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Kollontai e a Oposição Operária

Mais conhecida pela sua intervenção no debate sobre a “questão das mulheres” e pela sua ação feminista, Kollontai foi também uma das dirigentes de uma corrente minoritária no seu partido tendo protagonizado um dos debates centrais da política soviética no início dos anos vinte, o “debate sindical”.

Antes de ter sido a primeira mulher embaixadora do mundo e depois de ter sido a primeira a ter as rédeas de uma pasta governamental na história ocidental moderna, Alexandra Kollontai foi a última a dirigir uma tendência organizada no interior do Partido bolchevique.

A Oposição Operária surgiu em 1920, num contexto pós-guerra mundial, pós-revolução de Outubro, em plena guerra civil que contou também com intervenção das potências estrangeiras, e num clima de crise económica severa com o chamado “comunismo de guerra” a ser implementado. Criticava o que considerava ser a burocratização do regime soviético, o fim do controlo operário nas fábricas, quando a autoridade estava a passar para as mãos de comissários políticos designados, e a subordinação dos sindicatos ao poder de Estado.

Para além de Kollontai, distinguiam-se entre os seus dirigentes Alexander Shlyapnikov, indiscutivelmente a figura central do movimento, o líder histórico dos metalúrgicos que tinha sido o primeiro comissário governamental para a área do Trabalho, Sergei Medvedev e Yuri Lutovinov também eles dirigentes sindicais do metalúrgicos.

O grupo surgiu publicamente pela primeira vez no IXº Congresso do Partido Comunista Russo e dissolveu-se dois anos depois no Xº Congresso. Então, o partido proibiu a existência de frações.

Kollontai assumiu parte importante do protagonismo como lembrou Angelica Balabanoff no seu livro A minha vida de rebelde: “Foi uma mulher – Alexandra Kollontai – que dirigiu a primeira oposição organizada contra as linhas de Lenine e de Trotsky. Alexandra não tinha sido uma bolchevique desde o início mas tinha-se juntado ao partido ainda antes de Trotsky e de mim. Nesses primeiros anos da Revolução, tinha sido várias vezes fonte de contrariedades, ao nível pessoal e político, para os dirigentes do partido. Mais do que uma vez, o Comité Central tinha querido que eu a substituísse na direção do movimento das mulheres, esperando que assim se facilitasse a campanha lançada contra ela e isolando-a das trabalhadores. Felizmente, percebi a intriga e recusei as ofertas, sublinhando que ninguém poderia fazer este trabalho melhor que ela e esforçando-me por aumentar o seu prestígio e popularidade de cada vez que me era possível”. É de Kollontai a brochura que sintetiza os ponto de vista do grupo, um documento chamado precisamente Oposição Operária.

No 5º Congresso dos Sindicatos o grupo vivia um dos seus momentos mais fortes. E na conferência de Moscovo de novembro de 1920 totalizava quase metade dos delegados (124 em 278). Tinha então um apoio forte no sindicato dos metalúrgicos de Petrogrado devido a Shlyapnikov.

Em dezembro desse ano, o debate sobre o papel dos sindicatos no regime pós-revolução está ao rubro. O 8º Congresso Pan-Russo dos Sovietes dá-se com os soviéticos divididos em três posições. O grupo liderado por Trotsky, e que incluía também Bukharine, Djerzinsky, Andreïev, Krestinsky, Préobrajenski e Serebriakov, conhecido como a plataforma dos sete, defendia na prática um reforço do controlo do Estado sobre os sindicatos e a possibilidade de nomeação da direção destes. Trotsky, à frente do Exército Vermelho e no contexto do comunismo de guerra, defendera em dezembro de 1919 a “militarização do trabalho” e a transformação das organizações sindicais em “organizações de produção” numa resolução de trabalho ao Comité Central que não deveria ser pública. No dia seguinte, as suas teses surgem no Pravda, dirigido por Bukharine, “por engano”, e a contestação a elas multiplica-se.

