Nos últimos quatro anos, a esquerda americana renasceu. A crescente raiva contra a desigualdade gritante, o endividamento e a miséria geral no país encontrou uma expressão política nas duas campanhas presidenciais de Bernie Sanders.
Estas campanhas produziram a ascensão de um movimento socialista americano pela primeira vez em meio século através do DSA, Democratas Socialistas da América, junto com grupos semelhantes como Sunrise Movement, uma força maior na defesa de um Green New Deal, e o grupo eleitoral progressista Justice Democrats.
Antes da campanha presidencial de Sanders, ele era o único no congresso que se auto-identificava como socialista – havendo ainda uns poucos em gabinetes estaduais e locais. Agora, membros do DSA como Alexandria Ocasio-Cortez e Rashida Tlaib foram eleitas para a Câmara dos Representantes, enquanto há cerca de cem socialistas eleitos noutras legislaturas: seis socialistas no Conselho Autárquico de Chicago, Julia Salazar e Jabari Brisport no Senado de Nova Iorque, Lee Carter na legislatura estadual da Virgínia, junto com muitos outros.
Entretanto, o DSA tem trabalhado em coligação com um vasto grupo de organizações e numerosas campanhas de sindicatos, grupos de defesa do direito a uma habitação acessível, contra as alterações climáticas, pelos direitos dos imigrantes e todos os outros assuntos mais importantes da política americana atual.
Mas por muito que esse renascimento seja animador, ninguém se deve deixar empolgar em demasia. A esquerda percorreu um caminho longo desde 2016 mas foi um caminho longo a partir de quase nada. Como o historiador Matt Karp o coloca: “a esquerda, depois de Bernie, finalmente tornou-se suficientemente forte para saber quão fraca realmente é”.
Seja qual for o candidato que ganhe nas próximas eleições presidenciais, este renascimento da esquerda não irá desaparecer. Mas o resultado vai determinar o terreno onde se vai travar a luta.
O homem de ontem, hoje
Nesta altura, o resultado mais provável da corrida à presidência é a vitória de Joe Biden. Qualquer um vacila ao articulá-lo, dado que a vitória de Hillary Clinton era também considerada o resultado mais provável em 2016 – e todos sabemos como é que isso terminou. Contudo, com os americanos a terem visto Trump em ação durante os últimos quatro anos, culminando com o negacionismo da covid-18 que resultou em contrair a doença a semanas da eleição, todos os sinais apontam para que as maiorias não estejam a gostar do que veem.
Enquanto a presidência de Biden colocaria a esquerda num terreno muito mais favorável do que o existente sob Trump, isto não é porque Biden tenha qualquer simpatia de esquerda. Pelo contrário, ele foi uma figura chave em quase todos os passos da viragem do partido à direita no último meio século, desde a guerra do Iraque, ao regime de incarceração massiva, até desviar-se do mainstream do partido invertendo a posição sobre direito ao aborto.
No seu livro Yesterday’s Man: The Case Against Joe Biden, Branko Marcetic vai ao ponto de dizer: “o tipo de políticas liberais que ele e muitos no Partido Democrata implementares durante décadas criaram o conjunto ideal de circunstância para [Trump] chegar ao poder.”
Dito isto, organizar-se sob uma presidência de Biden seria mais favorável à esquerda por duas principais razões: uma, há poucas expetativas que ele avance com uma agenda política robusta de esquerda assim que esteja instalado na Casa Branca e toda a expectativa de que serão necessárias mobilizações populares sustentadas para exigir que ele satisfaça as nossas exigências urgentes – e essas lutas apenas poderão ser conduzidas pela esquerda.
Em segundo lugar, a eleição de Biden travaria a direita violenta e anti-democrática que cresceu, cada vez mais raivosa e desligada de realidade, com os apelos de Trump.
Para milhões de americanos, uma derrota de Trump constituiria um estímulo e um raio de esperança política no que tem sido um ano impiedosamente sombrio. E. ao contrário do que aconteceu com a eleição de Barack Obama em 2008, agora existe uma esquerda significativa nos EUA que não tem ilusões acerca das credenciais “progressistas” de Biden. Tomam-no literalmente quando ele diz que “nada iria fundamentalmente mudar” na América sob a sua presidência; veem corretamente Biden como um inimigo da transformação da política americana apoiado pelos bilionários e vão tratá-lo de acordo com essa visão.
Até os eleitores liberais que suspeitam ou estão desinteressados da ascensão do socialismo americano votaram em Biden nas primárias principalmente pela simples razão que ele não era Trump. Por isso, em vez de uma longa fase de lua de mel de deferência política para com o aparelho liberal, podemos esperar mobilizações de massa exigindo que Biden imediatamente rever as políticas reacionárias de Trump, resgate os trabalhadores e os serviços públicos, implemente um Green New Deal e aprove uma reforma da lei laboral que torne mais fácil criar sindicatos.
