Nolwenn Weiler: O “pobre pequeno branco” que deu título ao seu último livro não existe, afirma. É um personagem fantasmado, criado pelos neo-conservadores americanos, brancos de classe média e superior para conservar o seu poder. Pode explicar o que é esta construção ideológica?
Devo começar por lembrar que existem brancos pobres nos Estados Unidos. Não o nego de forma alguma. As desigualdades sociais causam uma devastação considerável, incluindo entre os brancos que representam 60% da população americana.
A situação endureceu ainda mais com a crise de 2008 ou mais recentemente com a crise da Covid-19. Aquilo de que falo no meu livro é de um discurso que é construído: o que fala de um americano ideal, autêntico, tradicional, branco evidentemente, que incarnaria todos os valores da nação como o trabalho e a perseverança e que estaria a ser perseguido pelos não brancos, menos merecedores que ele.
Fala-se do “Joe canalizador”, infeliz porque os chineses fecharam a sua fábrica e porque os perigosos mexicanos passam clandestinamente a fronteira para lhe ficar com o emprego. Evidentemente esta pessoa não existe. Enganamo-nos ao imaginar que todos os proletários e trabalhadores pobres dos Estados Unidos são brancos e que se dirigem à fábrica. O proletariado americano é em grande parte composto por pessoas racializadas. Além disso, o operário hoje em dia é mais frequentemente o condutor da Uber ou de empregado da McDonalds do que o fabricante de carros ou o mineiro.
Quando evoco o “pobre pequeno branco”, não designo então uma personagem demográfica ou sociológica. Falo de uma narrativa, inteligentemente construída pelos neo-conservadores americanos brancos que não são de todo pobres. O seu objetivo é contar a história de que a América autêntica está ameaçada por “outros” – os negros, as mulheres, os hispânicos – que conspiram contra os brancos.
Trata-se na verdade de uma ideologia do ressentimento que visa manter no poder os homens brancos. Este discurso da perda e do menosprezo é construído por pessoas da elite branca, cristã e conservadora.
NW: É este medo da despossessão das classes médias e superiores brancas que levou os eleitores a votar por Trump mais do que o medo da degradação económica e social. Muitos comentadores e jornalistas consideraram, contudo, que a eleição de Trump foi devida ao voto dos brancos pobres que teriam expressado assim estarem fartos. Estas análises estão enganadas?
Trump conseguiu fazer acreditar que era o candidato dos pequenos. Aquele que iria trazer-lhes de volta o que era seu de direito – o trabalho, a possibilidade de ascensão social, de aceder à propriedade etc. - que lhes teria sido roubado pelos negros e pelos hispânicos.
É evidentemente fazer pouco caso da realidade uma vez que se há pobres e desigualdades sociais nos Estados Unidos é responsabilidade das políticas neoliberais e das reformas fiscais, em grande medida empreendidas pelos republicanos. Os negros não têm nenhuma responsabilidade no fecho de fábricas, no endurecimento do mercado de trabalho ou no colapso do mercado imobiliário.
Penso que houve muita gente enganada ao ter uma leitura estritamente materialista da eleição de Trump em 2016. O que levou as pessoas a votar por ele foi o medo – fantasmado – da despossessão pelas minorias mais do que o medo de perder.
“Vocês são maltratados, disse-lhes Trump, porque estas minorias vêm ameaçar-vos. Vou acabar com isso e vou-vos proteger. Vou fazer construir um muro. Vou devolver-vos o que era vosso.” Mas ele não o faz retirando-o aos poderosos que espoliaram os cidadãos americanos mas cortando os direitos dos negros e das outras minorias. É um discurso profundamente xenófobo que procura justificar-se tentando arrastar os mais pobres. E não o inverso que consiste em dizer que as pessoas se tornam racistas porque são pobres.
Em 2016, penso que também se subestimou o caráter profundamente religioso de América. Os americanos são muito apegados ao tradicionalismo cristão. Veem o mundo mudar à sua volta, como por exemplo a questão do casamento entre homossexuais, e assustam-se. A sua América fantasmada, branca e cristã parece estar a desaparecer. Este medo da perda e do menosprezo é muito forte entre os cristãos que votaram massivamente por Trump. E isto não diz respeito apenas aos mais pobres.
