Os Estados Unidos estão a enfrentar uma crise de democracia?

porLance Selfa

A Constituição dos “pais fundadores” propunha um sistema que institucionalizava o papel dos ricos para controlar as paixões da "ralé". Lance Selfa mostra como esse medo do povo originou várias caraterísticas do sistema político dos EUA e como as lutas sociais expandiram direitos.

01 de novembro 2020 - 18:17
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Pintura numa fábrica abandonada. Thomas Hawk/Flickr.
Pintura numa fábrica abandonada. Thomas Hawk/Flickr.

É comum, hoje em dia, ouvir peritos dizerem que os Estados Unidos enfrentam uma crise "sem precedentes" de democracia. Os liberais da MSNBC [1] têm vindo a explicar, há anos, como a "interferência russa" nas eleições presidenciais de 2016 e 2020, representa uma ameaça existencial à democracia e à soberania dos EUA.
Num discurso na Universidade George Washington, em Setembro de 2020,, o senador de Vermont, Bernie Sanders, disse sobre as eleições presidenciais de 2020: "Não é apenas uma escolha entre Donald Trump e Joe Biden. É uma escolha entre Donald Trump e a democracia – e a democracia tem de vencer". E o eixo estratégico para "salvar" a democracia americana do "fascismo", argumentam, consiste em votar em Joe Biden e num Congresso Democrático: "azul, não importa quem seja" [2].
Há muitas razões para deplorar o mau estado da democracia americana de hoje, mesmo na sua forma limitada: eleições, parlamentos, tribunais, etc. Mas muitos críticos liberais sugerem que é Trump ou os seus apoiantes russos que representam a maior ameaça à democracia americana.
Contudo, mesmo utilizando critérios bastante grosseiros para definir democracia – eleições relativamente livres e justas, eleitores com poucas ameaças à sua segurança pessoal – apenas cerca de 12% da população mundial vive numa "democracia completa", segundo o Índice de Democracia 2010 da EIU (Unidade de Investigação do semanário britânico neo-liberal "The Economist"). De acordo com os seus critérios, cada vez mais pessoas vivem sob regimes autoritários [3].
Em 2010, os Estados Unidos foram classificados em 17º lugar na lista de "democracias de pleno direito". Em 2020, tinha caído para 25º lugar, deixando as fileiras das "democracias completas" e juntando-se às "democracias imperfeitas", atrás da Coreia do Sul, Espanha, Portugal e Chile, cujos regimes atuais nasceram depois das duas últimas gerações de ditadura militar e são agora classificados como "democracias completas" [embora haja dúvidas sobre isto, se olharmos para as políticas repressivas do Chile e do Estado espanhol].
Trump é certamente um Bonaparte de segunda categoria. Mas basta perguntar como é que ele atingiu esta posição para compreender a verdadeira crise da democracia americana. Em 2016, obteve uma vitória apertada no Colégio Eleitoral, mas perdeu o voto popular por mais de 2 milhões de votos. Foi o segundo presidente republicano deste século a "ganhar" com menos votos do que o seu adversário [4]. Mas a eleição de Trump, em 2016, é a quinta na história dos EUA em que o vencedor das eleições presidenciais recebeu menos votos do que o derrotado.
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Isto não aconteceu por acaso. É o resultado de um projeto que remonta aos documentos fundadores da república americana. A Constituição, reverenciada tanto pelos liberais como pelos conservadores, foi pouco mais do que um pacto que cimentou para toda a eternidade o reinado da elite dos principais comerciantes e proprietários de escravos no nascimento dos Estados Unidos.
