A situação em direção ao final de 1971 vai lentamente mudando: a oposição burguesa reorganizou-se, foi feita a primeira manifestação de massas contra o governo, com as senhoras de classe média orquestrando a “marcha das panelas vazias”, que coincidiu com a visita de Fidel Castro ao país, de 10 de novembro a 2 de dezembro. Este tinha feito mudanças significativas na política de apoio às guerrilhas na América Latina, a partir da integração no bloco soviético, do fracasso da luta guerrilheira e do surgimento de novos processos políticos na região. Por exemplo, girou ao apoio a governos nacionalistas como os do general Velasco Alvarado no Peru.
Inflexão similar tinha tido com a experiência chilena. No entanto, ao ver a radicalização fascistóide das manifestações durante a sua visita, advertiu de forma enfática no seu discurso de despedida no Estádio Nacional em Santiago sobre os perigos do fascismo.
No terreno económico, a produção começou a cair por falta de investimentos e do bloqueio americano, a inflação recomeçou a subir, as divisas do país esgotaram-se, dificultando a importação de bens de consumo e insumos para a produção, o que levou o governo a suspender o pagamento da dívida externa pela simples impossibilidade de continuar a pagar.
Face a isso, a UP começou a deliberar uma mudança de rumo. Foram várias reuniões na primeira metade de 72, quando finalmente a linha económica do governo foi mudada. Foi demitido o ministro Pedro Vuskovic, independente, e assumiu Orlando Millas, do PC, com a orientação de travar as nacionalizações e os aumentos salariais e negociar um acordo com a DC sobre a extensão da área de propriedade social (APS).
Mudança de curso
Pois foi naquele ano de 72 em que tudo realmente começou a mudar de curso no que toca à disposição de luta das massas e à radicalização da oposição burguesa.
É preciso dizer que as nacionalizações previstas pelo governo da UP não representariam mais do que 20% dos trabalhadores industriais do país, ou seja, a política de alianças proposta deixava de fora o restante dos trabalhadores industriais, sem contar os trabalhadores da construção civil, os desempregados, os artesãos, e um largo percentual de trabalhadores rurais não integrados à reforma agrária. Um autor chileno, Fernando Mires, calcula que ficavam de fora 1,7 milhões de pessoas, numa força de trabalho que era de cerca de três milhões de pessoas...
Além disso, o método preferido da UP para nacionalizar, com exceção das minas de cobre, era o de comprar as ações das empresas, o que foi feito em especial com os bancos; isso não tinha nenhuma semelhança com uma nacionalização de caráter socialista, expropriatória daqueles que se tinham apoderado por muitos anos da riqueza produzida pelos seus trabalhadores. Por pressão dos trabalhadores e pela resistência da patronal, as nacionalizações por esse método não mais foram possíveis e o governo utilizou os métodos de intervenção e requisição das empresas, que tinham o inconveniente de perpetuar o conflito com os antigos proprietários nos meandros do aparato legal do país.
Por outro lado, segundo o convénio CUT-governo de 1971, sobre a participação nas empresas da área de propriedade social (APS), o modelo de gestão seria dominado pelo Estado: a direção das empresas ficou nas mãos de um diretório com maioria nomeada pelo governo e a participação dos trabalhadores resumia-se, em geral, aos comités de produção, que ajudavam a implementar a política preferida do governo, impulsionada em especial pelo PC, a chamada “batalha da produção”, que levou a que a produção das empresas da APS tivesse resultados espetaculares antes que a crise económica e o mercado paralelo não se tornassem dominantes.
Na própria APS, começaram a ocorrer muitas críticas ao modelo, exigindo aumento da participação real dos trabalhadores, apontando em direção ao controle efetivo das empresas, como se expressou, por exemplo, no Encontro de Empresas Têxteis da área de propriedade social, o principal setor industrial nacionalizado, realizado em meados de 72.
“Consolidar para avançar”?
Começou a formar-se, ao calor dos acontecimentos e da pressão das massas, uma polarização dentro da própria UP: contra a posição de Allende e do PC, alinhou-se a ala esquerda, majoritária, do PS, mais o MAPU, a Esquerda Cristã (uma nova cisão da DC ocorrida após a eleição de Allende) e, de fora da Unidade Popular, o MIR. Os lemas da época eram “consolidar para avançar” e “avançar sem conciliar”, o que parece um jogo de palavras, mas significava que amplos setores das massas começaram a manifestar um enfoque diferente sobre a forma de enfrentar os patrões e a reação, sem deixar de apoiar o governo.
