24 horas por dia

24 horas por dia, 365 dias por ano, sem pausas e (quase) sem apoios sociais: em Portugal, assim é prestado o cuidado informal. Artigo de Joana Alves.

22 de julho 2018 - 9:55
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24 horas por dia
Foto de Paulete Matos.

O aumento evidente das necessidades de cuidados trouxe um impulso adicional à investigação da produção de bem-estar. Nas últimas décadas, esta atenção tem vindo a voltar-se para o papel da família na provisão de cuidados aos familiares com necessidades de apoio elevadas. De um modo geral, a reflexão sobre a produção de bem-estar tem concluído que a produção de cuidado continua a encontrar nas relações de parentesco e de proximidade a sua base de sustentação (Goodhead et al., 2007). Esta centralidade dos laços informais na provisão de cuidado acontece em todos os contextos, no entanto revela-se fundamental naqueles onde não existe uma extensa rede formal cuidados e onde os níveis das prestações sociais são baixos, como em Portugal.  A investigação realizada no nosso país tem revelado isso mesmo, ao enfatizar a importância que os apoios informais têm no âmbito da proteção social. Num contexto onde a providência estatal nunca foi muito expressiva, são os apoios informais que respondem em primeiro lugar às necessidades dos/as cidadãos/ãs (Santos, 1993; Hespanha et al., 2002; Portugal, 2006).

A investigação que tenho vindo a desenvolver no âmbito da problemática da deficiência e do cuidado (Alves, 2011; 2017), tem mostrado isso mesmo, ao evidenciar que quanto mais grave for a situação de dependência e mais exigentes forem as necessidades, maior é o envolvimento da família na prestação de cuidados. Em casos onde as pessoas nascem, se tornam adultas e envelhecem com um tipo de deficiência e/ou incapacidade que as torna dependentes e que exige uma atenção diária e para toda a vida, ou que durante o seu ciclo de vida têm períodos de elevada dependência que exigem um cuidado quotidiano e continuado por um período longo de tempo (por vezes anos), a ausência do apoio formal torna o apoio informal central na vida destas pessoas.

O trabalho realizado tem revelado impactos profundos do cuidado na vida de quem cuida em todos os domínios considerados (trabalho, emprego, lazer, saúde, vida afetiva, etc.), uma dificuldade de conciliação do papel de cuidador/a com outros papéis sociais e uma tendência para o isolamento das famílias.

A análise do apoio formal mostrou a incapacidade deste em responder ativamente às necessidades das pessoas com deficiência e dos/as seus/suas cuidadores/as, quer no apoio em serviços, quer em apoios pecuniários. Os serviços existentes não estão preparados para atenderem necessidades específicas, o nível dos apoios pecuniários é baixo.

Os discursos de quem cuida não silenciam a ausência estatal. Pelo contrário. Eles denunciam-na, por repetidas vezes, apontando o dedo a um Estado que consideram ausente, que sentem que os abandonou a si e aos/às seus/suas. Sentem-se desconsiderados, nomeadamente quando comparam os valores recebidos pelas instituições e aquilo que recebem para desempenhar o mesmo tipo de funções. No entanto, jamais lhe atribuem uma responsabilidade que julgam sua. As pessoas constroem, nas práticas e nas representações, um modelo de produção de bem-estar onde o cuidado é concebido como responsabilidade familiar e o Estado é subsidiário. A análise dos cuidados de longa duração mostra que quanto mais exigente é o tipo de apoio, maior é a responsabilização da esfera privada e da família.

A prestação formal de cuidados apresenta um quadro de intervenção que se revela incapaz de integrar as especificidades e necessidades individuais, produzindo uma atenção normalizada e normalizadora, que dificilmente atende às circunstâncias de vida das pessoas com quem falei e dos/as seus/suas familiares. Pelo contrário, o cuidado prestado pelas pessoas entrevistadas centra-se nas especificidades de quem é cuidado. As vidas dos/as cuidadores/as são construídas na relação com o outro e na resposta às suas necessidades. Fruto de uma inevitabilidade da vida, mas, também, de uma escolha pessoal, o cuidado informal ancora-se em relações sobretudo legíveis no domínio do simbólico. A paternidade, o amor e a relação afetiva estabelecida entre quem cuida e quem é cuidado são o móbil das relações de cuidado, construídas através de uma socialização e história familiares que as naturalizam como fazendo parte da esfera doméstica e, especificamente, do trabalho das mulheres.

As pesquisas que tenho desenvolvido têm revelado os profundos impactos que o papel de cuidador/a tem na vida dos indivíduos e as dificuldades que se apresentam à sua conciliação com outros papéis sociais. As exigências da prestação de cuidado permanente e de longa duração produz quotidianos desgastantes e rotinizados, com impactos no trabalho, no emprego, no lazer, na saúde, nas sociabilidades, nas relações familiares. Se pensarmos que as mulheres continuam a ser as principais produtoras de cuidado, percebemos que são elas as principais lesadas pela ausência de respostas de apoio para quem cuida.

Ouvir estas pessoas é perceber a urgência de medidas que minimizem os impactos negativos do cuidado na vida de quem cuida e de quem é cuidado e que garanta um patamar digno de qualidade de vida a estas famílias. Uma menor burocratização no acesso aos apoios formais, a integração das pessoas e das suas famílias nas escolhas sobre os seus percursos institucionais, um melhor atendimento às especificidades individuais, a possibilidade de pausas no papel de cuidador, a criação de espaços de entreajuda e partilha de experiências, a criação de uma valência de apoio às famílias para estadia temporária, e de residências para estadia permanente são algumas das vias possíveis para potenciar o cuidado prestado pela esfera doméstica, sem o esgotamento dos/as cuidadores/as.


Referências Bibliográficas:

Alves, Joana (2017), Cuidar e ser cuidado. Uma análise do cuidado quotidiano, permanente e de longa duração. Tese de Doutoramento em Sociologia. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Alves, Joana (2011), Vidas de Cuidado(s). Uma análise sociológica do papel dos cuidadores informais. Tese de Mestrado em Sociologia. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Goodhead, Anne; McDonald, Janet (2007), Informal Caregivers Literature Review. A report prepared for the National Heath Committee. Wellington: Health Services Centre, Victoria University of Wellington.

Hespanha, Pedro; Portugal, Sílvia (2002), A Transformação da Família e a Regressão da Sociedade-Providência. Porto: CCRN.

Hespanha, Pedro; et al. (2001), “Globalização insidiosa e excludente. Da incapacidadede organizar respostas à escala local” in Pedro Hespanha e Graça Carapinheiro (orgs.), Risco social e incerteza. Pode o Estado Social recuar mais?. Porto: Afrontamento, pp. 25-54.

Santos, Boaventura de Sousa (1993), “O Estado, as relações salariais e o bem-estar social na semiperiferia: o caso português.”, in Boaventura de Sousa Santos (org.), Portugal: um Retrato Singular. Porto: Edições Afrontamento, pp. 17-56.

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