Em primeiro lugar, envelhecer com mais saúde
A criação do Serviço Nacional de Saúde, os avanços socioeconómicos e a melhoria das condições sanitárias em que vivia grande parte da população (todas conquistas que só foram possíveis com a revolução de Abril) permitiram que Portugal progredisse muito, em poucos anos, em vários indicadores de saúde. A esperança média de vida é um desses indicadores.
Em 1970 a esperança média de vida em Portugal era de 67 anos, um valor muito baixo principalmente quando comparado com a esperança média de vida de outros países europeus. Segundo dados atuais da OCDE, nesse mesmo ano – 1970 – a Hungria registava uma esperança média de vida de 69 anos, a Lituânia de 71 anos e a Grécia de mais de 73 anos. Entre os países qua atualmente compõem a União Europeia, Portugal era o país com menor esperança média de vida. Em 2017 a situação já era significativamente diferente: a esperança média de vida em Portugal é de 81,6 anos, enquanto que a média da UE é de 80,9 anos.
Ou seja, em menos de meio século, a população portuguesa ganhou quase 15 anos de vida e o país passou da cauda da Europa para um patamar superior ao da média europeia.
Há outros indicadores onde esta progressão também se verificou, muito por causa do desenvolvimento de um Serviço Nacional de Saúde público, robusto, aberto a toda a população, com resposta transversal e com um enfoque muito importante nos cuidados de saúde primários. Falo, por exemplo, da mortalidade evitável e da mortalidade por causa tratável.
A taxa de mortalidade evitável (ou seja, mortes prematuras que poderiam ter sido evitadas através de medidas de saúde pública e de prevenção primária) na União Europeia é de 161 mortes por cada 100.000 habitantes, enquanto em Portugal é de 140/100.000. Já a taxa de mortalidade tratável (mortes prematuras que poderiam ter sido evitadas através de cuidados de saúde, como rastreios ou acesso a determinados tratamentos) é de 93 mortes por cada 100.000 habitantes na União Europeia, enquanto que em Portugal é de 89/100.000 habitantes.
Resumindo: hoje vive-se mais tempo em Portugal e morre-se menos de causas evitáveis ou tratáveis. O acesso a cuidados de saúde universais garantidos pelo SNS é uma garantia de mais anos de vida e de menos mortes.
No entanto, nem tudo é positivo nos indicadores de saúde em Portugal. Aliás, há um indicador em que se compara muito mal com outros países: o número de anos, depois dos 65 anos, vividos com saúde. Em muitos casos, isto indica se se vive com ou sem qualidade de vida e a conclusão é que os últimos anos de vida são vividos com pouca qualidade de vida em Portugal.
Em Portugal, depois dos 65 anos, vive-se 7,3 anos sem incapacidades, enquanto a média da União Europeia é de 10 anos sem incapacidades. No reverso da medalha: em Portugal, depois dos 65 anos, vive-se 13,1 anos com incapacidades, enquanto que na média da UE este valor é de 9,9 anos. Ou seja, em Portugal vive-se mais anos, mas com mais doença e com menos qualidade de vida.
Há algo que se possa fazer para que o envelhecimento não seja sinónimo de elevada carga de doença e pouca qualidade de vida? Sim, há, a começar pelas políticas públicas na área da saúde, mas não só, também na área da educação e da cultura, na área da habitação, dos rendimentos e do trabalho.
O esforço na promoção da saúde e na prevenção da doença deve ser maior. Diria mesmo, deve ser muito maior. O Conselho Nacional de Saúde estima que do total do orçamento do SNS, apenas 1% vá para medidas de promoção da saúde. É francamente pouco.
Muitas doenças crónicas que se vão instalando (e que pesam especialmente nos últimos anos de vida) podem ser evitadas. É preciso uma abordagem mais preventiva. Os cuidados de saúde primários fazem (geralmente fazem muito bem) o acompanhamento e vigilância de determinadas situações: diabéticos, hipertensos, etc. É preciso esta eficácia antes mesmo da existência de doença. Ou seja, mais acompanhamento do adulto saudável, promovendo os fatores protetores de saúde.
Claro que isso implica, desde logo, mais recursos para a promoção da saúde; depois, que as equipas de saúde familiar tenham mais tempo e disponibilidade para os seus utentes (o que se poderia conseguir com a diminuição de utentes por médico de família e com a entrada em cena do enfermeiro de família). Também é preciso que o momento de contato com o SNS seja um momento de literacia para a saúde, de desenvolvimento de fatores, comportamentos e práticas protetores da saúde. Para além disso, o reforço dos cuidados de saúde primários com, por exemplo, cuidados de psicologia e cuidados de nutrição, para além do alargamento dos rastreios de base populacional que têm que chegar a cada vez mais pessoas.
Sem medidas de promoção da saúde e de prevenção da doença será difícil inverter a situação que hoje temos em Portugal: a de se viver os últimos anos de vida com uma elevada carga de doença, com patologias múltiplas e com pouca ou nenhuma qualidade de vida.
