Alexandra Kollontai foi uma revolucionária russa que enfrentou bravamente a brutalidade do czarismo, a perseguição política, a realidade de fome e guerra que assolava a vida na Rússia pré-soviética. Durante a revolução, cumpriu um papel importante na mobilização das mulheres e da classe trabalhadora em geral. Organizou contribuições radicais sobre a emancipação das mulheres e sobre o papel da família e da moral sexual na manutenção do capitalismo. Durante o início do regime soviético, liderou políticas socialistas para a libertação das mulheres.
É sobre esse período que conta o texto abaixo, na primeira pessoa. Selecionámos trechos da secção “Os anos da revolução”, do seu livro “Autobiografia de uma mulher comunista sexualmente emancipada”, escrito em 1926. Por Capiremov.org.
Tão avassaladoras foram as arremetidas dos eventos subsequentes que até hoje realmente não sei o que devo descrever e enfatizar: o que realizei, almejei, consegui? Havia uma vontade individual completa naquele tempo? Não era somente a tempestade omnipotente da revolução, o comando das massas ativas, despertadas, que determinava a nossa vontade e nossa ação? Havia um único ser humano que não se curvasse à vontade geral? Havia somente massas de pessoas, unidas numa vontade bipartida, que se operava a favor ou contra a revolução, a favor ou contra o fim da guerra, e que se posicionava a favor ou contra o poder dos sovietes. Olhando para trás percebe-se somente uma operação, esforço e ação maciços. Na verdade, não havia nenhum herói ou líder. Era o povo, o povo trabalhador, em uniforme de soldado ou com vestes civis, que controlava a situação e que gravou sua vontade permanentemente na história do país e da Humanidade. Era um verão escaldante, um verão crucial da maré da inundação revolucionária em 1917!
[…] Uma das questões mais candentes da época era o elevado custo de vida e a crescente escassez de artigos de primeira necessidade. Assim, as mulheres dos estratos mais atingidos pela pobreza enfrentavam dificuldades indescritíveis. Foi precisamente esta situação que preparou o terreno no partido para o “trabalho com mulheres” de modo que muito em breve nós pudemos realizar algum trabalho útil. Já em maio de 1917, estreou um jornal semanal chamado Mulheres trabalhadoras. Fui autora de um apelo às mulheres contra o elevado custo de vida e a guerra. O primeiro ato de massas, com milhares de pessoas, que ocorreu na Rússia sob o Governo Provisório, foi organizado por nós, bolcheviques. […] Eu era membro do executivo soviético que, na realidade, era o corpo político guia do momento, do qual fiz parte como a única mulher e por um longo período. Em maio de 1917, participei na greve das trabalhadoras de lavandaria, que reivindicava que todas as lavandarias fossem “municipalizadas”. A luta durou seis semanas. Não obstante, a principal reivindicação das trabalhadoras de lavandarias não foi atendida pelo regime de Kerensky.
No fim de junho, fui enviada por meu partido a Estocolmo como delegada para uma consulta internacional, que foi interrompida quando chegou a nós a notícia do levantamento de julho contra o Governo Provisório e das medidas extremamente duras que o governo tomou contra os bolcheviques. Muitos dos nossos principais camaradas de partido tinham sido presos, outros, incluindo Lenine, tinham conseguido escapar e se esconder. […] Por ordem do regime de Kerensky, fui presa na fronteira de Torneo e submetida ao mais grosseiro tratamento como espia […].