Em maio, a direita propõe-se a ocupar as ruas de Concepción, a segunda cidade industrial do país; a ala esquerda da UP e o MIR lideraram uma das maiores manifestações na história da cidade a fim de impedi-la, sendo reprimidos pela polícia sob as ordens do prefeito do PC. Mais tarde, em julho, realiza-se a chamada Assembleia Popular de Concepción, na verdade um fórum público onde a esquerda debateu os rumos do processo chileno, com a presença independente, pela primeira vez, de vários organismos sociais, onde se pediu essencialmente a convocação de uma Assembleia Popular para implementar o programa da UP. Mesmo assim, foram publicamente desautorizados por Allende, que reclamou da tentativa de se criar uma nova direção para o movimento popular.
Em junho, um acontecimento de grande magnitude ocorreu em Santiago: a energia das massas começa a se expressar em lutas mais radicais, como já acontecia em todo o país, com o aumento ainda maior do número de greves ilegais, ocupações, barricadas nas ruas. Como em todos os grandes processos revolucionários, começaram a surgir organismos mais amplos, para dirigir as lutas, que haviam se ampliado e não mais poderiam ser levadas a bom termo pelas estruturas tradicionais, como o caso da CUT. E isso produziu-se, como costuma ocorrer sempre em situações semelhantes, da forma menos esperada.
O primeiro cordão industrial: Cerrillos-Maipu
A região de Cerrilos, ao sul da capital, era a principal concentração fabril de Santiago, contando com 46 mil trabalhadores espalhados por 250 fábricas (o país contava com 550 mil operários industriais). A maior parte das fábricas da região era moderna e não estava contemplada nos planos de nacionalização do governo, muito menos com a redução do número de empresas incluídas sob a nova orientação econômica da UP. Algumas dezenas de fábricas mobilizaram-se, e os trabalhadores ocuparam as ruas do distrito. Depois, chegaram a ocupar o ministério do trabalho, dirigido por Mireya Baltra, comunista.
Esse movimento chocava-se frontalmente com os novos planos da Unidade Popular de travar as nacionalizações e ainda combinou-se com as mobilizações dos camponeses da região. O cordão Cerrillos foi formado como uma coordenação entre os sindicatos de fábrica da região (os sindicatos chilenos eram organizados por fábrica), passando por cima da compartimentação imposta pela lei sindical e pela estrutura da CUT, que não tinha organismos locais para coordenar as lutas, tendo adotado uma forma territorial de organização. A plataforma de fundação do cordão já anuncia uma clara pressão para radicalizar o processo, pedindo, além da passagem de muitas fábricas para a APS, o controle operário sobre todas as demais empresas na cidade e dos camponeses no campo, o estabelecimento de uma assembleia popular em substituição ao parlamento burguês e, sem deixar de reafirmar a legitimidade popular do governo, consideravam apoiá-lo “na medida em que este interpretasse as lutas e as mobilizações dos trabalhadores”, o que dava uma nota bem mais crítica ao movimento social. Posteriormente organizaram-se mais cerca de 30 cordões industriais em Santiago e ao longo do país. Eles contaram com um grau desigual de adesão e massividade, dependendo das conjunturas. Assim, durante as grandes crises que analisaremos a seguir tiveram um papel destacadíssimo, assumindo, a partir de sua origem sindical, tarefas claramente políticas. A vida dos cordões teve oscilações de acordo com a conjuntura. Em alguns momentos tinham uma vida real e em outros, reduziam-se a reuniões de dirigentes sindicais com militância em partidos mais à esquerda (esquerda do PS, MAPU, Esquerda Cristã e MIR) sem se independizarem do governo, funcionando como uma espécie de pressão de massas para tentar radicalizá-lo.
O lock-out de outubro e o surgimento de uma situação abertamente revolucionária
A burguesia e o imperialismo, utilizando métodos que já tinham experimentado em outros países e conjunturas, como no Brasil de Jango, estimularam a mobilização dos setores de classe média e todos os descontentes com o governo e propuseram-se a lançar uma ofensiva final para derrubar ou fazer capitular a UP.
Tudo começou com uma greve de camionistas privados contrários à criação de uma empresa regional de transportes estatal no Sul e que se estendeu a todo o Chile em 9 de outubro. Num país tão longo e estreito, sem vias férreas que compensassem a paralisação dos caminhões, o cálculo era que isso faria o governo capitular rapidamente. Somaram-se as associações de profissionais liberais, em especial os médicos, além dos estabelecimentos comerciais, o transporte urbano e a patronal industrial. Era o lock-out patronal massivo…
A paralisação espalhou-se pelo país e se dotou de um programa, o chamado “Pliego de Chile”1, que foi replicado pelos principais meios de comunicação e era um verdadeiro roteiro para a derrubada de Allende.
