A gata borralheira - uma história para adultos

Numa altura em que os holofotes da ficção parecem enamorados pelo servilismo, remetendo-o a um passado longínquo ou a um cenário futuro, no presente o trabalho doméstico continua condenado à invisibilidade e à subalternização. Artigo de Inês Brasão.

22 de julho 2018 - 9:46
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A gata borralheira - uma história para adultos
Imagem da Série “Handmaid’s Tale”.

Retirando a transformação das abóboras em carruagem e a delicadeza do sapatinho de cristal, a Gata Borralheira é uma história sobre o uso discricionário de poder na família, subalternizando a filha que repudiaram três mulheres e condenando a Gata ao trabalho reprodutivo, libertando assim as restantes mulheres para uma vida sem panos sujos, nem mãos gretadas - uma vida de festa e sociabilidade. A Gata Borralheira conta uma história de violência. Sobravam-lhe os tempos de folga num sótão partilhado com os amigos ratos, numa analogia perfeita do que foram as condições de servidoras criadas na família dos seus patrões. A violência sobre trabalhadoras na esfera privada foi sempre invisibilizada, uma vez que se prolonga como fio de uma dupla ordem patronal e patriarcal naturalizada por quem a sustenta.

Sejamos claros. Na história da vida privada, foram as mulheres da aristocracia e as classes ociosas[1] quem primeiro se demarcou do trabalho reprodutivo (exceto o ato de parir, porque mesmo a amamentação era saciada pelo recurso a amas de leite). Em face da possibilidade de se absterem do trabalho reprodutivo, relegaram esse trabalho para mulheres que albergaram na sua esfera privada, sem horas nem qualquer regulação, movidas pela obediência e fidelidade, a troco de cama e mesa, pelas quais deviam ser agradecidas, e com recurso à punição e ao castigo físico. Dizia-se que eram tratadas como filhas, uma coisa da casa, tão coisa que o uso do seu corpo e do seu sexo era também uma possibilidade que sobrevivia sem culpa. Progressivamente, o recurso ao trabalho doméstico estendeu-se às classes médias e este modelo de divisão do trabalho reproduziu-se tão facilmente quanto as papoilas que crescem nos terrenos banhados pelo sol de primavera. Em cada casa, uma criada. A família garantia o seu nível de bem-estar dando à serviçal um trabalho (só muito tardiamente remunerado), afastando-se do sujo, do chão, dos fluidos, dos escoamentos e remoção de dejetos dos bacios, limpeza de sapatos, costura, branqueamento dos tecidos pintados de sangue e esperma, vinho ou gordura … A separação histórica entre trabalho reprodutivo e trabalho doméstico descreve uma história de distinção social em que determinadas classes assumiram que o seu status se definia – também - por contratar servidoras e servidores para fazer o trabalho reprodutivo. Assim, esta necessidade de afastamento tem uma origem de classe definida, embora se fosse massificando progressivamente às classes médias trabalhadoras. Mas, a bem da verdade, ele foi bem resolvido por quem pôde meter em casa uma (ou muitas) trabalhadoras domésticas, instituindo uma fratura entre famílias cujas mulheres e homens se libertam do pó e dos cuidados pessoais, e outras a quem à mulher sempre coube o triplo fardo, sem apelo nem agravo.

Depoimento de duas trabalhadoras domésticas imigrantes (Emissão Mais África TV, Debate por um trabalho Doméstico Digno), Lisboa, 16 de junho de 2018. Fonte: Arquivo Comunidária.

No passado dia 16 de junho – data que celebra Dia Internacional de Luta Por um Trabalho Doméstico Digno – a Associação Comunidária revelou os primeiros dados provisórios sobre a situação do Trabalho doméstico em Portugal, uma iniciativa do Observatório do Trabalho Doméstico. Os dados resultam da aplicação de um questionário a trabalhadoras e empregadores domésticos e o primeiro resultado que importa e impressiona é uma devastadora ausência de conhecimento da Convenção 189 da OIT. Esta Convenção[2] foi adotada em 2011 e entrou em vigor para a República Portuguesa no dia 17 de julho de 2016. Estipula medidas para assegurar a promoção e a proteção efetivas dos direitos humanos nesta classe profissional. Mas, como diz Magdala Gusmão, o rosto da Comunidária[3] “em Portugal, encontramo-nos no Ponto Zero do conhecimento e da aplicação da Convenção. O zero absoluto.” Os resultados são frágeis, até pelo elevado número de não-respostas. Mas a verdade é que essas não-respostas são um espelho da invisibilidade a que esta classe foi – e continua a ser - votada. Questionadas sobre os aspetos que gostariam de ver resolvidos no âmbito da regulação do seu trabalho, revelam nos seus depoimentos problemas e desejos estruturais por resolver: a legalização dos contratos de trabalho, o direito a subsídio de férias, o direito a férias, o direito à segurança social, o fim do trabalho de interna, o valor do salário, a consideração do trabalho doméstico enquanto profissão oficial, a equiparação de direitos com o resto da classe trabalhadora ou a proteção no desemprego, na doença e na reforma.

Parece evidente existir hoje um reavivamento das antigas formas de serviço doméstico, mesmo na realidade portuguesa. Alguns estudos parecem associar esse reavivamento à paridade de trabalho qualificado entre homem e mulher que obriga a substituí-los nas funções domésticas por profissionais de cuidado dos filhos, de manutenção de padrões de conforto, assepsia e limpeza. É necessário não desligar este reavivamento da modalidade da empregada(o) interna(o) dos fenómenos transmigratórios e, portanto, de uma reprodução das condições de extrema vulnerabilidade a que esta condição profissional sempre foi sujeita.

A verdade é que estamos perante o caso de um paradoxo: se a invisibilidade e subalternização do trabalho doméstico continua como principal mote da sua caracterização, não deixa de ser verdade que nunca esteve tão “visível” no plano ficcional. Os holofotes da ficção estão enamorados pelo servilismo e pela teia de fronteiras ténues que esse servilismo suscitou na relação entre servos e senhores. São disso exemplo as séries Alias Grace, Handmaid's Tale ou Gran Hotel. Mas é interessante notar que essas ficções se projetam num passado longínquo ou num futuro que se vislumbra, deixando ao presente um espaço de realidade por compreender.

E ocorre-me deixar-vos com um dos depoimentos que resulta das entrevistas realizadas no âmbito do Observatório do Trabalho Doméstico: «Que as mães ensinem os filhos sobre as lides domésticas para que não dependam duma mulher. E que muitos não façam da sua moça Gata Borralheira, tornando-a escrava.”

Notas

  1. ^ Repare-se que o facto de a classe ociosa se reservar à ocupação de funções de prestígio e usufruto da sociabilidade de salão é, em grande medida, suportado por uma classe de subalternos que lhes credibiliza esse prestígio e viabiliza uma elevada estilização da vida privada, como salienta Thorstein Veblen.
  2. ^ Convenção 189, disponível em: https://www.dgert.gov.pt/convencao-n-o-189-relativa-ao-trabalho-digno-p…
  3. ^ Informação sobre a Comunidária disponível em:  http://www.comunidaria.org/
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