Claro, Biden tudo fará para defender o status quo baixando as expetativas políticas do povo. Em nome do regresso à “normalidade”, o aparelho democrata provavelmente empurrará fortemente para a “unidade nacional” e o consenso de regressar ao status quo antes de Trump.
Esta é uma razão pela qual Biden está à enfatizar o quanto discorda com Bernie Sanders, tal como enfatiza constantemente que não vai implementar o Medicare for All ou o Green New Deal. No início da campanha, bizarramente antagonizou os jovens que sofrem com salários estagnados, estão esmagados com a dívida estudantil, aumento do custo da habitação e, em geral, expectativa sombrias: “a geração mais nova agora diz-me como as coisas são. Poupem-me. Não, não tenho empatia para com ela.”
Declarações como esta são a razão pela qual o Comité Político Nacional do DSA, o seu órgão de liderança eleito, reafirmou a resolução aprovada na convenção nacional de 2019 (na qual eu fui um dos delegados eleitos) de não apoiar nenhum outro candidato para além de Sanders e reiterou em maio: “os Democratas Socialistas da América não vão endossar Biden.”
Apesar disto, muito militantes de esquerda a nível individual decidiram tapar o nariz e votar, ou mesmo fazer campanha, por Biden porque entendem que elegê-lo colocará a esquerda em muito melhor lugar para clarificar e aprofundar o fosso entre o aparelho democrata e os trabalhadores. Quando os Democratas estão no poder, é bem mais fácil mostrar a distância entre a sua retórica e as suas ações. Em vez de mais quatro anos dominados por um primordial desejo progressista de afastar Trump do executivo – um desejo compreensível, que acabou por ser um obstáculo significativo para as hipóteses de Bernie nas primárias de 2020 – a esquerda pode tornar claro que remover os republicanos do executivo está longe de ser suficiente para nos trazer a mudança de que os trabalhadores precisam.
Em segundo lugar, apesar das suas muitas falhas, Biden representa um alívio da política de direita anti-democrática e de tensão violenta na qual Trump apostou toda a sua presidência. Biden governará provavelmente como um cauteloso neoliberal, mas pelo menos não declarará abertamente as suas intenções de ignorar resultados eleitorais, amplificando os supremacistas brancos a partir do Twitter ou de um palco de debate das presidenciais ou louvando atiradores que dispararam contra manifestantes anti-racistas nas ruas. Uma política nacional mais enraizada na realidade do que os contornos lunáticos da mente altamente perturbada de Trump também provará ser um terreno bem melor para a esquerda operar.
Mas também há aí um perigo. Dado o enorme pico na atividade de extrema-direita e dos teóricos da conspiração, encorajados por Trump, assim como um discurso crescente na sociedade sobre o papel das redes sociais para o aumento da violência, podemos presumir que, como presidente, Biden envidará esforços para cercear esta atividade, especialmente online. Dito isto, considerando a sua disposição constante para flanquear a direita face à pressão conservadora em qualquer tema, uma repressão da atividade da extrema-direita dirigida por Biden poderia também atingir a esquerda.
Já vimos isto acontecer no passado. No final deste Verão, o Facebook fechou uma grande variedade de páginas de extrema-direita defensoras de teorias da conspiração como o QAnon e as milícias. Mas num esforço simplista para se mostrar imparcial, o Facebook também fechou várias páginas anti-fascistas como o projeto editorial anarquista CrimethInc. O Reddit comportou-se de forma semelhante, encerrando páginas pro-Trump que difundiam discurso de ódio e praticavam assédio, mas também baniu algumas páginas de esquerda como a associada ao popular podcast de esquerda Chapo Trap House.
Em toda a sua carreira, Biden tem permitido que os republicanos o assustassem de forma a adotar políticas mais reacionárias do que aquelas que eles próprios promoveram, tal como ele o fez em termas como o racismo, a política securitária, os cortes na segurança social e outras. Dado este historial, é expectável que Biden implemente uma abordagem oca sobre “ambos os lados”, atingindo tanto fascistas como anti-fascistas e a esquerda deve estar preparada para lhe resistir.
Apesar das claras limitações, uma presidência de Biden é melhor que a alternativa para o novo movimento socialista. A sua vitória é o resultado que a esquerda deve desejar.
Afastando-se ainda mais da realidade
Uma bênção para a esquerda sob a presidência de Trump tem sido o simples facto de que o fosso entre a sua retórica reacionária e a sua capacidade de se concentrar o tempo suficiente para transformar essa retórica em política tem sido imenso.
Trump é o primeiro presidente americano com a capacidade de concentração de um peixinho dourado. Fez estragos incríveis enquanto no cargo: o seu gigantesco corte fiscal para os mais ricos, a sua resposta criminosa ao coronavírus, a sua repugnante política e retórica anti-imigração, o seu negacionismo climática – cada um dos quais iriam piorar num segundo mandato. Mas tem sido amplamente incapaz ou desinteressado em fazer algo mais ambicioso como uma caça às bruxas comunista do século XXI ou o lançamento de uma nova guerra.