Quanto mais desmesuradamente o regime se voltava contra os bolcheviques, mais a influência destes crescia. A marcha do general branco Kornilov sobre Petrogrado fortaleceu os elementos mais radicais da revolução. O povo exigia que os bolcheviques presos fossem libertados. Kerensky, entretanto, recusava-se a libertar-me e foi apenas por uma ordem do soviete que saí da cadeia mediante o pagamento de uma fiança. Mas já no dia seguinte, o decreto de Kerensky determinando que eu fosse mantida sob prisão domiciliária pesou sobre mim. Não obstante, foi-me concedida plena liberdade de movimento um mês antes da luta decisiva, a Revolução de Outubro em 1917. O trabalho acumulou-se outra vez. Agora o trabalho de base deveria ser ajustado para organizar um movimento sistemático das mulheres trabalhadoras. A primeira conferência de mulheres trabalhadoras seria convocada. Esta coincidiu com o derrube do Governo Provisório e o estabelecimento da República Soviética.
Naquele período, eu era membro do organismo mais elevado do partido, o Comité Central, e votei a favor da política do levantamento armado. […] Vieram então os grandes dias da Revolução de Outubro. O Instituto Smolny tornou-se histórico. As noites sem dormir, as sessões permanentes. E, finalmente, as declarações agitadas. “Os Sovietes tomam o poder!” “Os sovietes fazem um apelo aos povos do mundo para pôr um fim à guerra.” “A terra é socializada e pertence aos camponeses!”
O Governo Soviético foi formado. Eu fui nomeada comissária do povo para a Proteção Social. Era a única mulher no primeiro escalão do governo e fui a primeira mulher na História a ser reconhecida como membro de um governo. Quando recordamos os primeiros meses do governo dos trabalhadores, meses que foram tão ricos em ilusões magníficas, planos, apaixonadas iniciativas para melhorar a vida, para organizar o mundo de novo, meses de romantismo real da revolução, de facto, gostaríamos de escrever sobre tudo o resto que não sobre nós próprios. […] Pode-se facilmente imaginar as enormes exigências que estas tarefas impuseram a um pequeno grupo de pessoas que, ao mesmo tempo, eram novatos na administração do Estado. Com plena consciência destas dificuldades, formei, imediatamente, um conselho auxiliar, no qual peritos como médicos, juristas e pedagogos estavam representados ao lado dos trabalhadores e funcionários menores do comissariado. O sacrifício, a energia com que os empregados menores suportaram o peso dessa tarefa árdua foi verdadeiramente exemplar. Não era somente uma questão de manter o trabalho do comissariado, mas também de iniciar reformas e melhorias. Forças novas, frescas, substituíram os funcionários sabotadores do antigo regime. Uma vida nova agitava-se nos escritórios do comissariado, que antes era altamente conservador. Dias de trabalho pesado! E à noite as sessões do Conselho do Comissariado do Povo, sob a presidência de Lenine. Uma sala pequena, modesta, e somente uma secretária que gravava as resoluções que mudavam a vida da Rússia até às suas fundações mais profundas.
[…] Os meus esforços de nacionalizar o cuidado materno e infantil desencadearam uma nova onda de ataques insanos contra mim. Mentiras de todo tipo foram ditas sobre a “nacionalização das mulheres”, sobre minhas propostas legislativas que ordenariam assertivamente que meninas pequenas de doze anos fossem mães. Uma fúria especial dominou os religiosos seguidores do velho regime quando, baseada na minha própria autoridade (os restantes membros do governo criticaram-me mais tarde por esta ação), transformei o famoso mosteiro de Alexander Nevsky numa casa para inválidos de guerra. Os monges resistiram e deu-se uma batalha. A imprensa levantou outra vez um clamor por justiça contra mim. A igreja organizou manifestações de rua contra a minha ação e excomungou-me.
[…] Havia diferenças de opinião no interior do partido. Renunciei ao meu cargo como comissária do povo com base no meu total desacordo com a política atual. Pouco a pouco, fui dispensada também de todas as minhas outras tarefas. Voltei a dar palestras e adotei as minhas ideias sobre “a nova mulher” e “a nova moral”. A revolução fazia uma viragem giro completa. A luta tornava-se cada vez mais irreconciliável e mais sangrenta, e muito do que estava a acontecer não se encaixava com meu ponto de vista. Mas, no fim das contas, havia ainda a tarefa infinda, a libertação das mulheres. As mulheres tinham recebido todos os direitos, mas na prática, é claro, viviam ainda sob a velha opressão: sem autoridade na vida familiar, escravizadas por mil tarefas domésticas, carregando todo o fardo da maternidade, mesmo os cuidados materiais, porque agora muitas mulheres conheciam a vida desacompanhada, em consequência da guerra e de outras circunstâncias.