A linguagem da Declaração de Independência de 1776, quando os Estados Unidos se emanciparam da Grã-Bretanha, é bastante radical: "todos os homens são criados iguais"; "os governos são estabelecidos entre os homens para assegurar estes direitos e o seu justo poder emana do consentimento dos governados"; "quando uma longa série de abusos e usurpações, invariavelmente dirigidas ao mesmo fim, marcam o desígnio de sujeitar [os homens] ao despotismo absoluto, é seu direito e dever rejeitar tal governo e proporcionar novas salvaguardas para a sua segurança futura"; etc.; etc. A elite colonial utilizou esta retórica para mobilizar a massa da população para conquistar a sua independência da Grã-Bretanha.
Mas os fundadores, saídos na sua maioria das fileiras dos maiores comerciantes e proprietários de plantações, não tinham qualquer intenção de confiar o estado recém-independente a artesãos e agricultores. Um dos mais conscientes dos seus interesses de classe, Alexander Hamilton [1757-1804], militar, Primeiro Secretário do Tesouro e editor chefe dos Documentos Federalistas (uma série de ensaios que foram muito populares e justificaram a Constituição), deixou claro: "É ao poder que detém os cordões da bolsa que deve ser deixado governar sem limites".
Contudo, a população colonial tinha empreendido uma revolução para conquistar a independência e os fundadores aperceberam-se de que era simplesmente impossível ignorar a democracia. Assim, a sua Constituição propunha um sistema que institucionalizava o papel dos ricos e dos "bem nascidos" para controlar as paixões daquilo a que chamavam a "ralé". A fórmula escolhida pela Constituição foi a do "governo representativo", onde o povo elege um número limitado de representantes, escolhidos de entre os ricos.
Hamilton explicou isto, explicitamente, no Documento Federalista nº 35, onde argumenta que "os artesãos e mecânicos" (terminologia do século XVIII para designar os trabalhadores) estarão inclinados a votar em "mercadores e aqueles que eles recomendam" como sendo os seus "patrões naturais, os seus amigos". E o facto de o comerciante ser eleito seria suficiente para assegurar a sua lealdade aos interesses das pessoas comuns.
A outra preocupação fundamental dos Pais Fundadores era assegurar que o governo não desse às massas a oportunidade de se unirem para ameaçar a propriedade de uns poucos. Um dos acontecimentos que levou as elites a abandonar o governo fraco dos Artigos da Confederação [5] e substituí-lo pelo governo federal previsto na Constituição, foi a Rebelião Shay [de agosto 1786 a janeiro 1787], uma revolta armada de agricultores na região ocidental de Massachusetts contra o confisco dos seus bens para pagar as suas dívidas ao Estado.
O General Henry Knox [1750-1806, Primeiro Secretário de Guerra], falando destes rebeldes, escreveu a George Washington [1732-1799]: "É seu credo que tendo sido os esforços conjuntos de todos que protegeram os bens dos Estados Unidos contra a sua confiscação por parte da Grã-Bretanha, esta deveriam ser propriedade comum de todos". "Esta situação terrível alarmou todos os homens com princípios e proprietários na Nova Inglaterra", continuou Henry Knox. "O nosso governo deve ser reforçado ou alterado para proteger as nossas vidas e os nossos bens".
Os comentários de Henry Knox podem ter sido alarmistas, mas grande parte da Convenção Constitucional [6] e muitos apoiantes dos Documentos Federalistas debateram-se com a questão de como impedir a maioria de afirmar a sua vontade. A julgar pelos seus resultados, os Pais Fundadores conseguiram, em grande parte, fazê-lo.
Criaram um sistema em que, inicialmente, apenas parte do governo (a Câmara) foi diretamente eleito. Há cem anos, os Estados nomearam senadores norte-americanos. O Senado teve de incluir os principais cidadãos do Estado, que tiveram de arrefecer as paixões da multidão na Câmara. Hoje em dia, os eleitores americanos ainda não elegem diretamente o presidente.
A estrutura do governo é criada para fragmentar o poder, com ambas as casas do Congresso (Senado e Câmara dos Representantes) eleitas em momentos diferentes, para mandatos diferentes. Com poderes partilhados entre municípios, estados e o governo federal. Com poderes divididos entre os ramos executivo, legislativo e judicial. Tudo isto foi, como disse James Madison no Documento Federalista nº10, para se precaver, entre outras coisas, contra "um furor pelo papel-dinheiro, pela abolição da dívida, pela divisão igualitária da propriedade ou por qualquer outro projeto inaceitável ou maléfico".
