tivesse havido tentativas de golpe como a do General Viaux em 1969. Além disso, o oficialato era formado pelas ideias da Guerra Fria, na Escola das Américas, no Canal do Panamá, e as forças armadas tinham uma estrutura fortemente hierarquizada.
Na década de 60, o Chile conheceu um profundo processo de mobilizações operárias, populares e estudantis, devido ao estrangulamento do modelo económico de substituição de importações e à influência da revolução cubana. Não por acaso, a Democracia Cristã (DC), em 1964, foi às eleições para enfrentar a coligação de esquerda com a bandeira de “Revolução em liberdade”. O seu programa focava a reforma agrária, a incorporação dos pobres da cidade à economia e a “chilenização” do cobre”. Esse partido contou com o forte apoio do imperialismo americano, que àquela época implementava o seu programa da Aliança para o Progresso, com a intenção de deter a tremenda influência da revolução cubana.
Evitando sustos
A burguesia procurava evitar o susto que tinha tido com as eleições de 1958, quando Allende, como candidato da aliança PC-PS, ficou a 30 mil votos do candidato vencedor, Jorge Alessandri do direitista Partido Nacional. Desta vez, Frei foi o candidato único da burguesia para enfrentar a esquerda, conseguindo 54% dos votos, algo extremamente raro àquela época no Chile.
Após vencer as eleições, o governo Frei, da DC, mostrou abertamente a sua cara patronal, repressiva e pró-imperialista. Inicialmente, a sua estratégia parecia ter êxito, mas após dois anos, a inflação subiu, a reforma agrária estagnou, a chilenização do cobre mostrou-se um ótimo negócio para as companhias americanas – calcula-se que elas lucraram mais com a propriedade de 49% das ações das minas do que quando tinham 100%, além de manterem a sua administração. Com isso, o movimento de massas começou a aumentar significativamente as suas lutas: houve um aumento exponencial das greves, especialmente as ilegais e houve três greves gerais até o processo eleitoral em 1970.
Além disso, o fim da restrição à sindicalização no campo: até 1967, era proibida a sindicalização da maioria dos camponeses que, na sua maior parte, não viviam na propriedade; e era exigido que mais da metade dos sindicalizados soubesse ler e escrever. Com o fim destas restrições, a sindicalização no campo cresceu verticalmente, chegando a 100 mil entre os 700 mil trabalhadores do campo (este número chegaria a 300 mil ao final do governo da UP. Os camponeses não esperaram mais pela aplicação da reforma agrária e começaram a ocupar terras em grande quantidade.
A direitização do governo Frei foi acompanhada de uma brutal repressão.
Em 1966, os trabalhadores da mina de El Teniente entraram em greve, o que era ilegal, segundo a legislação à época, e a mina de El Salvador entrou em greve em solidariedade, como era usual na categoria. Após alguns dias, o governo enviou o exército para reprimir os grevistas. O balanço foi trágico: 8 mortos. O governo não reconheceu a sua responsabilidade.
Fidel Castro atacou o governo Frei que tinha como um dos seus slogans “revolução sem sangue”, fazendo um trocadilho, dizendo que o que ele estava produzindo era “sangue sem revolução”.
Outro evento sangrento foi a desocupação violenta de terrenos na cidade de Puerto Mont, ao sul do Chile, em 1969, que ocasionou 11 mortos entre os ocupantes, inclusive um bebé. Além do desprestígio do governo, uma fração da DC rompe pela esquerda e forma o MAPU – Movimento de Ação Popular Unitária – que se integraria à coligação da esquerda.
O governo de Frei terminava, portanto, com uma crise económica e social (aumento exponencial de greves e ocupações na cidade e no campo). No caso das Forças Armadas, a greve armada dirigida pelo general Viaux mostrava sinais claros de inquietação no Exército e foi respondida por um dia de greve geral chamada pela CUT e apoiada por todos os partidos menos o Partido Nacional de direita.
A Unidade Popular (UP) e os primeiros planos golpistas
Em 4 de setembro de 1970, realizam-se as eleições e a coligação de partidos de esquerda, a Unidade Popular (UP), com Salvador Allende à cabeça e composta pelo Partido Comunista (PC), o Partido Socialista (PS), mais o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU) e pequenos agrupamentos burgueses, como o Partido Radical, consegue a primeira maioria (36,6%), ficando o candidato mais à direita, Jorge Alessandri com 35,29% e o candidato Radomiro Tomic da Democracia Cristã com 28,08%.