A tese final da plataforma dos sete resulta em seguida de um acordo de Trotsky com o grupo de Bukharine e de Préobrajenski que se lhe tinham oposto defendendo a existência de conselhos gestores para administrar a economia que teriam participação sindical e o incremento da planificação económica. A solução de compromisso foi a proposta de uma “democracia operária na produção” com a “estatização dos sindicatos” e a “sindicalização do Estado” com o controlo estatal sobre as instâncias que tratariam da planificação económica mas com direitos democráticos internos assegurados.

Do lado contrário, apoiada na brochura escrita por Kollontai, perfilava-se a Oposição Operária que esgrimia pela autonomia sindical, isto apesar do grupo conceder que o partido deveria continuar a ser “o centro supremo da política de classe, o órgão do pensamento comunista, o controlador da política real dos sovietes”. No “meio”, encontrava-se a plataforma dos 10 que juntava Lenine, Zinoviev, Kamenev, Estaline e entre outros que entendiam que os sindicatos deviam ter uma autonomia relativa.

As teses da Oposição Operária condenavam a diminuição do campo de ação dos sindicatos e a anulação da influência da classe operária, o reforço do poder dos “técnicos burgueses e outros elementos não-proletários manifestamente hostis aos sindicatos”. Para eles, o consentimento destes seria obrigatório para qualquer nomeação para um lugar económico administrativo.

Defendiam ainda um igualitarismo salarial e a substituição gradual do salário em termos pecuniários por outro tipo de remuneração.

A sua ideia de que o poder de decisão económico deveria começar nos comités de fábrica e recair depois sobretudo nos sindicatos, através de um “Congresso Pan-Russo dos Produtores” gerará a acusação de ser um grupo “anarco-sindicalista”, uma organização “anti-partido”. A polémica será feroz e os termos duros.

Assim o prova a atitude de Lenine que abre o 10º Congresso do partido bolchevique com um ataque contra a Oposição Operária que apresenta como uma “ameaça para a revolução” e um “desvio pequeno-burguês”. Para ele, apenas o partido “é capaz de agrupar, educar e organizar a vanguarda do proletariado e as massas laboriosas” e de “dirigir politicamente” o proletariado.

Ao longo do Congresso, o grupo foi sendo fustigado ao mesmo tempo por ser ultra-revolucionário e contra-revolucionário. O resultado foi o fim do direito de fração ordenando-se “a dissolução imediata de todos os grupos sem exceção que se constituíram com base neste ou naquele programa (os grupos da “Oposição Operária”, do “Centralismo Democrático”, etc.” sob pena de expulsão.

O debate sindical salda-se por uma vitória esmagadora do grupo de Lenine com 336 votos. As teses de Trotsky contarão com 50 votos. A Oposição Operária com 18.

Um último ato de dissidência deste grupo ocorre ainda no início de 1922. A “Carta dos 22”, subscrita por Kollontai, será um recurso ao executivo da Internacional Comunista sobre a supressão do direito de organização.

Os dirigentes da Oposição Operária vão continuar a expressar oposição às diretivas do partido ao longo do período da Nova Política Económicas mas não voltarão a poder organizar-se abertamente nem a protagonizar o debate nacionalmente. Depois, todos serão exterminados durante as purgas estalinistas. Com a exceção de Alexandra Kollontai que sobreviverá.

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Neste dossier:

150 anos de Alexandra Kollontai

Primeira mulher a dirigir um ministério no mundo após a revolução russa, dirigiu a Oposição Operária e mais tarde ficou em silêncio durante o estalinismo. Foi também a primeira mulher a ser embaixadora. As suas ideias sobre feminismo, sexualidade e amor ainda são discutidas ardentemente. Dossier organizado por Carlos Carujo.

Alexandra Kollontai.

Alexandra Kollontai: revolução, feminismo, amor e liberdade

Revolucionária aguerrida, interessou-se por problemas como a revolução da vida quotidiana e dos hábitos, a luta contra a opressão das mulheres, a construção de uma nova moral e relação entre sexos. Desprezada e adorada na sua época, a sua elegância lendária encontra-se no seu pensamento e nos seus escritos. Por Patricia Latour.

As mulheres de 1917

As mulheres não foram apenas a “centelha” da Revolução Russa, mas a força motriz que a impulsionou. Por Megan Trudell.

