Segundo os dados do INE de junho de 2019, em dez anos, por cada 100 jovens que residiam em Portugal os idosos aumentaram em 43. Assim, de 116,4 idosos para cada 100 jovens em 2008, passamos para 159,4 em 2018, um aumento de 27% aproximadamente. Não bastasse a necessidade de pensarmos cidades diversas e acessíveis a todas as pessoas, ter em conta o envelhecimento populacional apenas intensifica a certeza de que as políticas que garantam cidades e qualidade de vida para todos devem necessariamente ter em atenção necessidades específicas desta população.
Os entraves das cidades são muitos. O edificado e o urbanismo são muitas vezes desenhados de forma insensível, pouco flexível e centrados na norma da cidade fluxo. Como não podia deixar de ser, as políticas de habitação, construção e urbanismo terão que mudar e ser desenhadas para esta população, promovendo e facilitando a sua autonomia e permitindo alternativas às respostas baseadas na institucionalização. É desnecessário, é doloroso para estas pessoas e é também dispendioso para toda a gente. Trabalhar na prevenção de problemas deve ser a direção a seguir, e, nesta prevenção, as políticas de cidade e habitacionais são essenciais.
O conforto habitacional é uma das medidas de qualidade de vida que nos permite também aferir da capacidade de fazer face a problemas que se agravam ao longo do tempo. Quando a habitação não é confortável e adaptada, ou acessível, bem isolada e localizada, vários problemas se intensificam. Desde logo, o flagelo que é a pobreza energética, mas também os entraves a uma vivência autónoma, indispensável à garantia da não institucionalização das pessoas, quer por inadaptação e falta de condições do local onde se vive - e que pode acarretar doenças -, quer por acidentes provocados por casas que não foram pensadas para acompanhar o ciclo de vida e se transformam em fontes de perigo ao longo dos anos.
Sobre a pobreza energética, sabemos que a definição a situa numa forma distinta de pobreza e que tem “uma série de consequências adversas para a saúde e o bem-estar das pessoas — com doenças respiratórias e cardíacas e saúde mental, exacerbadas devido às baixas temperaturas e ao stress associados a contas de energia inacessíveis” como bem explica o Observatório de pobreza energética da UE. Da definição de conforto habitacional do Eurostat sabemos que a existência de algumas deficiências habitacionais, como sejam infiltrações e humidades, ou ainda fraco isolamento de janelas e portas, confluem para um mau conforto habitacional. Em 2014, o Eurostat dava conta de que cerca de 46% dos idosos que vivem sozinhos assinalavam a presença de, pelo menos, uma destas condições de deterioração na sua habitação. Já se nos focarmos na pobreza energética e na ineficácia de acesso a isolamento térmico, segundo os mesmos dados, os níveis de pobreza energética percecionados ultrapassam os 60% para os idosos que vivem sozinhos. No caso de idosos em coabitação, chegam quase a 50%. Tendo em conta os rendimentos disponíveis desta fração da população, estas terão ainda mais dificuldade em garantir a adaptação às condições materiais que necessitam para viver com o mínimo de conforto e sem que as condições habitacionais agravem o seu estado de saúde. Pode assim falar-se de pobreza a nível de rendimentos, energético, mas também a nível habitacional. Podemos ainda falar de uma grande inadaptação do edificado às necessidades habitacionais de todos os ciclos de vida, principalmente de crianças e idosos, em que obstáculos facilmente ultrapassáveis na vida adulta representam perigos concretos mais no início ou no fim da vida.
Tendo esta análise em conta, e os problemas do aumento das rendas e a transição desenhada por Assunção Cristas das rendas anteriores a 1990 para rendas de um mercado especulativo e contratos a prazo, podemos dizer que esta população é das mais afetadas e mais vulnerabilizadas pela crise do parque habitacional. São vítimas da quantidade de casas devolutas que poderiam responder de melhor forma às suas necessidades, da falta de investimento em reabilitação para habitação permanente, do regime de reabilitação urbana que a excecionou do cumprimento de medidas de acessibilidade, proteção sísmica ou acústica no momento em que mais edifícios foram reabilitados, da parca mobilidade no nosso país e também de políticas públicas que aprofundam desigualdades brutais, como o regime de residentes não habituais, os vistos gold ou ainda os regimes fiscais favoráveis aos fundos imobiliários e ao Alojamento Local.
Tanto mais que as principais zonas alvo de especulação foram e são os centros históricos das cidades, que foram sendo abandonados e deixados sem condições e com altos níveis de ausência das estruturas públicas, com uma grande parte da população pobre e com uma grande concentração dos contratos anteriores a 1990. Anteriormente à especulação imobiliária, estas foram zonas abandonadas pelos poderes públicos e pelo mercado, ganhando atratividade apenas agora, mas de preferência sem os seus residentes de sempre. De facto, o que a lei de Assunção Cristas conseguiu promover foi uma caça aos despejos desta população, aproveitando a desinformação e a fragilidade de muitas destas pessoas a quem os serviços sociais, entregues a IPSS’s, foram abandonando. Se em 2011 os contratos antigos e com rendas congeladas eram cerca de 225 mil, em 2016 seriam apenas 115 mil, 15% do total dos contratos de arrendamento.
