Amazónia: Fundamental para o clima, fundamental para a vida
A Amazónia é o principal ecossistema terrestre do planeta. A floresta é lar de aproximadamente uma entre cada 10 espécies vivas conhecidas, incluindo pelo menos 40 mil espécies de plantas, milhares de espécies de vertebrados e uma inimaginável variedade de insetos e outros invertebrados. Embora a maior parte do oxigênio produzido por fotossíntese na floresta seja utilizado pela sua própria biota (com papel destacado para a respiração vegetal, de formigas e cupins e a decomposição de matéria orgânica), seu papel na regulação planetária é inegável. Afinal, o estoque de carbono nela contido equivale a pelo menos 10 anos das emissões globais de gases de estufa por todas as atividades humanas somadas! Além disso, a Amazónia é um elemento fundamental no ciclo hidrológico do continente: cerca de 1/5 da água doce superficial do planeta escoa pela Bacia Amazônica e os chamados “rios voadores” transportam, até o Sudeste do Brasil e a Bacia do Prata uma enorme quantidade de vapor d’água que emana da floresta pela evapotranspiração.
O Caos Climático é uma ameaça à Amazónia, mesmo se interrompendo o desmatamento [desflorestação]...
Elemento fundamental da biodiversidade e do clima planetários, a Amazónia, mesmo que ninguém lhe derrubasse uma árvore sequer, já tem seu destino ameaçado pelo caos climático. A ocorrência mais frequente de secas severas como as de 2005 e 2010 produzem mortandade de árvores em grande escala. Uma eventual elevação de temperatura de vários graus Celsius é possível mesmo em cenários de mitigação que limitem o aquecimento global a cerca de 2°C, já que os continentes aquecem mais do que os oceanos. Isso pode produzir temperaturas que aumentam perigosamente as taxas de evaporação e o stress hídrico sobre a vegetação e, no limite, comprometem até mesmo as enzimas responsáveis pela fotossíntese.
Com secas mais severas, estações secas mais prolongadas e incapacidade de sustentar a fotossíntese nos níveis atuais, a Amazónia correrá, primeiro, o risco de perder a sua capacidade de servir de sumidouro de carbono. Esse sequestro de carbono atualmente tem contribuído para reduzir a acumulação, na atmosfera, do CO2 advindo da queima de combustíveis fósseis.
Num segundo momento, o risco é de sofrer, pelo menos em parcela extensiva de sua área, um processo de savanização, isto é, de substituição da vegetação de floresta tropical por outra mais parecida com a do cerrado brasileiro ou ainda mais esparsa. Nesse caso, a floresta deixaria de ser sumidouro de carbono para ser uma fonte emissora, pois o carbono perdido da biomassa seria lançado na atmosfera na forma de CO2, produzindo um “feedback” climático, ou retroalimentação, em que o aquecimento global seria amplificado pelas emissões da própria floresta em processo de declínio.
... Mas o Desmatamento Antecipa a Tragédia
Tragicamente, é possível que ainda que o aquecimento global não chegue a níveis de comprometer a integridade funcional do ecossistema amazônico, a floresta – ou parte significativa dela – se perca pela interferência humana direta (desmatamento e queimadas). Estima-se que 1 milhão de quilômetros quadrados da Amazónia, ou quase 20% da área da floresta, tenha sofrido desmatamento, quase 11 vezes o território de Portugal. Parte dessa área encontra-se em processo de recuperação (cerca de 150.000 km2), o que nos deixa ainda um total de 17% da área da floresta desmatado.
Esse processo leva a vários problemas: alterações no ciclo hidrológico, fragmentação do bioma, emissões de CO2 etc. Para se ter uma ideia da gravidade que são esses 17% de área desmatada, lembramos que estudos mais recentes avaliam como sendo de 20 a 25% o percentual a partir do qual, mesmo sem o aquecimento global, a floresta entra em risco de declínio (ao contrário de estudos mais antigos, que estimavam esse limiar como sendo em torno de 40%).