No outono de 1918, quando dediquei todas minhas energias a redigir diretrizes sistemáticas para a libertação das mulheres trabalhadoras em todas as áreas, encontrei um valioso apoio no primeiro presidente dos sovietes, Sverdlov, agora falecido. Assim, o Iº Congresso de Mulheres Trabalhadoras e Camponesas pôde ser convocado já em novembro de 1918. 1.147 delegadas estavam presentes. Desta forma, as bases foram assentadas para o trabalho metódico em todo o país visando a libertação das mulheres das classes trabalhadora e camponesa. Uma nova enchente de trabalho me esperava. O problema agora era encaminhar as mulheres para as cozinhas populares e educá-las de modo a dedicar as suas energias às casas para crianças e às creches, ao sistema escolar, às reformas da vida doméstica e ainda a muitas outras questões prementes. A motivação principal de toda esta atividade era implementar, de facto, direitos iguais para mulheres como unidade de trabalho na economia nacional e como cidadã na esfera política e, é claro, com uma ressalva especial: a maternidade devia ser considerada uma função social e, consequentemente, ser protegida e garantida pelo Estado.
[…] Uma doença séria afastou-me desses trabalhos emocionantes durante meses. Mal me recuperei (nesse período estava em Moscovo) e assumi a direção da Coordenação para o Trabalho entre as Mulheres mais uma vez um novo período de trabalho pesado e intenso começou. Um jornal de mulheres comunistas foi fundado, conferências e congressos das mulheres trabalhadoras foram convocados. As bases para o trabalho com as mulheres do Oriente (muçulmanas) foram assentadas. Duas conferências mundiais de mulheres comunistas ocorreram em Moscovo. A lei que despenalizava o aborto foi aprovada e um grande número de regulamentações em benefício das mulheres foram introduzidas pela nossa Coordenação e confirmadas legalmente. Nesta época, tive que escrever e discursar mais do que em qualquer momento anterior… O nosso trabalho recebeu o apoio completo e incondicional de Lenine. E Trotsky, embora sobrecarregado com tarefas militares, aparecia infalivelmente e de bom grado nas nossas conferências. Mulheres enérgicas, talentosas, duas das quais já não estão mais vivas, devotaram e sacrificaram todas suas energias ao trabalho da Coordenação.
No VIII Congresso Soviético, como membro do executivo soviético (agora havia já diversas mulheres neste corpo), propus uma moção que indicava que os sovietes em todas as áreas contribuíssem para a criação de uma consciência da luta por direitos iguais para mulheres e, consequentemente, por envolvê-las no trabalho comunal e no Estado. Consegui que a moção fosse votada e aprovada, mas não sem resistência. Foi uma grande e duradoura vitória.
Um debate inflamado alastrou-se quando publiquei a minha tese sobre a nova moral. Pois a nossa legislação soviética em relação ao matrimónio, separada da igreja de fatco, não é essencialmente mais progressiva do que a mesma legislação que, no fim das contas, existe noutros países democráticos progressistas. A união, o casamento civil, embora o filho ilegítimo fosse considerado legalmente igual ao filho legítimo, na prática uma boa quantidade de hipocrisia e injustiça ainda existe nesta área. […] A ala mais radical do partido foi formada em torno desta questão. As minhas teses, as minhas ideias sobre sexo e moral, foram amargamente combatidas por muitos camaradas do partido de ambos os sexos, assim foram ainda outras diferenças de opinião no partido a respeito dos princípios políticos. […]
Tradução de Lígia Torres. Texto originalmente publicado em Capire. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.