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O primeiro ano da Unidade Popular

O governo de Allende tinha um ambiciosos programa, que passava por reforma agrária e nacionalizações. As minas de cobre, que representavam 80% das receitas de exportação do país, figuravam nessa lista. As massas trabalhadoras e camponesas mobilizaram-se para que o programa fosse aplicado. Por Waldo Mermelstein.
Foto domínio público.

O programa de reformas básicas da UP tinha os seguintes eixos:
– a aceleração da reforma agrária segundo a mesma lei aprovada no governo Frei;
– a nacionalização completa do cobre, que representava 80% das receitas de exportação do país e das demais riquezas naturais;
– nacionalização das empresas monopolistas. As indústrias seriam divididas em três áreas, privada, mista e área de propriedade social (APS). A esta última, seriam incorporadas as empresas monopolistas. Nas áreas não estatais, a única participação dos trabalhadores seria através dos pouco definidos comités de vigilância da produção. Os bancos seriam também nacionalizados.

O programa da UP fazia referência a uma transição ao socialismo respeitando as leis e a institucionalidade vigentes, sem especificar os seus ritmos e métodos. Allende, em vários discursos como presidente, falava de uma segunda forma de transição para o socialismo, supostamente defendida por Marx, ou seja, uma transição respeitando as regras estabelecidas pelo regime burguês, pacífica, enaltecendo uma “flexibilidade” das instituições do Estado chileno.

Outro elemento no programa da Unidade Popular e que estimulou o movimento diretamente a lutar foi a declaração de que “as transformações revolucionárias de que o país necessita somente poderão ser realizadas se o povo chileno tomar em suas mãos o poder e o exercer real e efetivamente”. Era uma declaração genérica, uma concessão à sua ala esquerda, sem maiores precisões, mas, mesmo assim, era uma linguagem, diferente da dos demais governos, que foi interpretada literalmente pelos trabalhadores e pelos setores populares, que acabaram ultrapassando em muito as ações e intenções do governo e que com ele se chocaram em vários momentos.

Allende fez questão de dar a orientação explícita de que não houvesse repressão aos movimentos sociais, o que teve um grande impacto para estimular as lutas das massas pelos seus direitos.

Tentando uma definição do governo Allende, poderíamos dizer que foi um clássico governo de colaboração de classes num país dependente do imperialismo, marcado por uma profunda instabilidade, particularmente a partir do lock-out patronal de outubro 1972.

Para tornarmos mais clara essa definição, cedemos à tentação de fazer algumas analogias históricas, como uma aproximação a uma realidade viva e complexa.

Pelo seu conteúdo programático, pela sua prática de tentar manter o movimento de massas como um apoiador controlado do governo, mais além das menções retóricas, para “dias de festa” a uma transição ao socialismo, assemelhava-se a outros governos nacionalistas burgueses da América Latina, entre eles o de Goulart no Brasil.

Pela composição predominante dos partidos que o compunham e pelo apoio da principal organização sindical do país, a CUT chilena, tinha semelhança com outros regimes de colaboração de classes, chamados de “frente popular”, pela denominação dada pela Internacional Comunista sob domínio de Stálin.

A sua proposta de governo era a de organizar uma aliança anti-monopolista, antioligárquica e anti-imperialista entre a classe trabalhadora, setores da classe média e uma suposta burguesia nacional, oposta aos monopólios, ao latifúndio e ao imperialismo, para completar uma primeira fase democrático-burguesa do processo revolucionário.

A partir de outubro de 1972, o governo, além das características anteriores, começa também a ter elementos assemelhados aos governos no auge de situações revolucionárias, e logo nos vem à mente o exemplo de Kerensky na Rússia em 1917, em que, sem deixar de ter projetos nem de existir, cada vez mais é totalmente impotente entre as duas classes fundamentais que se enfrentavam, revolução e contrarrevolução. De qualquer forma, era um governo que explicitamente não rompia nem pretendia romper com os marcos da dominação estatal capitalista.

Mas não nos adiantemos. Vejamos como evoluiu o processo.

A herança recebida pela Unidade Popular

O Chile que Allende recebeu era um país pobre (60% das famílias recebiam até dois salários-mínimos), o país vivia uma profunda crise económica, recessão e inflação na casa dos 35%, o desemprego em 8% e tinha a segunda maior dívida externa per capita do mundo.

