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As "soluções" tecnológicas para o coronavírus fazem o estado de vigilância subir de nível

O propósito solucionista é convencer o público de que o único uso legítimo das tecnologias digitais é perturbar e revolucionar tudo, menos a instituição central da vida moderna - o mercado. Artigo de Evgeny Morozov.
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Imagem de Gerd Altmann por Pixabay.

Em poucas semanas, o coronavírus fechou a economia global e pôs o capitalismo nos cuidados intensivos. Muitos teóricos manifestaram a esperança de que o vírus venha a dar origem a um sistema económico mais humano; outros advertem que a pandemia prenuncia um futuro mais sombrio de vigilância estatal tecno-totalitária.

Os clichés datados das páginas de 1984 já não são um guia fiável para o que está para vir. E o capitalismo de hoje é mais forte - e mais estranho - do que os seus críticos imaginam. Os seus inúmeros problemas não só apresentam novos caminhos para o lucro, como também reforçam a sua legitimidade - uma vez que a única salvação será fornecida por pessoas como Bill Gates e Elon Musk. Quanto piores forem as suas crises, mais fortes serão as suas defesas: não é seguramente assim que o capitalismo acaba.

No entanto, os críticos do capitalismo têm razão em ver a Covid-19 como uma prova dos seus avisos. Revelou a falência dos dogmas neoliberais de privatização e desregulamentação - mostrando o que acontece quando os hospitais são geridos com fins lucrativos e a austeridade retalha os serviços públicos. Mas o capitalismo não sobrevive apenas pelo neoliberalismo: este último desempenha somente o papel do polícia mau, insistindo, nas palavras da famosa máxima de Margaret Thatcher, que "não há alternativa".

O bom polícia neste drama é a ideologia do "solucionismo", que transcendeu as suas origens no Vale do Silício e que agora molda o pensamento das nossas elites dominantes. Na sua forma mais simples, defende que por não haver alternativa (ou tempo ou financiamento), o melhor que podemos fazer é aplicar pensos rápidos digitais aos danos. Os Solucionistas utilizam a tecnologia para evitar a política; defendem medidas "pós-ideológicas" que mantêm as rodas do capitalismo global em movimento.

Após décadas de política neoliberal, o solucionismo tornou-se a resposta padrão a tantos problemas políticos. Por que razão investiria um governo na reconstrução de sistemas de transportes públicos em rutura, por exemplo, quando poderia simplesmente utilizar grandes volumes de dados para criar incentivos personalizados aos passageiros para desencorajar as viagens nas horas de ponta? Como disse há alguns anos o arquiteto de um desses programas em Chicago, "as soluções do lado da oferta [como] a construção de mais linhas... são bastante caras". Em vez disso, "o que estamos a fazer é analisar formas de os dados poderem gerir o lado da procura... ajudando os residentes a compreenderem melhor o tempo de viagem".

As duas ideologias têm uma relação estreita. O neoliberalismo aspira a remodelar o mundo de acordo com as referências da guerra fria: mais concorrência e menos solidariedade, mais destruição criativa e menos planeamento governamental, mais dependência do mercado e menos previdência social. O declínio do comunismo tornou esta tarefa mais fácil - mas a ascensão da tecnologia digital constituiu de facto um novo obstáculo.

Como assim? Embora os grandes volumes de dados e a inteligência artificial não favoreçam naturalmente as atividades não mercantis, tornam mais fácil imaginar um mundo pós-neoliberal - onde a produção é automatizada e a tecnologia sustenta os cuidados de saúde e a educação universais para todos: um mundo onde a abundância é partilhada e não apropriada.

É precisamente aqui que entra o solucionismo. Se o neoliberalismo é uma ideologia proativa, o solucionismo é reativo: desarma, desativa e descarta quaisquer alternativas políticas. O neoliberalismo encolhe os orçamentos públicos; o solucionismo encolhe a imaginação pública. O propósito solucionista é convencer o público de que o único uso legítimo das tecnologias digitais é perturbar e revolucionar tudo, menos a instituição central da vida moderna - o mercado.

O mundo está atualmente fascinado pela tecnologia solucionista - desde uma aplicação polaca que exige que os doentes com coronavírus tirem regularmente selfies para provar que estão dentro de casa, até ao programa chinês de classificação de saúde para smartphones com código de cores, que rastreia quem está autorizado a sair de casa. Os governos têm recorrido a empresas como a Amazon e a Palantir para a criação de infra-estruturas e modelação de dados, enquanto a Google e a Apple uniram esforços para permitir soluções de rastreio de dados com "preservação da privacidade". E assim que os países entrarem na fase de recuperação, a indústria tecnológica emprestará de bom grado os seus conhecimentos tecnocráticos para a limpeza. A Itália já colocou Vittorio Colao, o antigo CEO da Vodafone, à frente da sua task force pós-crise.

