Os cientistas climáticos já se pronunciaram: se quisermos limitar o aquecimento global provocado pelos humanos a 1.5ºC, até podemos consegui-lo. Mas será difícil, dado o ponto de partida.
É esta a conclusão do novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas das Nações Unidas (IPCC). O ênfase no 1.5ºC é o resultado de anos de negociações internacionais. A partir de 1994, um objetivo central das iniciativas da ONU para as alterações climáticas (a Convenção Quadro sobre Alterações Climáticas, ou UNFCCC) era estabilizar as emissões de gases de efeito estufa num nível que “impeça uma interferência antropogénica perigosa com o sistema climático”. Muito se debateu acerca do que isto quereria dizer, em especial a palavra “perigosa”.
Os impactos negativos das alterações climáticas dão-se em contínuo, e apontar uma altura em que a alteração climática se torna perigosa é difícil e controverso. Por outro lado, as negociações sobre alterações climáticas tornam-se difíceis sem haver uma meta a atingir.
Quinze anos depois, o Acordo de Copenhaga da UNFCCC introduziu a meta de 2ºC, e o Acordo de Paris de 2015 foi ainda mais específico: ele “tem por objetivo fortalecer a resposta global à ameaça das alterações climáticas… limitando o aumento da… temperatura bem abaixo de 2ºC acima dos níveis pré-industriais e desenvolver esforços para limitar o… aumento a 1.5ºC”.
O IPCC fornece aconselhamento científico à UNFCCC, que define a política, e o IPCC por si nunca definiu um objetivo para a temperatura. Contudo, ele elenca os riscos das alterações climáticas, através de “cinco motivos de preocupação”. Eles incluem impactos como “ameaças aos ecossistemas e culturas únicos” (como os recifes de coral) e condições meteorológicas extremas, cada qual avaliado numa escala de “indetetável” a “muito alto”. A mais recente Quinta Avaliação das provas científicas feita pelo IPCC conclui que um aquecimento em torno de 1.5ºC produz uma mudança de risco moderado para alto no que toca aos ecossistemas e culturas ameaçadas e às condições meteorológicas extremas. Há então uma coerência entre as avaliações do IPCC e do Acordo de Paris.
O Acordo de Paris pediu ao IPCC para fazer um relatório sobre os impactos do aquecimento global de 1.5ºC, e esta publicação é o resultado desse trabalho. O seu tom não é “temos de evitar o aquecimento de 1.5ºC”, como se podia concluir do que vão dizendo tantos comentadores, mas sim “se queremos evitar o aquecimento de 1.5ºC, é isto que deve ser feito”. O relatório compara o impacto do aquecimento de 1.5ºC e 2ºC, dando informação acerca do que poderia ser ganho pelo esforço suplementar necessário a limitar o aquecimento a 1.5ºC.
Os compromissos dos países que integram o Acordo de Paris ainda querem dizer que estamos no caminho para um aquecimento de cerca de 3ºC em 2100, o que significa que quatro dos cinco “motivos de preocupação” estariam então na categoria de alto ou muito alto.
Como os relatórios do IPCC são em boa parte baseados em avaliações críticas e sínteses de artigos científicos publicados, muitas destas recentes conclusões não trazem surpresas. Há muitas incertezas bem identificadas na compreensão das alterações climáticas — por exemplo, mesmo se seguirmos o caminho para limitar o aquecimento a 1.5ºC (o que será determinado sobretudo pelas emissões de CO2 no futuro), podíamos em vez disso acabar por atingir, digamos, 1ºC ou 2ºC. O relatório contém margens de incerteza nas suas previsões e níveis de confiança, fundamentadas em pareceres especializados.
Este novo relatório diz-nos que a atividade humana já provocou cerca de 1ºC de aquecimento global, enquanto ao nível de aquecimento atual (0.2ºC por década) atingiremos 1.5ºC lá para 2040. Os compromissos dos países que integram o Acordo de Paris ainda querem dizer que estamos no caminho para um aquecimento de cerca de 3ºC em 2100, o que significa que quatro dos cinco “motivos de preocupação” estariam então na categoria de alto ou muito alto.
Alcançar a meta de 1.5ºC requer que as emissões antropogénicas de CO2 caiam 45% em 2030 (em relação a 2010). Em 2050, terão de atingir o “zero líquido” – qualquer emissão de CO2 devido a atividade humana teria de ser compensada pela retirada de CO2 que já está na atmosfera, por exemplo através da plantação de árvores. O zero líquido teria de acontecer por volta de 2075 para atingir a meta de 2ºC.
São dados muitos exemplos para explicar a diferença entre os mundos com 1.5ºC e 2ºC. Com 1.5ºC, o mar de gelo do Ártico no verão deverá desaparecer uma vez em cada século, comparado com uma vez por década no cenário de 2ºC; 8% das plantas conhecidas perderiam metade da sua área climaticamente adequada, comparado com 16%; o aumento do nível do mar seria 10cm menor (com 10 milhões de pessoas a menos a sofrerem esse impacto, tendo em conta os níveis atuais de população); e enquanto os recifes de coral poderão diminuir até 80% com o aumento de 1.5ºC, poderão desaparecer na prática com 2ºC.
O relatório identifica vários caminhos pelos quais os cortes nas emissões ppoderão limitar o aquecimento a 1.5ºC; cada um define os pressupostos de mudanças futuras no que diz respeito, por exemplo, à estratégia económica, crescimento da população e o ritmo da adoção de energia de baixo teor de carbono. O IPCC reconhece que os desafios estão a “uma escala sem precedentes”, mas afirma por exemplo que “a viabilidade da energia solar, energia eólica e mecanismos de armazenamento de eletricidade melhorou bastante nos últimos anos”.
O relatório é sensível ao facto de que as mudanças necessárias para atingir 1.5ºC devem ser coerentes com os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU. Limitar as alterações climáticas vai ajudar a alcançar os objetivos ligados à saúde, energia limpa, cidades e oceanos. Mas há impactos negativos potenciais noutros objetivos (pobreza, fome, água, acesso à energia) “se não forem geridos com cuidado”.
Então, e agora? Como é evidente, estas conclusões serão objeto de um alagado debate a muitos níveis, mas as atenções estão voltadas para a resposta da UNFCCC na sua próxima conferência em Katowice, na Polónia, no início de dezembro.
Keith Shine é Regius Professor de Meteorologia e Ciência Climática na Universidade de Reading. Artigo publicado no portal The Conversation. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.
Keith Shine recebe (ou recebeu há pouco tempo) financiamento do Natural Environment Research Council do Reino Unido e do programa de investigação e inovação da UE, o Horizonte 2020. Esteve envolvido na escrita de vários relatórios de avaliação do IPCC (enquanto autor ou editor de revisão). Não teve nenhuma dessas funções neste relatório do 1.5ºC mas enviou comentários de revisão a este relatório numa das suas duas fases de avaliação.