A UP aplicou uma estratégia inicial de reativar a economia com medidas de estímulo keynesiano, aumentando os salários de acordo com pelo menos a inflação do ano anterior (e acima da inflação os salários mais baixos), elevando os benefícios sociais e, em especial os previdenciários, aumentando o crédito à economia, estimulando em níveis inéditos a construção de casas populares (foram construídas 158 mil habitações nos 1000 dias do governo), acelerando a reforma agrária, começando a nacionalizar os principais monopólios industriais e bancários através da compra e muito especialmente nacionalizando as riquezas naturais básicas, entre elas, claro, em primeiro lugar, o cobre, o chamado “salário do Chile”.

Um dos programas de maior sucesso foi a entrega gratuita de meio litro de leite diário para cada criança até sete anos e às mulheres grávidas ou que amamentavam no país, sabendo-se que, no Chile, àquela época, 80 em cada 1000 bebês morriam por ano em especial por desnutrição. Ao final de 1971, 3 milhões de crianças, 96% da população alvo, foram atingidas pelo programa.

Essas medidas tiveram um efeito imenso: em 71 houve uma grande transferência de rendimento para o trabalho assalariado, que alguns dizem ter atingido 10% do rendimento nacional, chegando a 59% desta (o que é verdadeiramente extraordinário) e o desemprego baixou quase para a metade, para 3,9%.

A ideia era de, a partir do aumento da popularidade advinda destes resultados, lançar medidas de democratização do Estado, em particular a Assembleia Popular, espécie de câmara legislativa única para poder prosseguir com as reformas. Com o efeito dessas medidas, cinco meses após assumir o poder, a UP, mais a pequena Usopo, conseguiu 50,3% dos votos nas eleições municipais.

Mas as coisas não corriam exatamente como previam os dirigentes da UP: a burguesia obtinha enormes lucros com a reativação da economia, mas não investia quase nada, pelo seu caráter parasitário e principalmente por um cálculo político: até que ponto os dirigentes da UP poderiam controlar os trabalhadores? A mesma desconfiança teriam os setores privilegiados das classes médias urbanas e rurais.

As massas depositavam enormes expectativas no governo e apoiavam-no, sentindo que havia chegado o momento de conquistar os seus direitos tanto tempo adiados.

As ocupações de terras explodiram, inclusive superando os limites da reforma burguesa herdada da DC: ao contrário de respeitar o limite de 80 hectares de irrigação básica (que era uma fórmula complicada e que permitia a sobrevivência de propriedades muito maiores), o que deixaria cerca de 40% das melhores terras nas mãos dos grandes e médios proprietários. Os camponeses resolveram adiantar-se e começaram a ocupá-las, propondo a radicalização da reforma agrária.

Papel importante tiveram os mapuches, povo indígena conquistado e espoliado desde a época dos espanhóis, passando depois pela sangrenta “pacificação da Araucania” realizada pelo estado chileno e deixados de lado pela reforma agrária da DC, que pediam a restituição das suas terras e se destacaram por ocupá-las. A reação do governo foi dupla: condenou, inclusive pela palavra do próprio Allende, a radicalização, mas, para não perder o controlo, acelerou a reforma agrária, enviando o ministro da Agricultura Jacques Chonchol que tinha vindo da DC para instalar o Ministério na província de Cautín. Nesta, havia uma grande concentração de mapuches.
De março a dezembro de 1970, os mapuches tinham protagonizado uma onda de ocupações, que eles denominavam de “corridos de cerco”, ou deslocamento noturno das cercas das propriedades. Em dois anos cumpririam-se as metas da reforma agrária (segundo a lei herdada do governo anterior) para seis anos...

O governo tinha estabelecido por decreto em dezembro de 1970 a constituição de um Conselho Nacional Camponês, formado pelas confederações camponesas. Além disso, dispôs que se organizassem Conselhos Provinciais e Comunais. Além disso, é interessante que se tenha originado no campo uma das primeiras contestações organizadas, pela esquerda, à política do governo: o congresso de camponeses de Cautin, onde houve muitas ocupações nos primeiros meses do governo, exigiu o aprofundamento da lei de reforma agrária herdada da DC que deixava as melhores terras nas mãos dos grandes proprietários, pedindo a diminuição do limite expropriável para 40 hectares de irrigação básica e o fim da possibilidade de os latifundiários reservarem as melhores terras para eles, assim como as suas máquinas e animais.

