A Fogueira das Vaidades

No planeta dos bolsonaros, toda fogueira tem serventia. Mesmo que a nuvem de fumaça dos incêndios que estão a destruir a Amazónia já seja vista até do espaço, na terra plana ela continua a nublar verdades enquanto o fogo também queima quem se opõe às leis da ganância. Por Alessandra Fonseca e Cintya Floriani

10 de setembro 2019 - 19:41
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Monitoramento e combate ao Incêndio na região de Sorriso no Norte de MT. Foto: Mayke Toscano/Secom-MT
Monitoramento e combate ao Incêndio na região de Sorriso no Norte de MT. Foto: Mayke Toscano/Secom-MT

Arrogância, ganância e ignorância alimentam a fogueira da vaidade. E o Brasil está a arder nesta fogueira da sua vaidade endémica. A arrogância desembarcou connosco na terra habitada por quem nós chamávamos de “selvagens” e dela apossamo-nos para alimentar nossa vaidade. A ignorância “limpou” as plantas, os bichos e os índios do caminho para ladrilhá-lo e nele poder arrastar seus vestidos, sacudir suas carruagens, cravar suas esporas e fazer rolar seu ouro. Há mais de 500 anos o Brasil é o país das oportunidades e o habitante ilustre de um país de oportunidades é sempre um oportunista.

A fogueira que queima as riquezas naturais no Brasil começou a arder há muito tempo, mas nunca antes estivemos tão próximos do ponto em que a Amazónia não terá mais a capacidade de autorregular-se para manter em equilíbrio a biodiversidade e a distribuição de água para todo o interior da América do Sul. O ponto sem retorno de recuperação seria alcançar os 40% de destruição, mas o aumento das temperaturas indica que é prudente não arriscar mais e manter o nível do desmatamento [desflorestação] em 20%, um limite que estamos a superar. Bom lembrar ainda, que é generalizada a ignorância sobre a verdadeira riqueza que a Amazónia esconde. Além da sua importância na regulação da humidade, do ar e da temperatura mundial, há um equilíbrio fino e invisível de um banco de diversidade incalculável, incluindo vírus e bactérias desconhecidos para nosso sistema imunológico e povos nativos que nunca tiveram contacto com a civilização.

Se o ponto sem retorno para a recuperação da floresta for invadido, não saberemos. Foto Sergio Vale
Se o ponto sem retorno para a recuperação da floresta for invadido, não saberemos. Foto Sergio Vale

Se o ponto sem retorno para a recuperação da floresta for invadido, não saberemos. A ganância e a vaidade irão permitir-nos morrer na ignorância e desaparecer juntamente com todos estes segredos que lá estavam guardados para preservar-nos.

Com o fogo ativo, sem retorno à vista, a saída para o impasse é uma miragem no deserto. O tempo da floresta não acompanha o tempo medíocre da vida humana que acaba muito antes da plenitude de uma árvore centenária. A Amazónia é um sistema frágil que se mantém graças a retroalimentação de nutrientes pela matéria orgânica que produz. Se queimar ou desmatar a terra fica infértil. E nós, que aqui estamos, não teremos tempo de ver as árvores centenárias que acumulam carbono, regulam o ar, o clima e a água do mundo.

Muitos bolsonaristas que acreditam que a Terra é plana, fazem a fumaça da ignorância alastrar-se rapidamente. Na terra dos bolsonaros não existe aquecimento global, o índio precisa modernizar-se, a ciência, os cientistas e os estudantes são comunistas e precisamos produzir mais soja para alimentar o gado que alimenta o homem. No planeta dos bolsonaros, toda fogueira tem serventia. Mesmo que a nuvem de fumaça dos incêndios que estão a destruir a Amazónia já seja vista até do espaço, na terra plana ela continua a nublar verdades enquanto o fogo também queima quem se opõe às leis da ganância. E assim foi demitido o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), responsável pela monitorização da Amazónia, que há meses alertava para destruição em aumento da floresta.

