Prefácio a Kollontai, de Ferreira de Castro

Em 1933, a primeira edição portuguesa conhecida de uma obra de Kollontai foi prefaciada por um dos maiores escritores portugueses da época, José Ferreira de Castro. Divulgamos aqui esse documento histórico na íntegra.

27 de março 2022 - 20:20
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Capa da tradução portuguesa do livro de Kollontai.
Capa da tradução portuguesa do livro de Kollontai.

Apresentamos aqui o prefácio àquela que terá sido a primeira edição portuguesa de um livro de Alexandra Kollontai (intitulado A mulher moderna e a moral sexual). Data de 1933, já na fase final de transição da ditadura militar para uma ditadura de tipo fascista sob a liderança de Salazar – o chamado “Estado Novo”. A difusão de literatura socialista em Portugal já era censurada e reprimida mas não da forma mais severa que pouco depois se instituiu.

Do autor deste prefácio, sublinhe-se que José Ferreira de Castro além de ter sido um dos maiores escritores portugueses do século XX, era também uma referência política como intelectual anarquista e antifascista. E tinha tido um papel destacado no movimento sindical na década de 1920, pelo seu contributo na redação do jornal A Batalha [encerrado pela ditadura em 1927] e na presidência da direção do “Sindicato dos Profissionais de Imprensa de Lisboa”, os jornalistas [que também seria encerrado pela ditadura no final desse ano de 1933].

É uma intervenção já datada de há quase 90 anos; e que se enquadra no apoio que alguns militantes anarquistas `portugueses já antes vinham dando, à época, às causas do feminismo e da educação sexual, bem como à abolição da prostituição. Nomes como Jaime Brasil, Adolfo Lima ou José Carlos de Sousa.

Leiamos Ferreira de Castro (na ortografia original, da época):


Talvez por ter sido eu um dos escritores portugueses que, primeiramente, se referiram a esta obra, o seu editor pede-me que a prefacie. A tarefa é fácil. Alexandra Kolontay tem, hoje, um nome universal, sendo conhecida em todos os países a sua orientação ideológica.

Não sucedia, porém, assim, até 1917. A sua acção revolucionária, as suas conferências iconoclastas, as suas doutrinas de rebelde, que a levavam a uma vida forçadamente errante, só eram conhecidas dos povos do norte da Europa. Companheira de Kautsky, de Rosa Luxemburgo e da Clara Zetkin, esta mulher culta, inteligente, gastou a sua mocidade a pregar a emancipação humana, o progresso das ideias, a integração da espécie humana dentro duma vida mais justa, mais elevada, menos iníqua do que a actual. Sofreu, por isso, todas as perseguições; ao longo do seu apostolado tudo eram espinhos e ciladas; teve de atravessar, clandestinamente, muitas fronteiras, de esconder-se da polícia e, muitas vezes, de respirar atravez das grades das cadeias.

Mas, com a vitória da revolução de 1917, quase tudo isso terminou. Alexandra Kolontay constituiu mesmo uma das muitas surpresas que esse movimento trouxe ao mundo. A sua personalidade foi revelada universalmente, estudado o seu passado e traduzidas em numerosas línguas as suas obras. Lançada pelos comunistas, Alexandra Kolontay apareceu, então, como uma espécie de «vedeta» da diplomacia internacional. Foi nomeada embaixatriz dos Sovietes em Oslo e, depois, no México. As revistas e os jornais apossaram-se da sua fotografia e raros serão os olhos que, nos mais diversos recantos do planeta, não se tenham demorado a contemplar essa figura de beleza eslava, que, no final da guerra, parecia abrir um novo caminho e um novo destino para as mulheres.

Nesse tempo, já Alexandra Kolontay não era nova, pois nasceu em 1872. As fotografias falavam dum encanto feminino que entrara no outono, mas que parecia estar, ainda, muito longe dele.

Afirmavam os jornais inimigos das teorias comunistas que Kolontay fazia, em Oslo, vida de ostentação, que era o diplomata que mais dinheiro gastava em superfluidades, enquanto na Rússia havia homens que morriam à fome. Chegou-se, para isso, a lançar mão de truques fotográficos, mas as pessoas de boa fé olhavam para o rosto de Alexandra Kolontay e tão atraente ele se mostrava, que a dúvida nascia imediatamente. E, mais tarde, soube-se que quanto se dizia e escrevia não passava duma campanha de difamação.

É aproximadamente desse tempo a segunda parte deste livro, que, hoje, está universalmente difundido. Que pretende com ele, a autora?

Sabe-se que, no seu conceito exterior, as relações sexuais da raça humana evoluíram, da sua liberdade inicial, para um mundo de hipocrisia, de falsos prejuízos e de absurdas interpretações. Homens e mulheres têm sofrido, através de longos séculos, os mais grosseiros vetos, os mais incompreensíveis obstáculos, porque as religiões e a mentira social criaram, para a vida do sexo, origem da vida universal da espécie, os anátemas e os preconceitos mais ofensivos da nossa própria inteligência. E tão grande é o prejuízo milenário, que nem os cérebros mais rebeldes puderam fugir de todo à sua influência, sendo, ainda hoje, frequentíssimo vermos espíritos superiores sorrirem, ironicamente, das questões sexuais, como se elas constituíssem, apenas, volúpia de alcova, pecado desculpável ao indivíduo que o pratica e não razão suprema da coletividade.

