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Covid USA

Enquanto a Covid-19 se revela uma tragédia sem paralelo no país, Trump continua a sua farsa de muito mau gosto. A sua gestão da pandemia é uma história de mentiras, insensibilidade e incompetência. Por Carlos Carujo.
Memorial às vítimas da covid-19 em Washington. Foto de Phil Roeder/Flickr.
Memorial às vítimas da covid-19 em Washington. Foto de Phil Roeder/Flickr.

Qualquer político estaria acabado. A revelação de que Trump conhecia a verdadeira dimensão que a pandemia iria atingir mas decidiu ocultá-la seria fatal. O negacionismo da covid-19, as soluções falsas e a oposição às medidas que poderiam funcionar, as mentiras sobre a vacina que chegaria a qualquer momento, conjugados com um anticienticismo militante e a desconfiança no saber médico descredibilizá-lo-iam. A bazófia com que enfrentou a cura da doença e a falta de empatia por quem sofre pelas suas decisões torná-lo-iam altamente impopular. Os números recorde da pandemia no seu país e a incapacidade gritante e gritada em dar resposta mostra-lo-iam como um incompetente que não está à altura dos acontecimentos e fá-lo-iam ser derrotado sem apelo nem agravo nas próximas eleições.

Mas Trump não é qualquer político. Aliás, o mesmo se pode dizer de vários outros que seguem a mesma linha: mentirosos compulsivos, gabarolas auto-centrados, bullies assumidos que se alimentam das polémicas que criam e ganham um estatuto de quase-impunidade. A polarização que talham à sua medida, intimida adversários e dá-lhes uma base de apoio fanatizada e acrítica que não falha nas urnas e não só.

E também as eleições presidenciais dos EUA não são quaisquer eleições. A eleição indireta do presidente por um colégio eleitoral que distorce a representatividade eleitoral, os estados indecisos nas mãos dos republicanos e esses governos com capacidade de tomar decisões fulcrais sobre o processo eleitoral, o Supremo onde têm maioria e que é o árbitro derradeiro das inúmeras disputas sobre votos não presenciais que já existem e que se podem multiplicar após a noite eleitoral, as estratégias obscuras mas omnipresentes de “supressão de votos” que impedem milhões de pessoas de votar, são todos fatores que jogam a favor de Trump.

O presidente em exercício, aliás, ameaça abertamente manter-se no poder através de um golpe eleitoral: podendo ter maioria na contagem de votos presenciais, o que é provável porque a sua base de apoio desconfia, desconfiança para a qual ele foi uma peça central, dos votos antecipados e por correspondência, tentaria declarar-se vencedor e procuraria anular o máximo de votos não presenciais por serem tardios ou não cumprirem certos requisitos.

A seu favor joga ainda a instrumentalização das medidas de apoio à economia e aos cidadãos no primeiro pico da pandemia, concertadas entre ambos os partidos, e a ameaça de que Biden encerraria a economia, provocando uma crise ainda maior do que aquele que se vive já de momento. "Se Biden vencer manda toda a gente para casa", disse num dos comícios do último fim de semana de campanha. Noutro deles disse: “se votarem Biden, não vão ter filhos na escola, nem entregas de diplomas, casamentos, Dia de Ação de Graças, Natal, nem Dia da Independência. Tirando isso, vão ter uma vida maravilhosa”.

O medo é assim mobilizado descaradamente por Trump. Mas não é carta certa porque, com um segundo pico da pandemia a chegar, um medo ainda maior pode ser o de manter um presidente errático no cargo. Assim, Trump vai ser julgado politicamente nestas eleições pelo que fez e não fez no combate ao coronavírus, pelas promessas que continua a fazer de soluções rápidas mas também pela expetativa do que poderia fazer ganhando.

Antes da pandemia: os cortes

Ainda que possa estar longe da equação eleitoral, para analisar a sua gestão da pandemia temos de regressar ao que foi feito antes dela. E a administração Trump está longe de ficar bem na fotografia desse passado recente.

John Bolton, à data conselheiro de segurança nacional de Trump, tratou de desativar em 2018 uma estrutura montada pelo seu antecessor com o objetivo de coordenar as várias instâncias estatais em caso de contágio, o Diretório para a Biodefesa e Segurança Sanitária Global da responsabilidade do Conselho de Segurança Nacional. Despediu também Tom Bossert, um conselheiro de segurança na área, e Timothy Ziemer, acabando com a equipa que dirigia em nome da necessidade de cortes orçamentais.