Nas cidades, os trabalhadores começaram a reivindicar melhores salários e condições de trabalho, as greves continuaram a aumentar exponencialmente, em especial as ilegais. Muitas empresas foram ocupadas para forçar a sua nacionalização, mesmo aquelas que não preenchiam os critérios definidos pela UP (não havia uma lista definida nem havia possibilidade de passar uma lei pelo congresso, dominado pela direita). Por exemplo, a tecelagem Yarur, maior fábrica têxtil do país, de propriedade de uma das famílias mais ricas do país - e que impunha um regime despótico no interior da empresa, era uma das candidatas, mas o governo não tinha anunciado a sua nacionalização. Os dirigentes sindicais da fábrica que eram da UP e os trabalhadores de base precipitaram um conflito laboral, ocuparam a empresa e pediram a sua passagem para a área de propriedade social (APS). Como conta o historiador Peter Winn (“Tecelões da Revolução”), depois de muito pressionar o governo e contando com a oposição pessoal de Allende, os trabalhadores vergaram-no e o governo utilizou uma das chamadas brechas legais, utilizando legislação antiga e em desuso para intervir a empresa1.

Allende queria que a empresa só fosse nacionalizada de acordo com os seus planos de avanço paulatino. O problema é que, mesmo que houvesse alguma lógica nessa explicação, o movimento social tinha a sua dinâmica própria. Segundo o autor, nos ásperos diálogos, Allende foi claro e disse: “As massas não podiam ir adiante dos dirigentes porque estes tinham a obrigação de dirigir e não de ser dirigidos” e também advertia: “se eu ceder, outros farão o mesmo”. E efetivamente, várias outras empresas seguiram o mesmo caminho, mas a vontade de dirigir ferreamente o movimento iria cobrar o seu preço em todo o processo.

Os moradores sem teto que, entre ocupações e favelas, constituíam cerca de 20/25% da população de Santiago, continuaram a ocupar terrenos e a exigir a construção de casas e melhorias. Chamados genericamente de “pobladores”, este movimento atingiu um alto grau de organização e consciência, chegando a ter verdadeiras comunas populares, como a ocupação “Nueva La Habana”, que chegou a reunir 9 mil pessoas sob a influência de um organismo para-partidário do Movimento de Esquerda Revolucionário - MIR, o MPR (Movimiento de Pobladores Revolucionários).

O MIR era uma organização que não pertencia formalmente à Unidade Popular e tinha sido formado originalmente por dissidentes do PS, trotskistas e independentes (inclusive o legendário Clotario Blest - cristão revolucionário que tinha sido o fundador da CUT em 1953), mas depois seguiu uma linha castrista imposta por Miguel Enriquez.

Todos esses novos acontecimentos apareciam ainda como se fossem apenas um pouco mais do clima de ascenso e de crise que se vivia antes da posse de Allende, com uma maior confiança por parte dos trabalhadores porque sentiam que o governo estaria ao seu lado ou pelo menos que não usaria a repressão, como tinha prometido solenemente.

Em julho de 71, o Congresso aprovou por unanimidade a nacionalização completa das minas de cobre e Allende recebeu o encargo do parlamento para determinar a indemnização a ser paga. Ele propôs que as empresas (americanas) fossem compensadas financeiramente, mas que os lucros extraordinários auferidos nos últimos 15 anos fossem descontados, o que por pressão popular acabou por ser confirmado pelos órgãos do estado. Na verdade, o cálculo que se fazia à época é que as empresas mineradoras tinham lucrado tanto como todo o investimento em capital fixo no país durante a sua história!

Por outro lado, os EUA mantinham a orientação de fomentar a oposição ao governo, mais ainda após a nacionalização sem indemnização das minas de cobre.

Com isso, o imperialismo americano decide impor o chamado “bloqueio invisível” do país, cortando os créditos para as importações, bloqueando a renegociação da dívida externa do país, entrando na Justiça para confiscar as exportações de cobre chilenas e financiando cada vez mais os movimentos de oposição ao governo.

O seu nervosismo explica-se pela situação na América Latina naquele período, com a desestabilização de vários países latino-americanos depois do furacão gerado pela revolução cubana. Para ficarmos no entorno do Chile, a Argentina, o Uruguai, a Bolívia e o Peru viviam crises políticas, movimentos sociais rurais e urbanos massivos e o temor do governo americano era de que o exemplo do Chile se combinasse com esses processos.


Adaptação de português do Brasil (PT-BR) para português de Portugal (PT-PT) por Mariana Carneiro.

1 Essa legislação tinha sido adotada pela chamada República Socialista, dirigida por militares, em 1932. Permitia a intervenção sem prazo para terminar em caso de a produção não manter seu ritmo normal ou se houvesse conflitos laborais.

(...)

Neste dossier:

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