Diferente da maioria dos países do mundo, incluindo parcela significativa dos países em desenvolvimento, a maior parte das emissões de carbono do Brasil está associada diretamente à mudança no uso do solo, ou seja, ao desmatamento. Mesmo em anos recentes, em que o desmatamento foi reduzido, as emissões brasileiras associadas a esse processo têm sido consistentemente iguais ao dobro de todas as emissões de energia no país (incluindo transporte, geração de eletricidade etc.). No auge, em 2004, as emissões de mudança no uso do solo no Brasil chegaram ao incrível valor de 2,9 mil milhões de toneladas de CO2 – equivalente mais de 5 vezes e meia às emissões atuais da aviação internacional. Mesmo em 2015, após uma década de reduções consistentes, o valor de 886 milhões de toneladas equivale a mais de 15 vezes as emissões decorrentes do uso de combustíveis fósseis em Portugal.
Queimadas modificam até o comportamento das nuvens
No dia 19 de agosto, uma “nuvem negra” transformou em noite a tarde de São Paulo. Sobre a capital paulista, uma frente fria produziu nuvens profundas, que puxaram para dentro de si a fumaça trazida pelos “rios voadores”. Análises químicas da chuva não deixaram dúvidas sobre a presença de fuligem em níveis várias vezes maior do que o normal (mesmo para uma cidade com elevada poluição urbana) e de substâncias que são produzidas especificamente pela queima de biomassa, como o reteno.
Esse fenômeno foi uma amostra de outro aspecto, menos conhecido, do efeito do desmatamento e queimadas na atmosfera da Amazónia. Visitar estados como Rondônia e Mato Grosso no início do segundo semestre pode ser aterrorizante para alguns: a fumaça cobre o ambiente o tempo todo e o sol, escondido por trás dela, parece uma esfera tímida, de cor avermelhada. A poluição produz uma quantidade gigantesca de partículas (ou aerossóis) que servem núcleos de condensação, sobre os quais o vapor d’água se condensa para formar nuvens. No ambiente poluído, a presença desses núcleos é dezenas de vezes maior do que o normal; em nuvens formadas diretamente sobre as queimadas (pirocúmulos), centenas de vezes.
As nuvens formadas em tais condições comportam-se de modo estranho. Como a humidade se distribui em muitas partículas, uma quantidade enorme de gotículas muito pequenas surge, ao contrário de ambientes limpos, em que se forma uma quantidade menor de gotículas, mas com dimensões maiores. De tão minúsculas, as gotículas formadas em ambiente poluído por queimadas não conseguem crescer ao ponto de se tornarem gotas de chuva. A precipitação só ocorre se a nuvem crescer bastante, possibilitando que cristais de gelo se formem. A chuva ocorre de maneira menos distribuída e só é produzida pelas nuvens mais vigorosas e mais escuras. As correntes ascendentes dessas nuvens sugam o ar logo abaixo, fazendo com que elas sejam literalmente capazes de expelir fumaça.
Pérolas aos porcos
O desmatamento sobre a Amazónia é um problema que remonta à colonização, à invasão europeia ao continente e ao genocídio dos seus povos originários; à escravidão e aos sucessivos ciclos económicos. Mas na lógica do “colonizador interno”, avançou a cada novo projeto de “desenvolvimento”.
Na ditadura militar, a instalação de estradas, grandes hidroelétricas, linhas de transmissão etc. esteve associada à matança de indígenas, com mais de 6 mil mortos somente nas etnias Cinta Larga e Waimiri-Atroari.
Mais recentemente, além das madeireiras, do garimpo e outras atividades, veio a expansão acelerada da fronteira agrícola. Durante os anos 1990, foram mais de 163 mil km2 perdidos. De 2000 a 2004, outros 111 mil km2 de floresta se foram. Gado e soja foram os principais vilões, desses anos para cá, como parte de uma integração do Brasil ao mercado internacional em que o país passou a ser fornecedor de produtos agropecuários e minérios (de ferro, em particular), fazendo dos crimes da Samarco e da Vale em Mariana e Brumadinho parentes próximos da devastação da Amazónia.
Em 1995, as exportações de carne bovina brasileiras eram especialmente voltadas para a Europa e somavam 132 milhões de dólares. Recentemente, com valores 33 vezes maiores, o foco das exportações girou para leste, sendo hoje dominadas por Hong Kong, China, Rússia e Irão, além do Egito.