Mas não sejamos inocentes, não bastam medidas políticas na área estrita da saúde. Saúde e doença estão presentes em todas as medidas. Não é por acaso que a esperança média de vida e a perceção do estado de saúde são significativamente influenciadas pelo nível de rendimentos e pelo nível de habilitação de cada pessoa. Quem tem mais rendimentos e maior escolaridade tende a viver mais e a viver com mais saúde. Vários fatores contribuirão para que assim seja, mas não é difícil imaginar o porquê desta relação. Assim, uma política de promoção do envelhecimento com saúde também tem que passar por aqui: garantir mais rendimento aos trabalhadores e pensionistas, mais informação e mais literacia para entender a sua própria saúde, melhores condições de vida. Não é difícil imaginar que se se garantir a climatização adequada das habitações, as doenças (e a perda de qualidade de vida) respiratórias e outras terão menor prevalência e menor impacto no envelhecimento…
Em segundo lugar, desenvolver respostas dignas e eficazes para apoiar na doença
Se é verdade que Portugal tem de tudo fazer para aumentar o número de anos de vida saudável e, dessa forma, associar o envelhecimento a qualidade de vida, também não é menos verdade que a doença existe e que a sociedade deve desenvolver respostas para apoiar quem, a determinada altura da sua vida, se debate com a doença.
Falaremos aqui de cuidados continuados, desde a caracterização da atual oferta até ao desenvolvimento de um paradigma que é o que melhor respeita a dignidade, o conforto e a qualidade de vida do utente que necessita destes cuidados.
O nível de acesso à rede nacional de cuidados continuados continua a ser baixo, as listas de espera para entrada são grandes e a oferta domiciliária está muito aquém do que deveria ser. Resultado: muitas das pessoas que necessitam de uma resposta de uma das várias tipologias da rede (convalescença, média ou longa duração) não conseguem obter essa resposta.
Segundo um relatório da ERS (a partir de dados da ACSS) de março de 2019, em 31 de dezembro de 2018 existiam 1641 utentes em espera de vaga na rede de cuidados continuados, a maior parte dos quais aguardava por uma vaga na tipologia de longa duração. A mediana do tempo entre a referenciação e a obtenção de vaga é tudo menos satisfatória: na tipologia de convalescença, essa demora pode ir até 34,9 dias na ARS Alentejo; na tipologia de média duração pode ultrapassar os 50 dias na ARS Lisboa e Vale do Tejo, enquanto na tipologia de longa duração pode chegar aos 58 dias, também na ARS Lisboa e Vale do Tejo.
Apesar do aumento das respostas contratadas, o número de utentes em espera é agora maior do que em 2016 e, para além disso, o nível de acesso à rede não aumentou. Já o número de lugares no domicílio assegurados pelas Equipa de Cuidados Continuados Integrados (ECCI) diminuiu 14% desde 2015. Importa lembrar aqui o que o antigo coordenador nacional dos cuidados continuados, Manuel Lopes, disse, em Comissão de Saúde, sobre esta redução: segundo o mesmo, existiam lugares de domicílio que estavam contabilizados, mas que não existiam na prática, pelo que se procedeu a contabilização mais realística da oferta. Não obstante isto, é impossível ignorar que a resposta da rede é insuficiente e que o número de lugares domiciliados está muito longe de ser o necessário.
De facto, é preciso aumentar a resposta da rede nas várias tipologias e, prioritariamente, diria eu, aumentar a resposta no domicílio. Este deve ser o paradigma a ser favorecido, sempre que ele for possível. É ali, em sua casa, no seu ambiente, junto dos seus, que o utente está melhor. Ali tem mais conforto, não corta nem interrompe laços sociais, ali tem mais qualidade de vida. Mas a aposta no domicílio não se faz do nada. O que é, então, necessário?
Em primeiro lugar, e de forma urgente, é preciso reforçar os meios das equipas de cuidados na comunidade, seja em número de profissionais, seja em coisas tão básicas como a existência de viaturas para a realização de domicílios. Se queremos (e devemos querer) mais cuidados continuados no domicílio, então temos que ter mais pessoas com mais tempo para fazer esses domicílios e acompanhar o utente e a sua família. Também temos que ter mais trabalhadores de outras categorias profissionais com mais tempo para este trabalho: terapeutas ocupacionais, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, etc.
Em segundo lugar, tem de haver a efetivação do estatuto do cuidador informal. Sem ele pode ser impossível a domiciliação de cuidados continuados para muitos utentes, uma vez que se não for possível garantir o acompanhamento regular da pessoa, então ela não pode ir para sua casa e tem que ser mantida numa instituição para a resposta de que necessita.
No caso dos cuidados paliativos, a situação não é muito diferente. A Comissão Nacional de Cuidados Paliativos estima que no próximo biénio existam entre 75000 a 89000 pessoas a necessitar de cuidados paliativos. Para dar uma resposta satisfatória a estas necessidades é preciso reforçar equipas e profissionais: uma equipa intrahospitalar em cada centro hospitalar ou unidade local de saúde; unidades de internamento específicas em centros hospitalares e universitários e institutos de oncologia, uma equipa comunitária de suporte em cuidados paliativos por agrupamento de centros de saúde ou unidade local de saúde.
De que forma estão cumpridas estas necessidades? Das 54 equipas comunitárias existem cerca de metade e das camas calculadas como necessárias para internamento em unidades hospitalares estarão 100 em falta. Tudo isto segundo o mais recente relatório da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos.
Como facilmente se vê pela caracterização da realidade, há muito para fazer.
Sim, é possível ter um envelhecimento com mais qualidade de vida, com mais saúde e com melhores respostas na doença, mas para isso é preciso adotar muitas medidas de reforço do SNS e apostar em mudança de alguns paradigmas: apostar de facto na promoção da saúde, criar condições para respostas no domicílio com suporte de equipas de saúde diferenciadas e olhar para a saúde transversalmente, com medidas nas várias áreas políticas e do dia a dia.