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Envelhecer, uma coisa do quotidiano

O envelhecimento biológico não acontece por escolha do próprio. Mas só envelhece bem quem pode. Para que o envelhecimento não pese mais do que o inevitável, a comunidade tem de estar apetrechada para colaborar e o Estado tem de se preparar para intervir. Por Maria Luísa Cabral.
Foto de Paulete Matos.

Nada pode ser feito de atacado e sem estratégia. Naturalmente as situações actuais de grande carência ou degradação têm de ser atendidas com rapidez e eficácia. Mas no longo prazo, o envelhecimento tem de chegar e ser vivido enquadrado por medidas de carácter social, financeiro e de saúde que cabe ao Estado preparar. Planear hoje, executar amanhã, prevenir estrategicamente para o futuro. Sempre, de agora em diante.

Não é fácil organizar uma lista de necessidades e colocá-las por ordem de prioridade. A lista que eu construiria começa por uma coisa muito simples de entender. Os velhos têm de ter tranquilidade, não podem viver no desconhecimento do que será o dia de amanhã. Este desconhecimento provoca insegurança, assusta-os. E porquê? O receio de terem problemas de saúde e não conseguirem uma consulta (as marcações nos centros de saúde só correm bem para quem nunca as utilizou); de não terem dinheiro suficiente para aviar os medicamentos (só pensa que isto não acontece quem não é grande utente das farmácias); de estarem sozinhos, sobretudo de noite (mesmo os menos velhos acham que existe aqui um exagero); de lhes faltar capacidade para tratarem de si próprios ou da casa (para os que ainda sobem a escadotes, não percebem o problema). Se fecharmos este pacote e o tentarmos embrulhar, o que dá coesão a tudo isto? A pensão claro, as mais das vezes, a pensão insuficiente. Então, é este a questão primordial. Os velhos têm de ter a certeza absoluta que as pensões não falham, que as pensões acompanham o custo de vida e que, ano após ano, não constituirão o factor mais penalizador das suas vidas.

Um velho não deixa de viver. Não é por ser velho que se torna descartável. Talvez numa sociedade liberal mas não na nossa onde há partidos que pugnam pelo Estado Social. Um velho que é enviado para uma instituição para terminar aí os seus dias, está a ser descartado. Uma vergonha, uma total indignidade mas uma situação frequente e impune. Talvez os lares muito caros a cobrarem vários milhares de euros por mês sejam toleráveis o que não impede as pessoas de se sentirem sozinhas. Mas, sim, estes lares não constituem uma preocupação. Quando falo em instituições de acolhimento estou a pensar naquelas dezenas que as autoridades fecham continuamente, com instalações degradadas, falta de higiene, incapacidade completa de garantir a privacidade. Locais onde as pessoas não são tratadas como seres humanos, onde vegetam. O Estado tem de rever esta política: não é solução deixar as famílias sem nenhuma outra solução. Nós repudiamos essas instituições disfarçadas tantas vezes de uma acção caritativa. Não, não as queremos. As pessoas, sim, têm de ser acompanhadas em casa até ao limite e esse acompanhamento tem de ser assegurado por profissionais pagos pelo Estado. Central, autárquico? Vamos discutir isso, encontrar uma solução.

Um velho não deixa de sentir ou pensar. Assim, não só tem direito a um tratamento digno como deve ser preparado com antecedência para um envelhecimento activo. A ginástica é importante mas não se podem colocar os velhos na ginástica, na hidroginástica, nos clubes de caminheiros, a andar de bicicleta. Ideia bizarra esta de querer transformar os velhos em atletas, em si mesmo um desrespeito pela velhice. O envelhecimento activo não é exclusivamente físico, precisamos de interiorizar a consideração de uma vertente cultural e outra lúdica. Para lá das universidades seniores que desempenham o seu papel, se houver clubes de leitura, ou de cinema e teatro, ou coros; se houver jardins e estufas comunitários para os velhos poderem tratar de plantas, seja horticultura ou floricultura; se houver clubes de culinária ou de outras actividades manuais, os velhos agradecem. Neste conjunto de actividades, consegue-se encontrar respostas para diferentes grupos sociais. Talvez se consigam criar redes para atender interesses tão variados estabelecendo protocolos entre as juntas de freguesia e as escolas que são donas de espaços livres e convocando pessoas também reformadas mas menos velhas. Podíamos aprofundar estas ideias, não podíamos?

Mas um velho tem de ter um rendimento digno. Não vamos discutir se chegou à velhice com um rendimento mensal baixo por culpa própria, precisamos de encarar esta situação com outro espírito e apoiar quem tem muito pouco. Não têm sido os contribuintes a ajudar a resolver os problemas dos bancos por motivos fraudulentos? Quantos mil milhões até agora? Então?! Não tenho dados para fazer as contas mas elas podem ser feitas e não serão assustadoras. Um velho com uma pensão decente é outra pessoa, ganha ânimo, sente e vive doutra forma, estará mais apto a vencer o isolamento. Começamos a envelhecer quando jovens e a adaptação à ideia começa aí, sem medo nem tabus. O lema “jovens para sempre” não se coaduna com a convicção inabalável na justiça do Estado Social. Não se executa do pé para a mão mas não lançando esta semente, não há colheita.

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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Neste dossier:

Direito a Envelhecer

Garantir o direito a um envelhecimento com qualidade e emancipado exige o combate à estigmatização da velhice e políticas públicas em conformidade em áreas como a saúde, a habitação, os rendimentos e o trabalho. Dossier organizado por Mariana Carneiro.

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É necessário transformar a forma como envelhecemos e reposicionar os cidadãos seniores no conjunto do sistema de relações intergeracionais, sociais e económicas, alterando o reconhecimento e valorização social que, de modo global, fazemos destes cidadãos. Por Ana Freitas.

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Como não podia deixar de ser, as políticas de habitação, construção e urbanismo terão que mudar e ser desenhadas para esta população, promovendo e facilitando a sua autonomia e permitindo alternativas às respostas baseadas na institucionalização. Por Maria Manuel Rola.

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“Vivemos numa sociedade prostrada perante os valores da juventude”

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Foto de Paulete Matos.

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