O governo e a CUT reagiram formalmente, sem muita energia nem iniciativa, mas as massas deram uma resposta impressionante. Os trabalhadores decidiram que a conspiração burguesa para paralisar o país não prosperaria e resolveram tomar a produção nas suas mãos. As fábricas foram ocupadas, os meios de transporte foram em muitos casos requisitados, muitos comércios foram abertos à força, começaram a organizar-se formas de controlo de preços e de distribuição direta de produtos de primeira necessidade em forma massiva, contra o cada vez mais florescente mercado paralelo (calcula-se que cerca de metade da população de Santiago era abastecida pelos organismos populares em 73, apesar de que 70% da distribuição atacadista estava nas mãos privadas e abastecia o mercado paralelo). Ah, sim, sem esquecer os comités de vigilância para enfrentar os bandos fascistas e proteger as indústrias.
Além dos cordões, surgiram comités de coordenação com as lutas de bairros, os comandos comunais. Nas fábricas e bairros, pouco importava a filiação política, mesmo os trabalhadores democrata-cristãos aderiram a esta frente única de classe que tinha um caráter muito mais amplo que os setores organizados pela CUT e os partidos de esquerda. O lock-out patronal tinha fracassado! E nunca antes a classe trabalhadora chilena havia expressado tal combatividade, união e energia!
Mas os dirigentes da UP não estavam à altura dos seus liderados. Em vez de se apoiarem na mobilização para encurralar e derrotar a burguesia e os seus partidos, optaram pelo caminho da conciliação. Um processo que tinha começado como uma série de reformas importantes, mas todas compatíveis com o sistema capitalista, havia chegado, pouco a pouco, a um impasse por força da intensa polarização de classes, para chegar a um novo auge em outubro. Sem atingir ainda uma situação tão explosiva como em outras situações revolucionarias como na Espanha em 36 ou a Bolívia em 52, mas com um grau de mobilização inédito na América Latina em muito tempo.
Existiam as condições para romper as amarras do legalismo e do programa auto-restritivo da UP. Mas não foi essa a conclusão da maioria da sua liderança. E mesmo os que pediam o avanço, na ala esquerda da própria UP, não percebiam que era preciso forjar uma alternativa independente dela. Na verdade, constituíam-se em outro empecilho para a radicalização necessária, pois insistiam que o poder popular não deveria ser realmente independente, procuravam utilizá-lo como um elemento de pressão pela esquerda nos marcos do apoio ao governo.
A paralisação da direita terminou quando Allende concluiu um acordo com a DC para incluir os comandantes das forças armadas no gabinete, com a principal missão de garantir as eleições parlamentares de março de 1973 e devolver as fábricas ocupadas durante o lock-out de outubro. Do ponto de vista económico, isso veio a ser conhecido como o plano Prats-Millas. Os seus formuladores foram o general Prats, comandante do Exército e Ministro do Interior (e pela Constituição chilena de então, Vice-presidente), e Orlando Millas, do PC e ministro de Economia e previa reduzir a Área de Propriedade Social das 120 empresas inicialmente previstas para somente 49. Recordemos que cerca de 200 estavam ocupadas naquele momento, como fruto do lock-out de outubro. Este número chegou a mais de 300 em 73, agrupando cerca de 40% dos trabalhadores industriais do país. O plano, oficialmente lançado em 24 de janeiro, foi duramente combatido pelos cordões industriais com novas manifestações no centro de Santiago e barricadas nos distritos industriais. O plano teve que ser convenientemente engavetado, pois o governo não tinha forças para impô-lo.
As eleições de 73, o tancazo e a preparação do golpe
Contrariamente a todas as expectativas, a oposição burguesa não conseguiu os 2/3 dos votos para declarar o impedimento de Allende, mesmo com os milhões de dólares despejados pelo imperialismo americano, o galopante mercado paralelo, a inflação que fechou 1972 ao redor de 200%. Com os 44% dados à UP, a via institucional do processo chileno estava fechada, como reconheceu o principal assessor político de Allende, o catalão Joan Garcés. Era voz corrente que o enfrentamento entre o processo revolucionário e a contrarrevolução era inevitável.