O “boom” da soja acelerou o desmatamento não apenas na Amazónia mas também no Cerrado. De 1995 a 2005, a presença da soja na balança comercial brasileira aumentou de 842 milhões de dólares (com os Países Baixos sendo o principal importador) para 5,4 mil milhões, com as exportações já divididas entre Europa e Ásia (com a China já sendo a líder em importações). Mais dez anos, e as exportações – então amplamente dominadas pela China (74%) – já ultrapassavam 21 mil milhões de dólares.
O modus operandi do agronegócio é bem conhecido: desmata, queima, coloca gado e, anos depois, ocupa com soja. Esta é, na sua esmagadora maioria, usada para fabricar ração que alimenta animais confinados. Especialmente na China, a soja brasileira – cuja produção carrega o imenso custo socioambiental da devastação de ricos biomas como a Amazónia e o Cerrado, bem como do extermínio dos seus povos – alimenta o gigantesco rebanho suíno. A expressão “pérolas aos porcos” assume um significado genuinamente dramático neste caso.
Num governo que é pura farsa, a história do desmatamento se repete como tragédia
Como se vê, o ecocídio (ou ecogenocídio) na Amazónia não é de hoje e evidentemente não surgiu com Bolsonaro. Mas é inaceitável que o ocupante da presidência do Brasil, o ministro do Ambiente Ricardo Salles (ligado a mineradoras e agronegócio, condenado por fraude ambiental) e os defensores do desgoverno brasileiro em geral queiram diminuir a dimensão do problema.
Com efeito, políticas iniciadas no início dos anos 2000, com Lula presidente e Marina Silva ministra do Meio Ambiente, reduziram a velocidade do desmatamento, aperfeiçoando os sistemas de monitoramento do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), com a introdução do DETER, fortalecendo os órgãos de fiscalização e fechando linhas de crédito para desmatadores ilegais.
Ainda nos tempos de Dilma, essa redução foi interrompida, mediante o estreitamento dos acordos entre o petismo e o agronegócio, o enfraquecimento do Código Florestal (principal legislação sobre o tema) e o aprofundamento, em geral, da política desenvolvimentista. Claro, com o golpe o quadro piorou e, sobretudo com a chegada de Bolsonaro, adquiriu a conotação de catástrofe. Foram 30901 focos de incêndio em agosto/2019, quase o dobro da média para o mês, entre 2011 a 2018, que foi de 16090 (aumento de 92%). Considerando o período janeiro-agosto, foram 46825 focos, contra 26403 na média 2011-2018 (aumento de 77%). Importante dizer: é praticamente impossível a ocorrência natural de combustão na Amazónia, o que significa que todos esses incêndios foram provocados.
Esse crescimento substancial não é casual. Bolsonaro anunciou aos quatro ventos que iria “acabar com a indústria de multas do IBAMA” (o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), o que serviria de senha para que ruralistas, madeireiros, garimpeiros, etc., se sentissem num reino de impunidade, amparados pelo próprio governo federal. Os indígenas foram declarados inimigos (Bolsonaro garantiu que não demarcaria “nem mais um milímetro” de terra indígena e chegou a prometer a revisão de vários processos de demarcação). Foi para demonstrar apoio ao ecocida-em-chefe, que ruralistas programaram o “dia do fogo”, símbolo de um crescimento inédito das queimadas desde 2011.
O ecocídio precisa ser contido. Bolsonaro e os ruralistas precisam ser detidos. As consequências de seus atos já seriam suficientemente abomináveis se permanecessem circunscritas ao território do Brasil, mas não! Os efeitos são planetários. Junte-se a isso o facto de haver mecanismos de mercado internacionais envolvidos e concluímos que a tarefa de interromper a devastação da Amazónia seja mundial, combatendo além do desgoverno à frente do Brasil, o agronegócio e a indústria da carne por ela responsáveis.
Alexandre Araújo Costa é um físico, professor e ambientalista brasileiro. Tem graduação e mestrado em Física pela Universidade Federal do Ceará, doutoramento em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Estado do Colorado, e pós-doutoramento na Universidade Yale.