Marcha de mulheres em Petrogrado em 1917.

Uma celebração militante, por Alexandra Kollontai

O Dia Internacional da Mulher é um dia de solidariedade internacional e um dia para rever a força e organização das mulheres proletárias. Artigo de Alexandra Kollontai, escrito em 1920.

Alexandra Kollontai.

Autobiografia de uma mulher comunista sexualmente emancipada: Os anos da revolução

Kollontai lembra o período que imediatamente anterior à revolução de Outubro até ao que se seguiu à sua saída do governo: “as minhas ideias sobre sexo e moral, foram amargamente combatidas por muitos camaradas do partido de ambos os sexos, assim foram ainda outras diferenças de opinião a respeito dos princípios políticos”.

Kollontai, Comissária do Povo para a Proteção Social numa revolução feminista

O primeiro governo bolchevique afirmou o desejo de criar uma rede de creches, jardins de infância, lavandarias e cantinas para libertar as mulheres das tarefas domésticas. Decidiu a não ingerência do Estado nas relações sexuais entre os indivíduos e aboliu as penas de prisão por homossexualidade. Por Jean-Jacques Marie.

Performance de estudantes na noite do livro. Por Varvara Stepanova.

A revolução russa e o sexo

A política sexual dos bolcheviques iniciais é um legado rico. O amor-camaradagem de Kollontai traz-nos um ideal de “liberdade completa, igualdade e amizade genuína”. A sua visão de uma sexualidade livre pressupunha uma infraestrutura socializada abrangente que libertasse as mulheres do trabalho doméstico. Por Peter Drucker.

Imagem do filme Reds.

Romance revolucionário

Porque é que prazeres extravagantes e sentimentos intensos deveriam ficar reservados apenas para a burguesia pergunta Hannah Proctor a propósito da conceção de amor Kollontai. Um sentimento que a revolucionária russa pensava poder revelar “novas facetas de emoção que possuem beleza, força e esplendor sem precedentes”.

Cartaz dos irmãos Stenberg.

Luzes e sombras da contribuição de Alexandra Kollontai para a libertação das mulheres

A partir das Conferências de 1921 na Universidade Sverdlov, Jacqueline Heinen avalia forças e fraquezas do pensamento de Kollontai. Isto não implica subestimar a importância do seu combate porque de todos os dirigentes revolucionários do princípio do século foi quem nos legou a obra mais rica sobre a questão das mulheres.

Alexandra Kollontai.

Alexandra Kollontai, de revolucionária a estalinista

António Louçã analisa as contradições da vida da revolucionária e faz um balanço crítico das várias metamorfoses da sua atividade política desde os tempos antes da revolução de Outubro até ao período em que se torna embaixadora.

Kollontai e a Oposição Operária

Mais conhecida pela sua intervenção no debate sobre a “questão das mulheres” e pela sua ação feminista, Kollontai foi também uma das dirigentes de uma corrente minoritária no seu partido tendo protagonizado um dos debates centrais da política soviética no início dos anos vinte, o “debate sindical”.

Alexandra Kollontai em 1946.

Kollontai nas memórias de Gromiko: “a primeira mulher embaixadora”

“Mulher inteligente e com uma língua afiada, que sabia debater com habilidade e fazia-o em vários idiomas” assim era invocada a primeira mulher à frente de uma embaixada nas memórias daquele que foi cerca de 30 anos ministro dos Negócios Estrangeiros do regime soviético num documento histórico trazido por Miguel Pereira.

Kollontai e Jaime Brasil.

Kollontai na obra de Jaime Brasil (1932)

O ex-secretário-geral dos Profissionais de Imprensa de Lisboa foi uma das primeiras pessoas em Portugal a prestar atenção atenção à obra de Kollontai no âmbito da sua intervenção em defesa da educação sexual.

Capa da tradução portuguesa do livro de Kollontai.

Prefácio a Kollontai, de Ferreira de Castro

Em 1933, a primeira edição portuguesa conhecida de uma obra de Kollontai foi prefaciada por um dos maiores escritores portugueses da época, José Ferreira de Castro. Divulgamos aqui esse documento histórico na íntegra.