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Que bonito, parecem mesmo uma família a sério

Optar pela adoção como modelo de parentalidade é embarcar numa aventura simultaneamente maravilhosa e aterradora. Dirão que isso não difere da parentalidade biológica. À primeira vista poderá assim parecer, mas existem diferenças significativas. Artigo de Sandra Cunha.
Que bonito, parecem mesmo uma família a sério
Foto de Paulete Matos.

Famílias há que, em sociedades democráticas e modernas, incluindo a sociedade portuguesa, continuam a deter um estatuto de inferioridade e subalternidade. Mais, esse estatuto serve de alibi para tratamento desigual e discriminações grosseiras na lei e na vida concreta.

Mas vamos por partes.

Optar pela adoção como modelo de parentalidade é embarcar numa aventura simultaneamente maravilhosa e aterradora. Dirão que isso não difere da parentalidade biológica. À primeira vista poderá assim parecer, mas existem diferenças significativas. Decorrem sobretudo da forma como a sociedade encara e se relaciona com as famílias por via da adoção.

“Então, mas não queres ter filhos mesmo teus?” está no top 3 das mais aviltantes perguntas feitas a qualquer pai ou mãe por via da adoção que se preze. Frequentemente ouvem também a pergunta “E conhecem os pais verdadeiros do vosso filho/a?” Também pode passar por comentários. Alguns dos mais usuais são “Que bonito, parecem mesmo uma família a sério” ou ainda “É tão parecida contigo. Impressionante, parece mesmo tua filha!”

E não se julgue que as crianças escapam a estes mimos. Das perguntas na escola: “ – E como é que os tratas? – Pai e mãe. – A sério?” ou “Olha, o teu pai falso está a chegar” ou mesmo “Ainda falas com os teus pais verdadeiros?”

Estes são os comentários que a maior parte das famílias por via da adoção ouve durante grande parte da sua vida, ou pelo menos de cada vez que a forma de constituição da família é revelada.

Por vezes, os comentários até se estendem aos netos: “Mas não são mesmo teus netos, pois não? Porque a tua filha não é mesmo tua filha, pois não?”

Não se afirma aqui que esses comentários sejam feitos com a intenção expressa de discriminar, mas estes exemplos não deixam de refletir a visão que persiste na sociedade sobre as famílias por via da adoção. Estas são sempre famílias de substituição, famílias de segunda, de faz de conta, menos verdadeiras e, logo, menos legítimas. O estigma cola-se e teima em resistir à passagem do tempo, da modernidade e da evidência das transformações e da diversidade das famílias, mas também dos valores fundamentais da democracia. É um estigma que radica numa conceção de família profundamente ancorada na primazia do biológico, que enaltece os laços de sangue e secundariza e menoriza qualquer relação que não os detenha.

Mas não é só na relação quotidiana e mundana com os outros que a primazia do biológico produz desigualdades e discriminações. Encontram-se igualmente na relação com o Estado e com a lei vários exemplos de discriminações injustificáveis que desmascaram a conceção biologista e o essencialismo genético através dos quais se continua a definir e a legitimar as famílias.

Não obstante a lei[1] estabelecer a adoção como “o vínculo que, à semelhança da filiação natural, mas independentemente dos laços de sangue, se estabelece entre duas pessoas” e de afirmar que “pela adoção, o adotado adquire a situação de filho do adotante e integra-se com os seus descendentes na família deste (…)”, são vários os diplomas legais[2] que distinguem entre filho e adotado e que imprimem a ideia que o adotado não é filho.

Claramente, a intenção do legislador foi a de consagrar a criança que é adotada enquanto filha de quem a adota. Não faz sentido, portanto, e é mesmo um contrassenso, continuar a distinguir-se filho de adotado já que, depois de adotado, se torna inviolável e irrevogavelmente filho. Este contrassenso revela a dificuldade, também ao nível da lei, de se firmar uma visão igualitária entre as famílias biológicas e as famílias por via da adoção. E esta distinção legitima a diferença de tratamento entre filhos biológicos e filhos por via da adoção.

Ainda mais explicita do que a discriminação latente na linguagem, são as discriminações que a legislação atual imprime ativamente às famílias por via da adoção. É o caso das licenças de parentalidade.

As licenças de adoção têm sido historicamente inferiores às licenças da parentalidade biológica. Até 2009, as licenças de adoção eram de 100 dias, 20 dias a menos do que para quem tivesse um filho por via biológica.

Esta desigualdade foi justificada pela ideia da recuperação física da mãe após o parto, mas decorria igualmente da conceção conservadora que entendia (e ainda entende) a relação de filiação por via da adoção enquanto relação “de substituição” e, consequentemente, relação “menor”, merecedora, por isso, de menos direitos.

Se a necessidade de recuperação física da mãe após o parto é inegável, não menos relevante é o tempo e a disponibilidade necessária aos candidatos à adoção e à criança que foi adotada, para se conhecerem, adaptarem e, em especial, para que se crie o tal vínculo em tudo semelhante ao vínculo da filiação biológica.