Desta deformação moral e das dificuldades que lhe correspondem, nascem as mais sórdidas aberrações, os vícios mais repugnantes, que enchem o passado e se projectam ainda no presente. Tendo de manter, por um lado, a moral dominante, e não conseguindo, por outro, submeterem-se, totalmente, a ela, porque o instinto de reprodução era mais forte, homens e mulheres não puderam conciliar as duas razões opostas se não pelos desvios sexuais, pela adulteração da lei normal. Daí essa página caótica e repulsiva que a Humanidade escreveu na sua história, transformando, em muitos casos, a normalidade do amor em anormalidades que vão até ao domínio da psiquiatria.

As mulheres, quer nesse, quer noutros aspectos da mesma moral, foram sempre as mais sacrificadas. Acumulavam com o papel de simples objectos de prazer masculino, o papel de escravas. Acumulavam e, de certa maneira, acumulam ainda, se não em todos os países, pelo menos numa grande extensão do planeta.

Contra uma e outra coisa se levantaram, porém, de há um século para cá, vozes discordantes, tomadas a princípio como dissolventes, mas logo defendidas pela evolução científica da espécie.

Apesar de tudo, titubeava-se, ainda, neste simples problema, que ancestrais preconceitos tornaram complexo, quando surgiu Freud com as suas teorias, que se espalharam, rapidamente, pelo mundo inteiro. Pode ser que Freud exagere ao querer subordinar todos os actos da vida ao instinto sexual. Pode ser que nem todas as nossas acções estejam subordinadas a esse instinto. Mas se não estão todas, estão, pelo menos, a maioria delas e a verdade é que Freud prestou um grande serviço à Humanidade. Depois que as suas doutrinas se tornaram conhecidas, começou a criar-se uma outra moral, embora ainda embrionária, em volta do problema dos sexos.

Não se pode dizer que Alexandra Kolontay tenha sofrido influências do famoso sábio hebraico, porque muitas das suas teorias sobre a importante questão antecedem as daquele, o que, aliás, aconteceu com muitos escritores revolucionários que, no princípio do século, dedicaram, ao assunto, a sua atenção.

Mas, por isso mesmo, o livro de Kolontay completa, dentro do sector por ela escolhido, a obra de Freud.

Apesar do seu título, que, aos mais retrógrados de espírito, pode sugerir uma ideia galante, pecaminosa ou mesmo obscena, A Mulher Moderna e a Moral Sexual é uma obra útil à Humanidade, uma obra profundamente honesta – tomando a honestidade na sua verdadeira e elevada expressão e não na que a hipocrisia social lhe dá. Para expor os resultados da sua cultura e da sua observação, Alexandra Kolontay não necessitou, sequer, de recorrer a expressões que pudessem enunciar qualquer escabrosidade. A sua obra tem uma limpidez admirável. É como que um ensaio de laboratório. E não fora a absoluta ausência de qualquer especulação, eu diria que era um ensaio de filosofia humana – e, mais do que um ensaio, um pequeno tratado.

O novo tipo feminino, emancipado, consciente, a nova mulher que quer viver para companheira do homem e não sua escrava, essa mulher que veio da literatura para a vida e que Kolontay apresenta e estuda com fraternal carinho, podia constituir, só por si, o segredo do êxito deste livro. Mas não. A escritora vai mais longe. Revela, de forma magistral, a vida da mulher na sociedade presente, os seus sofrimentos, os seus limites, a mediocridade da sua existência. Depois, descobre caminhos, estuda, demoradamente, temas completos, apresenta exemplos e, por vezes, atinge um plano rigorosamente científico. Aqui e acolá, já que tudo o que é humano é discutível, poder-se-á, talvez, encontrar base de discordância. Mas, mesmo aí, a profundidade e a opulência das ideias são tão grandes, que os argumentos contrários despertam outros argumentos e permitem sondar o problema em todas as suas direções.

Se aos homens este livro interessa sob variadíssimos aspectos, as mulheres, sobretudo, encontrarão nele sabe-se lá quantos estados do seu espírito e quantas realidades objectivas da sua vida quotidiana. Ele não vai, é certo, romper, dum instante para o outro, grilhões e conceitos cimentados durante séculos de obscurantismo; mas abre, nas almas, uma maior compreensão, preparando-as para uma vida melhor, mais límpida, mais bela, mais humana, uma vida em que a Humanidade não seja vítima das mentiras por ela própria criadas, durante o seu período tenebroso.

Este livro corresponde à nova moral em formação, em que homens e mulheres não tenham, economicamente, de ser escravos de alguns dos seus semelhantes e, sexualmente, de caírem na devassidão ou se prostituírem, porque do amor, razão suprema da vida, fizeram uma obscenidade ou um objecto de comércio.

Foi à luz dessa moral nascente que Alexandra Kolontay escreveu as páginas que se vão ler.

Ferreira de Castro

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