Para que o candidato vitorioso tivesse a sua eleição confirmada ainda teria de passar pela aprovação do parlamento, o que sempre fora a tradição. Intensas pressões e negociações precederam essa votação. O imperialismo americano procurou estimular os setores que não queriam a posse de Allende. O ex-secretário de Estado Henry Kissinger já tinha resumido a consideração do imperialismo americano pela vontade popular, ao comentar com os seus colegas: “não vejo por que temos que ficar parados e assistir a um país tornar-se comunista devido à irresponsabilidade do seu próprio povo”1.
Foto Ministério das Relações Exteriores do Chile
Ressalte-se que esta declaração de Kissinger, um dos responsáveis pelo tormento sofrido pelo povo vietnamita, foi feita antes mesmo das eleições, em 27 de junho de 1970, numa reunião secreta de um comité do governo, ainda antes das eleições chilenas.
Aposta golpista é a opção de Washington desde o início
Com a eleição de Allende, o governo americano deu claras instruções para buscar impedir a sua posse. Por meio da desclassificação das informações de uma reunião do presidente Nixon com o chefe da CIA, em 15 de setembro, 11 dias após a eleição (!!), sabemos que “De acordo com notas manuscritas feitas pelo diretor da CIA Richard Helms, Nixon deu instruções explicitas para impedir que o novo presidente do Chile, Salvador Allende, assumisse o cargo em novembro ou que se criassem as condições para derrubá-lo se assumisse a presidência”2. Ressaltando o facto de que era uma estratégia permanente, Nixon acrescenta na mesma reunião uma frase que se tornou conhecida: “façam a economia [do Chile] gritar”.
Indo a expressões mais concretas dessa orientação, em setembro, o embaixador americano Edward Korry transmitiu diretamente ao governo Frei a decisão dos EUA de condenar o Chile à pobreza e apontou que o general Schneider teria que ser “neutralizado”.
Houve vários planos de golpe. O plano inicial era que a DC votasse em Alessandri no Parlamento, que em poucos dias renunciaria e haveria nova eleição em que a direita apoiaria Frei. A DC, receosa de nova divisão do partido, não aceita a proposta.
O novo projeto de golpe se dá dois dias antes da eleição no Congresso Pleno: a extrema direita tentou sequestrar o comandante do Exército, Rene Schneider, partidário de aceitar os resultados eleitorais, para forçar uma mudança na opinião das Forças Armadas e da burguesia, mas o general resistiu e morreu, e o resultado foi que o setor mais golpista da burguesia perdeu espaço para atuar. Antes de votar, no entanto, a DC obrigou a UP a aceitar um estatuto de garantias constitucionais que reafirmava o compromisso de manter as instituições centrais do regime capitalista.
Chile. Membros da Junta militar que derrubou Salvador Allende a 11 de setembro de 1973. da esquerda para a direita: César Mendoza, José Toribio Merino, Augusto Pinochet e Gustavo Leigh Guzmán. Crédito: autor desconhecido, licença Creative Commons Attribution 3.0 Chile, atribuída por: Biblioteca del Congreso Nacional
Allende
Antes de começarmos a fazer o balanço do governo, duas palavras sobre Allende. Era um antigo parlamentar socialista que concorreu pela quarta vez a presidente. Era um reformista convicto e nunca o escondeu. As concessões reais feitas na primeira parte de seu governo, a implacável oposição que sofreu por parte da burguesia e do imperialismo e a sua morte trágica provocada pelos golpistas assassinos fizeram com que seja idolatrado pelas massas. Mas não devemos nos confundir: seu grande valor pessoal no último ato, ao enfrentar com coragem os gorilas chilenos, não o redime dos seus erros, a escolha equivocada da chamada via pacífica ao socialismo, que defendeu até o fim, apesar da escalada golpista evidente no final do seu governo, com a brutal derrota a que conduziu.
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Adaptação de português do Brasil (PT-BR) para português de Portugal (PT-PT) por Mariana Carneiro.