E talvez o mais importante desses "projetos inaceitáveis ou maléficos", o que ele não nomeava. Mas que finalmente acabou por se impor, a abolição da escravatura, a maior expropriação de riqueza da história dos Estados Unidos. James Madison, saliente-se, é ele próprio membro das elites da Virgínia, cujo poder económico e político se baseava na escravatura.
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Este medo da vontade popular deu origem a outras caraterísticas do sistema político e institucional dos Estados Unidos, o Colégio Eleitoral, a representação igualitária dos Estados no Senado dos EUA – independentemente da sua dimensão ou população – e mesmo o voto nas eleições federais, onde cada Estado emitiu os seus próprios regulamentos, representaram "compromissos" com o poder esclavagista que a própria Guerra Civil não eliminou.
A história da democracia nos Estados Unidos não terminou, obviamente, aí. As lutas em massa expandiram o seu espaço, as mais importantes das quais foram o derrube da escravatura, a mobilização das mulheres para obter o direito de voto, a luta pelo referendo, a convocação [7] e a eleição direta de senadores ganhos pelos movimentos populistas e progressistas [8], a luta pelos direitos sindicais, na década de 1930, e a luta pelos direitos civis, na década de 1960.
É apenas através destas lutas – frequentemente dirigidas contra a classe dominante e os "bem nascidos" – que o leque de direitos democráticos formalmente reconhecidos nos Estados Unidos se expandiu para além dos limites impostos pelos Pais Fundadores. No entanto, os resultados das eleições presidenciais de 2000 e 2016, onde o perdedor do voto popular "ganhou" as eleições, lembram-nos que a estrutura do governo dos EUA é orientada contra a maioria e conservadora.
James P. Cannon [1890-1974], um dos fundadores do movimento trotskista americano, disse um dia que "[os socialistas] devem reconhecer que as exigências [dos trabalhadores] pelos direitos humanos e garantias democráticas – agora e no futuro – são em si mesmas progressistas. O dever dos socialistas não é negar a democracia, mas estendê-la, torná-la mais completa". Ele acrescentou: "Nos Estados Unidos, a luta pela democracia dos trabalhadores é, antes de mais, uma luta das bases pelo controlo democrático das suas próprias organizações".
Este ponto é importante. Os períodos na história dos EUA em que os direitos democráticos foram alargados foram aqueles em que massas de pessoas se organizaram para defender os seus próprios interesses e se envolveram num processo de "aquisição democrática" das suas próprias organizações, formando milhares de pessoas comuns para se tornarem ativistas nas suas próprias lutas.
O grande historiador do povo, Howard Zinn [1922-2010] (alvo recente de insultos de Trump) explicou-o bem: "A Constituição não dá direitos aos trabalhadores; nenhum direito a trabalhar menos de 12 horas por dia, nenhum direito a um salário decente, nenhum direito a condições de trabalho seguras. Os trabalhadores tiveram de se organizar, fazer greve, desafiar a lei, os tribunais, a polícia, criar este enorme movimento que ganhou a jornada das oito horas e causou tal agitação que o Congresso foi obrigado a aprovar uma lei sobre o salário mínimo e sobre a segurança social, sobre o seguro de desemprego... Estes direitos só ganham vida quando os cidadãos se organizam, protestam, manifestam-se, fazem greve, boicotam, rebelam-se e violam a lei para fazer cumprir a justiça". [9]
Os movimentos devem levar a sério esta lição, e pouco importa, sob este ângulo, quem se senta na Casa Branca ou no Supremo Tribunal nesta perspetiva