NW: Porquê e como Donald Trump conseguiu instrumentalizar tão facilmente e tão eficazmente este medo do menosprezo, a impressão de não ter controlo sobre o curso da vida?
Há várias razões para isto. É necessário antes de mais precisar que esta ideologia estava presentes desde há muito tempo. O medo e a desconfiança estão presentes desde a origem dos Estados Unidos que se construiram na base da espoliação e exterminação de um povo e da escravidão.
Os índios e os negros foram sempre considerados como bárbaros, face aos quais é preciso proteger-se, e que ameaçam vir espoliar os seus senhores brancos. Há uma postura de auto-defesa matricial, ontológica, que os neo-conservadores e os republicanos conseguiram estimular com imenso sucesso.
As políticas securitárias desenvolvidas desde há décadas, também pelos democratas, não resolveram nada: temos sempre mais polícia, mais prisão, com uma evocação quotidiana das ameaças que representariam os estrangeiros. Este clima ansiogénico fez os republicanos surgirem como uma solução para proteger os verdadeiros americanos.
Por outro lado, a crise financeira de 2008 agravou a vulnerabilidade das pessoas. Milhões de americanos perderam tudo: a sua casa, os seus sonhos, as suas perspetivas de ascensão social. Isto criou muita raiva e amargura.
Depois, houve a eleição de Obama e a violência e hostilidade que suscitou. Relembremos a polémica em que se procurava afirmar que Barack Obama não era americano. A partir de 2010, o Tea Party destilou uma grande cultura de animosidade face aos negros, aos muçulmanos e aos hispânicos.
É verdadeiramente difícil resistir a esta ideologia quando se é um republicano ou um independente branco predisposto a sentir-se lesado.
A retórica perniciosa segundo a qual os democratas estariam apenas a favor das minorias e menosprezariam os trabalhadores brancos tornou-se um lugar comum. Claro que o Partido Democrata e a sua linha neoliberal fez pouco caso dos mais pobres mas nunca “privilegiou” os negros”!
Apenas a campanha de Bernie Sanders, ao mesmo tempo socialista e anti-racista, propunha uma alternativa. Mostrou que milhões de americanos acreditam ainda na solidariedade e na justiça social. Mas, por agora, permanecem marginalizados.
NW: Lembra que esta ideologia do ressentimento está diretamente ligada à evolução dos direitos conquistados pelos negros ou pelas mulheres. Trata-se do “backlash”. Pode explicar este conceito?
O “backlash”, teorizado pelo movimento anti-racista americano nos anos 1960, fala da reação branca aos avanços dos direitos dos negros. De cada vez que estes conquistam direitos – no mundo do trabalho, na universidade, na política – os brancos vivem-no como uma confiscação.
Há uma vontade política feoz de voltar atrás nestes progressos, quaisquer que sejam, porque seriam atentatórios da identidade americana. Exalta-se por exemplo a “meritocracia” americana ou a “liberdade” para justificar medidas de justiça reparadora. Os negros não mereceriam estes direitos, como a Ação Afirmativa ou ajuda social. É uma ideologia de conservação de privilégios. Data de Nixon e Reagan e foi reativada pelo Tea Party depois da eleição de Obama.
Vendo uma família negra na Casa Branca, as pessoas tiveram a impressão que a América tal como a fantasmavam estava em vias de desaparecer. A isto juntou-se um facto demográfico, revelado no curso primeiro mandato de Obama: a partir de 2040, os brancos serão minoritários. Já nascem mais crianças negras e hispânicas nos Estados Unidos atualmente do que crianças brancas.
Entre os cristão, os brancos vão igualmente tornar-se minoritários. Tudo isto alimenta o medo da despossessão, da perda de estatuto e leva as pessoas a votar por Trump.
NW: Trata-se de uma recusa radical de partilhar o poder mas também o resto: as riquezas, o território, o trabalho?