Na verdade, podemos ver duas vertentes distintas de solucionismo nas respostas governamentais à pandemia. Os "solucionistas progressistas" acreditam que a exposição atempada e baseada em aplicações à informação correta pode fazer com que as pessoas se comportem de acordo com o interesse público. Esta é a lógica do "empurrão", que moldou a desastrosa resposta inicial do Reino Unido à crise. Em contrapartida, os "solucionistas punitivos" querem utilizar a vasta infra-estrutura de vigilância do capitalismo digital para refrear as nossas atividades diárias e punir quaisquer transgressões.

Já passámos um mês a debater como estas tecnologias podem ameaçar a nossa privacidade - mas isso não é o maior perigo para as nossas democracias. O verdadeiro risco é o de esta crise vir a consolidar o conjunto de ferramentas solucionistas como a opção por defeito para resolver todos os outros problemas existenciais - desde a desigualdade às alterações climáticas. Afinal de contas, é muito mais fácil utilizar a tecnologia solucionista para influenciar o comportamento individual do que fazer perguntas políticas difíceis acerca das causas profundas destas crises.

Mas as respostas solucionistas a esta catástrofe só irão acelerar a diminuição da nossa imaginação pública - e tornar mais difícil imaginar um mundo sem que os gigantes da tecnologia dominem a nossa infra-estrutura social e política.

Agora somos todos solucionistas. Quando as nossas vidas estão em jogo, as promessas abstratas de emancipação política são menos tranquilizadoras do que a promessa de uma app que nos diz quando é seguro sair de casa. A verdadeira questão é saber se amanhã continuaremos a ser solucionistas.

O solucionismo e o neoliberalismo são tão resistentes, não porque as suas ideias subjacentes sejam assim tão boas, mas porque essas ideias remodelaram profundamente as instituições, incluindo os governos. O pior ainda está para vir: a pandemia irá sobrealimentar o Estado solucionista, como o 11 de Setembro fez para o Estado vigilante, criando uma desculpa para preencher o vazio político com práticas antidemocráticas, desta vez em nome da inovação e não apenas da segurança.

Uma das funções do Estado solucionista é desencorajar os criadores de software, os hackers e os aspirantes a empreendedores de experimentarem formas alternativas de organização social. Que o futuro pertence às start-ups não é um facto da natureza, mas sim um desfecho político. Em resultado disso, os projectos tecnológicos mais subversivos, que poderiam impulsionar economias não baseadas na solidariedade e não no mercado, morrem na fase de protótipo. Há uma razão pela qual não vimos surgir outra Wikipédia há já duas décadas.

Uma política "pós-solucionista" deveria começar por esmagar o binário artificial entre a ágil start-up e o governo ineficiente, que limita os nossos horizontes políticos de hoje. A nossa pergunta não deveria ser: que ideologia - social-democracia ou neoliberalismo - pode aproveitar e dominar melhor as forças da concorrência, mas sim: de que instituições precisamos para aproveitar as novas formas de coordenação social e de inovação proporcionadas pelas tecnologias digitais?

O debate de hoje sobre a resposta tecnológica correta à covid-19 parece tão abafado precisamente porque não se vislumbra uma política pós-solucionista deste tipo. Gira em torno das soluções de compromisso entre privacidade e saúde pública, por um lado, e em torno da necessidade de promover a inovação por parte das start-ups, por outro. Por que razão não existem outras opções? Não será porque deixámos que as plataformas digitais e os operadores de telecomunicações tratassem todo o nosso universo digital como o seu feudo?

Eles gerem-no apenas com um objectivo em mente: manter a microssegmentação a funcionar e os micropagamentos a fluir. Em resultado disso, pouco se pensou na construção de tecnologias digitais que produzissem perceções anónimas a nível macro sobre o comportamento coletivo dos não-consumidores. As plataformas digitais de hoje são os locais de consumo individualizado e não de assistência mútua e solidariedade.

Embora possam ser utilizadas para fins não comerciais, as plataformas digitais de hoje constituem uma base fraca para uma ordem política aberta a outros agentes que não os consumidores, as start-ups e os empresários. Se não recuperarmos as plataformas digitais para uma vida democrática mais vibrante, estaremos condenados durante décadas a uma escolha infeliz entre soluções "progressistas" e "punitivas".

E a nossa democracia sofrerá com isso. A festa do solucionismo desencadeada pela covid-19 revela a extrema dependência por parte das democracias realmente existentes em relação ao exercício antidemocrático do poder privado pelas plataformas tecnológicas. A nossa primeira tarefa deve ser a de traçar um caminho pós-solucionista - um caminho que dê soberania às pessoas sobre as plataformas digitais.

Caso contrário, queixarmo-nos da resposta autoritária mas eficaz da China à covid-19 não só é patético como hipócrita: há muitas variedades de tecno-autoritarismo no nosso futuro, e a versão neoliberal não parece muito mais atraente do que a alternativa.
 


Artigo publicado no Guardian, 15 abril 2020. Tradução de Luís Branco para o esquerda.net

Evgeny Morozov é editor do site The Syllabus e  autor dos livros “Net Delusion” (2011) e “To Save Everything, Click Here” (2013).

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