Lance Selfa é autor de "The Democrats: A Critical History" (Haymarket Books, 2012) e Coordenador de U.S. Politics in an Age of Uncertainty.

Artigo publicado originalmente no website do Projeto Socialismo Internacional em 12 de Outubro de 2020. Republicado no A L’encontre. Traduzido da versão francesa por António José André para esquerda.net.


Notas:

[1] MSNBC é um canal de notícias por cabo transmitido em streaming nos Estados Unidos e no Canadá. O seu nome é uma combinação de MSN (um serviço da Microsoft) e NBC (o nome genérico de um canal pertencente ao grupo NBC Universal). Foi lançado a 15 de Julho de 1996.
Em retrospetiva, podemos ver que nos últimos dez anos, a MSNBC tem vindo a estabelecer uma identidade política. Vista do outro lado do Atlântico como a antítese da rede conservadora Fox News, a MSNBC é considerada um dos canais de cabo americanos mais liberais (conhecidos como "esquerdistas" nos Estados Unidos) e próximos do Partido Democrata. (Nota do A L’Encontre)
[2] O azul é a cor do Partido Democrata nos Estados Unidos. O vermelho é a cor do Partido Republicano. (Nota do A L’Encontre)
[3] O Índice de Democracia foi criado em 2006 pela EIU (unidade de investigação do grupo de imprensa britânica altamente neoliberal The Economist Group) (Nota do A L’Encontre).
O índice avalia o nível de democracia em 167 países, dos quais 166 são Estados soberanos e 165 são membros da ONU, de acordo com os critérios desenvolvidos pela EIU. Os países são classificados em quatro categorias: a primeira é a das "democracias completas", seguida pela das "democracias imperfeitas", dos "regimes híbridos" e dos "regimes autoritários" (Nota do A L’Encontre).
[4] De facto, nos três estados fulcrais – Wisconsin, Michigan e Pensilvânia – o voto total de Trump foi apenas de 77.000, o que lhe deu a maioria do colégio eleitoral que elege o presidente. Assim, estes 77.000 votos anularam efetivamente os 2 milhões de votos de avanço de Hillary Clinton.
Em 2016, os fundos da Fundação da Mercer Familly desempenharam um papel importante na mobilização, não só da rede liderada por Steve Bannon, mas também (e, em particular) dos recursos da Cambrigde Analytica, que foram usados para visar com precisão, com base num conjunto massivo de dados tabelados, potenciais eleitores que poderiam votar Trump, especialmente, nos Estados centrais (Nota do A L’Encontre).
[5] Os Artigos de Confederação e da União Perpétua são um documento elaborado, em 15 de Novembro de 1777, pelo Segundo Congresso Continental: uma reunião dos treze Estados fundadores dos Estados Unidos da América. Os Estados Unidos tinham então estado em guerra pela sua independência, durante dois anos, contra a Grã-Bretanha. Os Artigos estabelecem uma primeira Constituição que organizou os treze Estados numa Confederação. (Nota do A L’Encontre)
[6] A Convenção Constitucional teve lugar de 25 de Maio a 17 de Setembro de 1787, em Filadélfia (Pensilvânia). Originalmente destinada a tratar de problemas dos Estados Unidos após a independência da Grã-Bretanha, declarada a 4 de Julho de 1776, ao alterar os Artigos da Confederação, resultou na elaboração e adoção da Constituição dos Estados Unidos, ainda hoje em vigor.
A vontade de muitos participantes, incluindo o federalista James Madison (1751-1836, quarto presidente dos Estados Unidos de 1809 a 1817) e Alexander Hamilton, foi a de estabelecer uma nova forma de governo em vez de simplesmente corrigir a que foi estabelecida pelos Artigos da Confederação (Nota do A L’Encontre).
[7] Recall (também conhecido como referendo de retirada, petição de retirada ou retirada de representante) é um procedimento através do qual os eleitores podem retirar um eleito por votação direta antes do final do mandato. Os processos de destituição pelo voto, que são iniciados quando um número suficiente de eleitores assina uma petição, têm uma história que remonta à constituição da antiga democracia ateniense e figuram em várias constituições atuais.
Na democracia indireta ou representativa, os representantes do povo são eleitos e estes representantes governam por um período de tempo fixo. No entanto, quando existe a possibilidade de revogação de mandato, caso um representante seja considerado como não estando a cumprir devidamente as suas responsabilidades, então poderá ser sujeito a votação através de pedido escrito de um número ou proporção específica de eleitores (Nota do A L’Encontre).

[8] “Movimento populista”: O Partido Populista é, desde há muito, o terceiro maior partido político dos Estados Unidos. Fundado, em 1876, por círculos camponeses americanos, teve a sua hora de glória em 1892 quando o seu candidato presidencial ganhou vários estados, incluindo Idaho, Colorado, Kansas e Nevada, bem como parte do Oregon e Dakota do Norte.
Cessou toda a sua atividade, em 1908. O partido defendeu o abandono do padrão-ouro, a luta contra os monopólios e a nacionalização dos caminhos-de-ferro. Algumas das suas ideias, após o seu fim, encontraram o seu caminho no Partido Socialista da América (SPA) no New Deal dos anos 30. Estas ideias encontram uma forma "atualizada" em Bernie Sanders.
Enquanto os Populistas eram principalmente agricultores descontentes que defendiam reformas radicais, os Progressistas eram reformadores urbanos de classe média, incluindo mulheres, que queriam aumentar o papel do governo na reforma enquanto mantinham uma economia capitalista, embora denunciando as desigualdades.
[9] Daí a importância de abordar a questão da defesa da "democracia" não de um ângulo genérico, mas do ângulo da defesa dos direitos democráticos nas suas várias dimensões (Nota do A L’Encontre)

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