Na adoção, não existem nove meses de preparação e construção de ligação emocional entre os pais e a criança. Na maioria das vezes, após o tão desejado telefonema dos serviços de adoção que marca o início de uma nova vida, tudo acontece num ápice. É com este telefonema que os candidatos à adoção ficam a conhecer as características da criança que passará a fazer parte da sua vida: a sua idade, nível de escolaridade, historial clínico, a personalidade, os medos e os traumas. Ou seja, só nessa altura ficam a saber se a criança pratica atividades desportivas ou artísticas, se precisa de apoio escolar, de acompanhamento psicológico ou de cuidados médicos especiais, se será necessário procurar uma creche ou uma escola ou se é preciso montar um berço ou um beliche. Tudo é uma incógnita e o tempo proporcionado pelas licenças é fundamental não só para as exigências logísticas e práticas mas também, e especialmente, para que a família se possa conhecer e criar um “vínculo à semelhança da filiação natural”, condição primordial para o sucesso da adoção e, nessa medida, critério decisivo para a obtenção da sentença judicial de adoção que marca também o vínculo legal da família.

Com a aprovação do Código do Trabalho de 2009[3], esta desigualdade foi eliminada, estando atualmente os adotantes a beneficiar de uma licença de parentalidade equivalente à dos pais por via biológica. No entanto, nem todas as desigualdades foram eliminadas e continua a limitar-se direitos a pais e mães por via da adoção e obviamente, às crianças que adotam.

Na atual redação do artigo 43º do Código do Trabalho[4] - licença parental exclusiva do pai -, encontra-se um exemplo flagrante desta discriminação, assim como no que respeita às dispensas para efeitos de avaliação da pretensão da candidatura à adoção.

No primeiro caso, a licença parental exclusiva do pai obriga-o ao gozo de uma licença parental de 20 dias seguidos ou interpolados nas seis semanas seguintes ao nascimento da criança, concedendo-lhe ainda o direito de gozar mais cinco dias desde que gozados em simultâneo com a licença parental inicial da mãe. Os pais por via da adoção não têm direito a esta licença.

Como se explica e defende que a criança que chegou a uma família por via da adoção não tenha direito à atenção e ao tempo dos pais em simultâneo e nas mesmas condições que a criança que entrou na família por via biológica?

No que se refere à dispensa para efeitos de avaliação da candidatura à adoção, o Código de Trabalho prevê atualmente que, “para efeitos de avaliação para a adoção, os trabalhadores têm direito a três dispensas de trabalho para deslocação aos serviços da segurança social ou receção dos técnicos em seu domicílio, devendo apresentar a devida justificação ao empregador.[5] Já a dispensa para consultas pré-natais é concedida pelo tempo e número de vezes necessários.

Esta diferença de tratamento fala por si, mas torna-se ainda mais grave quando, por via do novo Regime Jurídico da Adoção[6], passou a ser obrigatória, para efeitos de avaliação da candidatura à adoção, a frequência de sessões de formação para a parentalidade por via da adoção, compostas por três a quatro módulos de várias horas cada. Adicionalmente, são feitas entrevistas psicossociais e ainda aplicados outros instrumentos de avaliação complementar que podem passar pela realização de testes psicotécnicos ou outro tipo de atividades. É, portanto, incerto o número de vezes que os candidatos, no âmbito do processo de avaliação da candidatura à adoção, se têm de ausentar do trabalho.

Estas ações são obrigatórias, mas a lei não contempla a dispensa no trabalho. Assim, os candidatos à adoção têm comummente de recorrer a estratégias diversas para poderem comparecer, desde tirar dias de férias a apelar à boa vontade dos empregadores. Vê-se, assim, mais uma discriminação inaceitável na lei: para cumprir o desejo de parentalidade, os pais por via biológica podem faltar ao trabalho, para consultas pré-natais pelo tempo e número de vezes necessário, portanto, sem limite. No caso dos candidatos a adoção, há um limite de três dispensas.

A adoção visa cumprir o superior interesse da criança, garantindo às crianças o direito a uma família. Mas que superior interesse é esse se é sujeito a tantas interpretações e alvo de tantas discriminações? Como é que, enquanto sociedade, podemos arrogar-nos a pretensão de opinar, teorizar e legislar, tendo por farol o superior interesse da criança, se somos impregnados de tantas ideias preconcebidas que nos levam a não reconhecer como iguais as famílias que não partilhem laços de sangue?

Os exemplos aqui referidos, e que não esgotam as situações de discriminação, estigma e mitos sobre a adoção, revelam o olhar da sociedade sobre as famílias por via da adoção: como famílias que nunca serão tão legítimas quanto as famílias biológicas porque lhes falta o essencial – a partilha de cromossomas.


Sandra Cunha é deputada e dirigente do Bloco de Esquerda.


Notas

  1. ^ Código Civil, número 1 do artigo 1586º e número 1 do artigo 1986º
  2. ^ Código Civil, Código do Processo Civil, Código do Trabalho
  3. ^ Lei n.º 7/2009, de 12 fevereiro
  4. ^ Versão atualizada pela Lei n.º 93/2019, de 4 de setembro
  5. ^ Artigo 45º da Lei n.º 93/2019, de 4 de setembro
  6. ^ Lei n.º 143/2015 de 8 de setembro

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