Neste ponto, recordo-me do encerramento do Centro Social e Paroquial de Miragaia, único equipamento de apoio às poucas centenas de pessoas, idosas e crianças, que ainda residiam naquela zona do Porto, altamente pressionada pela especulação e pela pressão turística. Neste momento, várias foram já expulsas daquela zona, outras faleceram depois de despejos violentos, muito poucas resistem ao assédio imobiliário.
Outra das dimensões, poucas vezes explorada, tem que ver com a ligação afetiva e a hipótese de manutenção de uma vida ativa em zonas urbanas mais centrais. Estudos identificam a necessidade de localização de parques ou áreas de lazer próximas às zonas residenciais de pessoas mais idosas, para que estas mantenham uma frequência de deslocação adequada à manutenção de uma vida ativa e de padrões de sociabilização e mobilidade. Se ao desenharmos as cidades e as zonas residenciais, ou ao pensarmos realojamentos, impusermos a gentrificação como solução a uma população altamente envelhecida, o que se provocará será um grave problema a nível de respostas de saúde e institucionalização de pessoas saudáveis e que conseguiriam viver uma vida autónoma muitas vezes até à morte, sem necessidade de internamento em hospitais ou lares. Desde que às casas fosse garantida a eficiência energética, a acessibilidade e a adaptação às necessidades que vão surgindo decorrentes de falência de algumas funções. E também que os serviços públicos garantissem o apoio e a comunidade a vigilância e atenção que cidades turistificadas não permitem manter.
Nesta última parte, e contando com um estudo da Câmara Municipal de Lisboa e da Santa Casa da Misericórdia, estas identificaram, no programa “Casa Aberta” cerca de 8 mil idosos em renda habitacional de mercado e com necessidades de apoio vário na adaptação no seu domicílio de forma a evitar institucionalização desnecessária, nomeadamente pelo perigo de quedas. Sabe-se que as obras de adaptação mais correntes têm que ver com adaptações de acessibilidade, quer a nível de mobilidade, quer de facilitação de higiene, assim como de eliminação de obstáculos e de fatores de risco, como tapetes, escadas, elementos dispostos em altura, remoção de banheiras, instalação de corrimãos e alargamento de portas, entre outras. Este projeto, em conjunto com o projeto “Radar”, que pretende utilizar os laços da comunidade e as ligações de vizinhança, implementado pelo departamento de direitos sociais, tem identificado e monitorizado os principais obstáculos à manutenção de autonomia desta população. A principal dificuldade identificada prende-se com a higiene habitacional, seguida da necessidade de cuidados de saúde e da dificuldade em realizar tarefas do dia-a-dia. Outras dificuldades foram identificadas, mas não tão expressivas.
Também a Segurança Social teve um programa entre 2007 e 2013, Programa de Conforto Habitacional para Pessoas Idosas. Este programa, nos anos de vigência, abrangeu melhorias em edificado para um conjunto de 1375 idosos apenas, manifestamente insuficiente para as necessidades. Para além disto, apenas abrangia aquelas pessoas com mais de 65 anos que vivessem em casa própria e em concelhos de baixa densidade. Ainda assim, uma boa ideia que, adaptada a uma população envelhecida nas várias zonas do país, deveria ser retomada abarcando também a população arrendatária. Este tipo de medidas é igualmente importante para que existam os necessários levantamentos e acompanhamento de contexto, à semelhança do que tem vindo a ser feito em Lisboa.
Ao acompanhar casos de pessoas idosas em situação de assédio imobiliário que ainda vivem nos centros históricos, nas casas onde nasceram e cresceram, entende-se que a vulnerabilidade vai crescendo quanto mais os espaços públicos existentes vão fechando, e quanto mais a mancha turística alastra. Entende-se ainda que a imposição que as retira da zona onde vivem e muitas vezes das suas casas lhes influencia o estado anímico e a vontade de manutenção do quotidiano. Aprofunda a sensação de abandono e depressão. Se estas pessoas não nos merecem a atenção de desenho de políticas públicas que lhes garantam a vida em sociedade, podemos ter a certeza de que estamos perante uma desatenção também connosco mesmas e com as condições a que chegaremos nessa idade, quer no acesso à habitação ou à saúde, quer no acesso à vida que nos vai mantendo por cá. Lutar por habitação digna tem de abarcar esta esfera e a indispensável flexibilidade da habitação para responder às necessidades de adaptação de uma população envelhecida.