Penso que é algo mais subtil que isso. Poder-se-ia falar de um superego racial que se exprime quase sem a consciência das pessoas. A maior parte dos americanos não pensam ser racistas. Não encontramos muita gente que diga que é preciso autocarros para brancos e para negros por exemplo.
Muita gente sente-se livre desta ideologia.
Ao mesmo tempo, quando chega o momento de escolher uma escola, um bairro, ou quando se evoca a violência policial o superego manifesta-se. Mesmo em famílias brancas muito liberais. Escolhe-se uma escola onde não haja muitos negros pensando que se trata de “uma boa escola”. Escolhemos um bairro sem muito negros pensando igualmente que é “um bom bairro”. Quanto à polícia ela é “brutal” mas “é preciso que nos proteja”.
Há uma vontade de se proteger da diversidade que se teme que nos faça perder a prazo o nosso estatuto. Este medo que alguém nos venha tomar o que nos pertence de direito está no coração da consciência de ser branco nos Estados Unidos. Trump jogou com este medo do perigo iminente, mantido por outro lado pela criminalização dos negros – através dos meios de comunicação social ou de certas séries de televisão mas igualmente pelos democratas.
NW: Depois de quatro anos no poder, Trump continuar popular junto dos seus apoiantes. Apesar das sondagens muito desfavoráveis, a sua reeleição a três de novembro próximo não é impossível. Como o explica?
Sim, esta popularidade pode parecer surpreendente, enquanto que os indicadores económicos e sociais estão piores. Os números do desemprego em baixa (sobretudo antes da epidemia) não podem esconder que, em quatro anos, a situação se degradou claramente. Os americanos estão pior, a sua saúde deteriorou-se. O bem-estar não progrediu, pelo contrário. Mas os 40 a 44% de americanos que eram a base de apoio de Trump em 2016 continuam a apoiá-lo. Mesmo os que perderam o emprego, mesmo os que observaram a gestão catastrófica da crise sanitária da Covid-19, até os que não podem deixar de constatar a que ponto o país todo é mal gerido.
Trump continua a seduzir apesar da realidade. Para mim, isso é a prova de que o que lhes agrada nele é o que ele diz, não o que ele faz. Uma grande parte dos americanos brancos gostam de ouvir dizer que são espoliados por outros e que alguém vai vir para os salvar. “Contem comigo, disse-lhes Trump. Eu vou perseguir os negros, vou perseguir os mexicanos, vou mandar as mulheres de volta para casa e vocês ficarão melhor”. É um discurso hiper-fundamentalista da identidade branca que se normalizou e que atualmente muito enraizado nos Estados Unidos.
NW: Esta normalização do discurso fundamentalista verifica-se também deste lado do Atlântico. Será que são os mesmos mecanismos a funcionar?
Claro! É por isso que se pode sorrir quando se escuta os apoiantes desses discursos racistas acusar os movimentos anti-racistas e feministas de importar as suas ideias dos Estados Unidos; o seu discurso foi teorizado nos anos 1970 pelos neoconservadores americanos!
Foi o que ouvimos dizer contra o “separatismo” ou o “comunitarismo” dos movimentos anti-racistas franceses! Ou que os homens brancos seriam os “bodes expiatórios”. De igual forma lemos que os homens designados como violentos pelo movimento Me Too era vítimas de “linchamento” ou que as verdadeiras vítimas no nosso país eram os pequenos brancos dos bairros periféricos. Tudo isto são ideias diretamente importadas dos Estados Unidos; ideias de extrema-direita que estão agora à vista. A cada momento, trata-se de deslegitimar os verdadeiros oprimidos e de inventar um branco infeliz para que aqueles que estão no poder desde sempre possam continuar nele.
Sylvie Laurent é historiadora, investigadora em Harvard e professora na Sciences-Po. O seu último livro é Pauvre petit blanc, publicado pela Maison des Sciences de l’Homme, em setembro. Antes disso foi autora, nomeadamente de Homérique Amérique nas edições Seuil em 2008 e Poor white trash, la pauvreté odieuse du Blanc américain na Presses de la Sorbonne em 2011.
Entrevista de Nolwenn Weiler publicada na Bastamag. Tradução de Carlos Carujo para o esquerda.net.