O padrão após a metade de 72 se repetiu de forma acentuada: a oposição utilizou todas as suas armas legais, o poder Judiciário, o Congresso, a controlaria da República, o seu poder económico, financiando o mercado negro, o desabastecimento, os lock-out patronais, as associações de classe média e seus meios extralegais, os bandos armados fascistas.
Em 29 de junho dá-se o penúltimo ato do processo, já prenunciando o desastre: um regimento de tanques levanta-se em Santiago, cerca o palácio presidencial, mata cerca de 22 pessoas, mas não consegue a adesão das demais unidades das Forças Armadas. A reação popular é espetacular, novamente, e num tempo concentrado: naquele dia, outra vez, a grande maioria das empresas foi ocupada. Uma grande manifestação comandada pelos cordões industriais vai a uma concentração em frente ao palácio exigindo o fechamento do Congresso e a punição aos golpistas.
Mas Allende foi inflexível e apegou-se desesperadamente à institucionalidade, deixando até de aplicar medidas elementares de saneamento dentro das corporações militares, coisa que muitos governantes pelo mundo já o fizeram em situações similares sem serem revolucionários. No final da manifestação apresentou os generais que, junto com Prats, tinham sido os heróis que tinham impedido o triunfo do golpe e declarou o estado de emergência, o que dava aos militares o controlo do país.
Os meses seguintes mostraram a oposição a preparar o terreno para o golpe: a Suprema Corte e o Congresso declararam a ilegalidade do governo, abrindo o caminho “legal” aos golpistas.
Os militares começaram a exercitar-se e coesionar as suas fileiras. O pretexto foi a Lei de Controlo de Armas aprovada após o lock-out de outubro, sem que Allende a vetasse, e que permitia que os militares realizassem operações de busca e apreensão em qualquer lugar. A decisão de não vetar essa lei foi um erro brutal de Allende, pensando que esta poderia servir para reprimir a extrema-direita. Com essa desculpa, os oficiais foram acostumando os soldados rasos a enfrentarem-se com os trabalhadores, foram testando a resistência dos cordões industriais.
O tancazo não foi planeado como um ensaio de golpe, foi obra da ala mais fascista do exército junto com Patria y Libertad, mas serviu para que os golpistas avaliassem a capacidade de resistência do movimento de massas. Do ponto de vista militar, ficou claro que o legalismo dos anos de governo tinha deixado o movimento sem capacidade de reação: os tanques do regimento rebelado passearam algumas horas pela cidade sem serem perturbados e só quando os regimentos de Santiago saíram para combatê-los é que foram detidos. E os comandantes de tropas pelo país mantiveram um silêncio ensurdecedor durante o dia.
Uma última e patética negociação foi patrocinada por Allende e o PC: um novo diálogo com a Democracia Cristã, já claramente voltada para a derrubada do governo. O jornal do PC, El Siglo, estampava a manchete, “depois de um tancazo, por que não um dialogazo?” E por intermináveis cerca de 30 dias perderam tempo com uma campanha contra a guerra civil, quando o necessário era preparar-se para ela… A DC exigiu a capitulação total (um gabinete só de militares, a devolução de todas as empresas ocupadas, a promulgação de reforma constitucional que limitava drasticamente a APS e a repressão aos cordões industriais), o que Allende não podia aceitar.
Os trabalhadores ficaram confusos e desmoralizados pela negativa do governo em contra-atacar a direita e pelas concessões feitas. Uma última, simbólica e inútil concessão foi a entrega do Canal 9 de TV, da Universidade do Chile, ocupado por seus trabalhadores e que conseguiam furar um pouco o bloqueio jornalístico dos monopólios televisivos. Prevendo qualquer ataque, os trabalhadores, por meio de seus sindicatos, designavam guardas permanentes para proteger o canal 9.
O resto já é conhecido. O golpe de 11 de setembro teve pouca, mas heroica resistência, em especial em algumas fábricas dos cordões e em bairros populares.
Adaptação de português do Brasil (PT-BR) para português de Portugal (PT-PT) por Mariana Carneiro.
1 O Pliego do Chile exigia o fim do fecho de rádios (sediciosas), do banco único, do afogamento da Papeleira (principal monopólio de produção de papel do país), a proibição das expropriações, devolução dos bens nacionalizados a seus donos, reformas constitucionais que limitariam os poderes do presidente, e acabar com a censura a 155 rádios privadas, estabelecidas pelas autoridades militares depois da declaração do estado de exceção. Foi convocada uma paralização geral de atividades para o dia 24 de outubro.