Em julho de 2019, o governo norte-americano despediu e acabou com o lugar de uma especialista em saúde pública que colaborava com a agência chinesa que trabalha na deteção de surtos no país. Dois meses depois acabou com o programa Predict cujo objetivo era seguir novos elementos patogénicos em todo o mundo. Este programa tinha identificado 160 coronavírus potencialmente perigosos.

Já depois da pandemia estar a espalhar-se, o governo de Trump decidiu cortar em 15% o orçamento do CDC, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, mas o Congresso rejeitou a proposta.

Durante a pandemia, a minimização do problema

Chegada a pandemia, a estratégia declarada foi minimizar o problema, ou seja enganar conscientemente a opinião pública acerca da gravidade da doença e da sua disseminação. A revelação desta escolha chocante chegou pela própria voz de Trump em declarações gravadas para um livro do famoso jornalista norte-americano Bob Woodward.

Trump prometia então a normalidade na Páscoa. Por várias razões, uma delas era o calor: "há muita gente que defende que o vírus de que estamos a falar vai desaparecer em abril com o calor, à medida que for ficando mais calor. Portanto, isto vai provavelmente desaparecer em abril".

Muitas vezes a seguir voltou a prometer o fim do surto ou a chegada da vacina. Muitas vezes desdenhou as medidas de segurança mínimas, até que contraiu a doença. E muitas vezes atacou os governadores do partido rival pelas medidas de confinamento tomadas.

Uma reportagem do New York Times, de finais de março, dá-nos um retrato muito distinto destas promessas ou até da escolha consciente de minimizar o problema, mostra a incompetência governamental que fez com que se perdesse um mês antes de começar com as testagens “devido a falhas técnicas, obstáculos dos regulamentos, burocracias business-as-usual e falta de liderança a múltiplos níveis”.

Trump, sem máscara

A versão de Trump sobre a mesma questão é outra e mais incriminatória para si. Em junho respondia aos jornalistas que “a testagem é uma faca de dois gumes”. Isto porque aumentar os testes faria “aumentar os casos”. “Por isso disse à minha gente: atrasem a testagem, por favor”.

Sobre as medidas concretas de combate à covid-19, o presidente tanto sacudiu a água do capote por vezes, dizendo que era da responsabilidade dos governos estaduais, como fez pressão junto desses mesmos estados para que não implementassem medidas que colocassem em causa a “liberdade” da economia ou se livrassem delas o quanto antes.

E enquanto outros dirigentes mundiais faziam pedagogia, apelando à tomada de medidas individuais que diminuíssem possibilidades de contágio, o chefe de Estado norte-americano contrariava as próprias regras do organismo responsável pela saúde, o CDC, sobre uso da máscara, dizendo quer era uma escolha pessoal e dava o exemplo errado não a usando em público durante meses.

Terá convencido muitos a fazer o mesmo com consequências que se podem imaginar. Já sobre os efeitos da decisão de manter comícios de campanha sem medidas de segurança não é preciso imaginar. Há números calculados por cientistas da Universidade de Stanford. O seu estudo aponta para que tenham desencadeado 30.000 casos e provavelmente causado 700 mortes.

De consequências menos fatais foram as várias declarações bizarras com que foi pontuando todo este processo: sugeriu que injetar lixívia nos pulmões pudesse curar a doença, disse que se curou porque é “um espécime físico perfeito” e que a culpa de haver muitos casos era dos médicos porque estes “ganham mais dinheiro se alguém morre de Covid”.

Resta portanto saber se as bizarrias, a política criminosa que coloca o lucro acima da vida e a incompetência de Trump conseguem escapar à dura realidade dos números da maior crise sanitária contemporânea. Enquanto o presidente continua a insistir que está a arredondar a curva e que a vacina virá breve (enquanto que se ganhasse Biden ela demoraria “cerca de quatro anos”), os EUA atingiram no fim de semana antes das eleições um recorde de cem mil casos num dia, conta-se um total de mais de nove milhões de infetados e 230.000 mortes no momento em que este artigo foi escrito. Mantém-se uma taxa de desemprego de 7,9%, muito alta para o que é habitual no país. E pode aumentar com a continuação da pandemia porque muitas empresas estão à beira de fechar.

Uma das perguntas destas eleições é, portanto se a dimensão da tragédia da covid-19 será suficiente para acabar com a farsa de Trump.

Sobre o/a autor(a)

Professor.
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