A arrogância fez o governo negar o holocausto e recusar recursos do Fundo Amazónico vindo da Noruega e da Alemanha para promover o uso sustentável na maior floresta tropical do mundo. Em troca, preferiu receber a ajuda de 11 combatentes de incêndio de Israel. Sim, são 11 mesmo. Repito: não são 111. São ONZE. Como uma equipe de futebol para correr o equivalente a 4,2 milhões de campos de futebol com 70 mil focos de incêndio.

A ignorância fez o governo extinguir o departamento de combate ao desmatamento do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), acusar as ONGs que trabalham na região, subestimar a gravidade da situação e só tomar providências depois da pressão internacional.

A ganância na gestão pública de Bolsonaro é terrorismo de Estado. Como também é terrorismo de Estado a cumplicidade com o crime ambiental, o ataque aos cientistas e aos dados produzidos por cientistas, o silêncio frente à invasão de terras indígenas para mineração do ouro (que utiliza mercúrio no seu processo e contamina o maior reservatório de água em superfície do planeta) e a conivência com a violência. A cumplicidade do governo com o crime é Terrorismo de Estado em nome da ganância.

A educação publica foi a área que mais sofreu cortes em 2019. Foto: Leandro Taques / Mídia NINJA
A educação publica foi a área que mais sofreu cortes em 2019. Foto: Leandro Taques / Mídia NINJA 

A estratégia de destruição sistémica só é possível se a fogueira das vaidades for alimentada também pelas estruturas do conhecimento que garantem a ignorância generalizada a longo prazo. A educação publica foi a área que mais sofreu cortes em 2019 e o orçamento de 2020 já mostrou que a situação vai piorar. Entretanto, as empresas da educação privada estão em alta na bolsa de valores. A educação deixa de ser um direito e transforma-se em produto no país com mais de 5 milhões de pessoas que não tem o que comer para conseguir aprender a ler.

Ainda que a fogueira das vaidades esteja a arder há séculos, nunca antes um líder brasileiro havia demonstrado arrogância, ignorância e ganância de forma tão explícita. Nunca antes um líder brasileiro esteve a desafiar pessoal e abertamente o senso comum dos direitos universais e do equilíbrio das relações internacionais. Nunca antes um líder brasileiro havia rotundamente negado diálogo com todos os setores progressistas do mundo e transformado a destruição dos marcos civilizatórios no seu plano de governo, em nome de um patriotismo antiquadamente militarizado e uma soberania subserviente a interesses obscuros.

Na terra plana dos bolsonaros, a estratégia é o silencio sobre suas verdadeiras intenções. Quando a opinião pública internacional faz ruído, o governo sustenta-se no direito à soberania. Os acontecimentos do Brasil sob o governo de extrema direita têm sido repercutidos na imprensa internacional, mas a grandiosidade da Amazónia fez aumentar o ruído e uniu a todos.

Brasileiros que conseguem ter acesso à informação que não está manipulada pelo governo, despertam diariamente no pesadelo, sem entender como deixaram escapar o cavalo selvagem do fascismo que tanto seduz os arrogantes, gananciosos e ignorantes.

O holocausto está institucionalizado no Brasil e o aumento de mais de 80% de incêndios na Amazónia será a câmara de gás que atingirá a todos a longo prazo quando estiver destruído um bioma que determina o ar que respira, a chuva que cai e o calor que queima no mundo inteiro.

E o que acontece quando um holocausto se instala? A selvajaria.

Se para o presidente do Brasil, a Amazónia “é a virgem que todo tarado quer”, podemos imaginar como corre solto o cavalo selvagem no ritmo de quem o monta.

Se fosse mesmo a existência de alma o que definia a diferença entre nós e os “selvagens” que encontrámos quando chegámos no Brasil há 500 anos, teríamos de admitir que nossa alma foi a primeira a queimar na fogueira das vaidades que está a destruir a Amazónia.

Selvagens somos nós.

Alessandra Fonseca é bióloga, professora dra. associada da Universidade Federal de SC;

Cintya Floriani é jornalista, gestora de projetos e doutoranda da Universidade de Lisboa.

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