O “tempo livre” no capitalismo, em tese, é o tempo que as pessoas passam fora dos seus trabalhos. Apesar de aparentemente este conceito ter uma definição simples é necessário problematizar essa questão. Vários autores mostram-nos como o “tempo livre” é alienado na sociedade capitalista, ou seja, não somos totalmente livres para escolher o que fazer com nosso tempo fora do trabalho. Em grande parte desse tempo, por exemplo, acabamos por consumir produtos da indústria cultural de maneira também alienada.
Para Theodor Adorno “[as pessoas] Nem em seu trabalho, nem em sua consciência dispõem de si mesmas com real liberdade”[1]. Os papéis sociais impostos definem em grande medida o que são e o que fazem as pessoas: acabam por definir até o que as pessoas farão com o seu “tempo livre”. A própria divisão entre trabalho – vista como obrigação muitas vezes desagradável – e tempo livre – que deve ser utilizado para se fazer atividades “agradáveis” a partir da escolha da própria pessoa – já denota que o trabalho é colocado como o oposto de satisfação pessoal[2]. Adorno explora essa questão mostrando como apenas pessoas privilegiadas, de classes sociais abastadas, tem a rara oportunidade de escolher a profissão que lhes agrada – e mesmo tais pessoas estão alienadas do próprio trabalho, já que vivem na sociedade capitalista.
Um dos exemplos dados pelo autor de uso alienado do tempo livre é o turismo, já que muitas vezes os “pacotes de turismo” são organizados por empresas com objetivo de lucro. A pessoa compra um desses pacotes para tentar “descansar” e não pensar no seu próprio emprego, ou seja, é uma restauração da mão de obra para que esta se acalme e não tenha doenças emocionais, podendo voltar a trabalhar após alguns dias de descanso. A classe trabalhadora deve usar seu tempo livre para se manter com boa saúde voltando ao trabalho de maneira produtiva. Até a sua distração no tempo livre é um meio de fazer com o que o trabalhador e a trabalhadora não tenham, por exemplo, problemas mentais/emocionais que o impeçam de trabalhar. Nesse sentido, o tempo fora do trabalho também é necessário para a “reprodução da classe trabalhadora” (voltaremos a esse tema à frente).
Passando para um autor brasileiro, o sociólogo Ricardo Antunes também explora este tema: “(…) as diversas manifestações de estranhamento atingiram, além do espaço da produção, ainda mais intensamente a esfera do consumo, a esfera da vida fora do trabalho, fazendo do tempo livre, em boa medida, um tempo também sujeito aos valores do sistema produtor de mercadorias. O ser social que trabalha deve somente ter o necessário para viver, mas deve ser constantemente induzido a querer viver para ter ou sonhar com novos produtos[3].
Ou seja, a sociedade capitalista distancia as pessoas de sua essência humana, fazendo com que tanto o trabalho quanto o tempo livre sejam tempos alienados da vida humana. A classe trabalhadora deve ter apenas o necessário para se manter viva, não podendo ter mais tempo livre ou mais salário que o necessário para sua manutenção. Além, é claro, do consumo de itens que estejam inseridos na lógica de capital, como produtos desnecessários e alienantes, por exemplo os jogos de computador, e até mesmo aquilo que é produzido pela “indústria cultural”, como filmes, séries e novelas – a cultura acaba por funcionar também conforme a lógica do lucro.
Nesse sentido, a classe trabalhadora precisa ter o mínimo para a reprodução da própria classe. Reprodução no sentido de ter filhos para que estes um dia sejam trabalhadores e trabalhadoras, mas também reprodução no sentido de se manterem vivos. A manutenção das pessoas e sua multiplicação na sociedade capitalista é essencial para a manutenção do sistema, logo, os “patrões” devem pagar esse preço.
Ocorre que a reprodução da vida humana não ocorre sem trabalho. Chamamos de trabalho reprodutivo, ou trabalho doméstico, o tempo que a classe precisa trabalhar “fora do trabalho” para se manter alimentado, limpo, cuidado, assim como as crianças e idosos que não podem se cuidar sozinhos, etc. Ou seja, os trabalhadores e trabalhadoras ainda precisam encaixar no “tempo livre” o trabalho doméstico!
Trabalho doméstico é trabalho. É tempo necessário socialmente para a sobrevivência da classe trabalhadora. Acaba sendo problemático que alguns autores, como o próprio Adorno, considerem o trabalho doméstico como se este fosse feito porque as pessoas querem fazê-lo no seu tempo livre e não porque é necessário.
Até porque, dentro dessa discussão não se pode nunca esquecer que o capitalismo se apropriou da opressão da mulher para que esta fizesse quase todo o trabalho reprodutivo sozinha. Mesmo hoje que dizem que as “mulheres ganharam o mercado de trabalho” não se pode esquecer que quem continua a cumprir com todo o trabalho doméstico são maioritariamente as mulheres. Mesmo as que não fazem esse trabalho contratam outra mulher, na maioria das vezes negra, pobre, imigrante etc, para fazer esse trabalho no “seu” lugar.
Ou seja, reprodução da mão de obra não é tempo livre. Mesmo assim, acredito que a classe trabalhadora deve lutar sempre pela diminuição da jornada de trabalho, já que com mais tempo livre, no limite da liberdade que o capitalismo “oferece”, é que os trabalhadores e trabalhadoras poderão se reunir para discutir política e traçar estratégias de luta. Também é necessária a luta feminista por uma divisão das tarefas domésticas igualitária entre os géneros (enquanto essas tarefas não são coletivizadas), já que política que exclui mulheres – porque estas precisam ficar a cuidar da casa ao invés de se reunir com companheiros e companheiras de classe – não é política de verdade. Além do fato de que a duração da jornada de trabalho está intimamente ligada com a questão do desemprego estrutural…
Seguiremos em luta pela diminuição da jornada, mesmo com os ataques cada vez mais frequentes aos direitos trabalhistas feitos por um congresso conservador e representante dos interesses mais reprováveis do modo de produção capitalista.
Artigo de Thamíris Evaristo para o blogue Cientistas Feministas. Adaptado para português europeu pelo esquerda.net.
Referências
- ^ ADORNO, Theodor. Palavras e sinais – modelos críticos 2. Petrópolis: Editora Vozes, 1995, p. 70.
- ^ ADORNO, Thedor, op. cit., p. 73: “Essa rígida divisão da vida em duas metades [trabalho e não trabalho] enaltece a coisificação que entrementes subjugou quase completamente o tempo livre.”
- ^ ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho. 15ª Edição. São Paulo: Editora Cortez, 2008, p. 94.
ADORNO, Theodor. Palavras e sinais – modelos críticos 2. Petrópolis: Editora Vozes, 1995.
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho. 15ª Edição. São Paulo: Editora Cortez, 2008.
Jean Henrique Costa, Marcela Amália Pereira Cabrita e Tássio Ricelly Pinto de Farias: “Notas sobre o tempo livre em Theodor W. Adorno”, Revista Turydes: Turismo y Desarrollo, n. 17 (dezembro 2014). Disponível em: http://www.eumed.net/rev/turydes/17/tiempo-livre.html