Contudo, o que ele fez foi distanciar o país cada vez mais das normas democráticas básicas e da própria realidade, movendo-se o terreno das políticas para os prazeres libidinais da interminável, absolutamente abrangente, guerra cultural – na qual a violência da direita contra os liberais e a esquerda é louvada e encorajada.
A lista dos assaltos de Trump à democracia é longa. Repetidamente recusou comprometer-se com uma transferência de poder pacífica caso perca a eleição. Semeou dúvidas acerca do voto por correspondência deforma a justificar o roubo da eleição, dizendo o mês passado, “temos de ser muito cuidadosos com os boletins de voto. Os boletins de voto, sabem, é um grande fraude.” Ele chegou ao ponto de encorajar os seus apoiantes a intimidar os eleitores nas cabines de voto, o que alguns fizeram mesmo e tweetou a encorajar os republicanos da Califórnia que estão aberta e descaradamente a roubar votos por correspondência.
A violência política tem aumentado constantemente nos EUA com Trump. Os exemplos são demasiado numerosos para os listarmos: o assassinato da manifestante anti-racista Heather Heyer por um extremista de direita numa contra-manifestação anti-racista em Charlottesville, Virginia, em 2017; o alegado assassinato de dois manifestantes pelo jovem de 17 anos Kyle Rittenhouse em Kenosha, Wisconsin, depois da polícia ter disparado contra um homem negro chamado Jacob Blake. E por cada assassinato ocorrido na América, há dezenas de incidentes de violência política não-letal nas ruas, quase toda levada a cabo pela direita.
Trump encorajou esta violência. Publica e repetidamente defendeu a bizarra e violenta teoria da conspiração QAnon. No caso de Rittenhouse, apoiou-o publicamente. Recusou consistentemente condenar a violência dos supremacistas brancos apesar de numerosas oportunidade para o fazer, incluindo a sua agora infame ordem para o grupo supremacista branco Proud Boys para “recuarem e ficarem alerta” no recente debate presidencial.
“Estes grupos não precisam de uma grande sinal para se sentirem encorajados a cometer violência”, afirmou Katherine Belew, uma historiadora dos grupos organizados de supremacistas brancos, pouco depois do debate. “Esta foi uma declaração estrondosa”.
Tudo isto é horroso por si só. Mas deve ser particularmente preocupante para a esquerda, uma vez que muita desta violência – e ameaça de violência – foi direcionada para si.
Apesar de Trump não ter lançado uma repressão governamental contra a esquerda durante o seu mandato, isso não é garantia de que não o faça se ganhar. Denúncias de “marxistas” e de socialismo foram um refrão constante da Convenção Nacional Republicana de agosto. A campanha de Trump apostou tudo na ameaça vermelha nos derradeiros meses da campanha, constantemente (e absurdamente) tentando ligar Joe Biden a esquerdistas como Bernie Sanders and AOC – e até lançando uma excursão de autocarro intitulada “combatentes contra o socialismo”.
Este tipo de retórica anti-socialista pode tornar-se em algo muito mais sinistro se Trump emergir como o vencedor.
A esquerda não vai a lugar nenhum
A esquerda americana cresceu consideravelmente sob a presidência Trump nos último quatro anos, mesmo sob condições hostis. Na maior parte, a esquerda sacudiu o constante discurso pomposamente vazio de Trump e dos seus apoiantes, trabalhando diligentemente para eleger representantes socialistas para cargos públicos e construir poder organizativo nos locais de trabalho e nas ruas.
Mas as ações de Trump e dos seus apoiantes são perigosas, particularmente se um segundo mandato conduzir a um redobrar da retórica e violência reacionária. A reeleição de Trump seria um golpe desmoralizador para qualquer pessoa interessada num mudança progressista. Biden, apesar dos seus muitos atalho, providenciará pelo menos um terreno no qual as pessoas que acreditam nas mobilizações populares têm uma hipótese de ganhar uma mudança efetiva. Nestas eleições presidenciais, isso é o melhor que podemos esperar.
Entretanto a principal tarefa para a esquerda será a que já está a ser cumprida: continuar a concorrer a cargos menos importantes, incorporar socialistas no movimento de trabalhadores e tornando-se líderes sindicais que se mantêm na fábrica, lutar por políticas como o Green New Deal e o Medicare for All e construir um movimento que possa ganhar o tipo de políticas substantivas de esquerda que nenhum dos partidos tem para oferecer.
Micah Uetricht faz parte da equipa editorial da revista Jacobin. É autor de livros como Strike for America: Chicago Teachers Against Austerity de 2014 e co-autor de Bigger than Bernie: How We Go From the Sanders Campaign to Democratic Socialism de 2020.
Texto publicado no Novara Media. Tradução de Carlos Carujo para o esquerda.net.