Joe Biden é um desastre que está à espera de acontecer

Assim que Biden anunciou a sua candidatura, Branko Marcetic descreveu o seu historial. Desde a sua oposição às medidas de transporte escolar que permitiram a integração racial, às políticas de encarceração de massa, às posições económicas neoliberais, entre outras que o aproximam dos republicanos.

01 de novembro 2020 - 18:17
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Joe Biden foto de Phil Roeder/Flickr.
Joe Biden foto de Phil Roeder/Flickr.

Este artigo foi publicado a 25 de abril de 2019, na sequência da apresentação de Joe Biden como candidato à nomeação democrática para a campanha presidencial. Algumas das suas considerações remetem, por isso, para essa disputa. O texto não deixa por isso de ser uma apresentação sintética da política de Biden. O autor publicou entretanto na mesma Jacobin uma série de trechos do seu livro Yesterday's Man: The Case Against Joe Biden que apresentam mais detalhadamente o percurso do candidato. Nota do tradutor.


Joe Biden é candidato à presidência. Depois de um manobrado período de meses em que ensaiou um vai-não vai, o ex-vice-presidente finalmente anunciou [em finais de abril do ano passado] a sua entrada oficial como favorito na corrida à nomeação democrata para 2020 depois de uma preparação difícil.

Apesar do reconhecimento e boa-vontade entre os democratas, ganhos durante oito leais anos ao lado de Obama, Biden – cujas últimas duas campanhas presidenciais uma se despenhou espetacularmente, outra desapareceu de forma bem pouco espetacular – vai encontrar desta feita condições ainda mais difíceis. As razões para isso são as razões pelas quais Biden é excecionalmente inadequado para ser um líder neste momento.

Se Biden é um ethos, é-o de um centrismo antiquado, anacrónico, nem sequer focado em encontrar um meio termo pragmático que a maior parte das pessoas possa apoiar mas em “unir-se ao outro lado da barricada”. Dito de outra forma, algures entre os democratas centristas e um Partido Republicano cada vez mais de extrema-direita, estaria o eleitor sensível, moderado, de centro-direita que ele acredita que povoa o país.

Nada resume melhor a política de Biden do que o discurso que ele proferiu em 2011 no Centro McConnell da Universidade Louisville’s Center, batizado com o nome de um líder da minoria republicana no Senado que tinha então acabado de indicar historicamente o caminho a Biden e à administração que ele servia e que tinha admitido candidamente que o seu objetivo principal era assegurar-se que Obama seria um “presidente de um só mandato” se não fizesse o que os republicanos queriam. McConnell tinha tornado uma supermaioria democrata de sessenta votos uma necessidade incontornável, abafando a agenda legislativa de Obama e até atrasando a recuperação económica para levar à “abada” sofrida pelos democratas em 2010. Utilizou então a alavanca deste resultado para conseguir um dos “acordos” legislativos mais desiguais de que há memória, trocando a duração do subsídio de desemprego pela continuação de cortes fiscais para os ricos, um imposto imobiliário bastante mais baixo e outras cedências que enfureceram os democratas.

Três meses antes, Biden calorosamente celebrava McConnel e o seu sucesso em ter esmagado os democratas num momento em que tinham um poder político historicamente raro. Pintava então a borla fiscal, que levou a uma revolta zangada dos democratas na Câmara dos Representantes e que até Obama comparou com uma negociação com raptores, como se fosse um exemplar de um compromisso bipartidário eficiente. E lembrou o público como era essencial a unidade daqueles que se candidatavam a governar fossem liberais ou conservadores, do Tea Party ou da coligação conservadora do partido democrata, os Blue Dog, “todos se candidatam porque amam o seu país” e “porque basicamente todos concordam sobre a natureza dos problemas que enfrentamos”. McConnell tinha esmagado a bancada de Biden e este oferecia-lhe uma cesta de prendas.

Mas os delírios de Biden sobre a instituição em que ele esteve em funções durante a maior parte da sua vida adulta é apenas uma parte da história. Biden é um Democrata da Terceira Via com uma aversão aparentemente congénita a tudo o que cheire a populismo, ou pelo menos à variedade de esquerda deste. Com uma carreira na política forjada principalmente na “longa era Reagan”, Biden construiu uma imagem baseada evitar e contrariar de viva voz os “interesses especiais liberais” – a palavra de código da altura para designar os ativistas dos direitos civis, os sindicatos, os grupos de mulheres e os pobres.

Como disse no National Journal em 2001, a Terceira Via Clintonista é tanto “onde o povo americano está” e “onde o Partido Democrata devia ter estado”. Recorrer à “luta de classes e ao populismo” apenas irá entregar o poder aos republicanos.

Claro que agora Biden se que se prepara para fazer campanha apoiado no legado de Obama, vai dizer que sempre foi o menino querido dos grupos liberais. “O julgamento tradicional sobre se se é ou não, entre aspas, um “liberal”, disse recentemente, era que posições se tinha sobre as questões raciais, das mulheres, da comunidade LGBT, sobre liberdades civis. Sabem, aposto no meu historial sobre estas coisas contra qualquer pessoas que se candidate, que se esteja a candidatar agora ou que se venha a candidatar.”

O problema para Biden é que o seu historial em todas estas questões e outras não é particularmente bom. Biden catapultou a sua carreira nos anos 1970 por se ter revoltado contra o programa de integração racial que transportava alunos em autocarros escolares para zonas de outras comunidades. Biden entrou em acordo com o outro lado da barricada através do seu amigo

Jesse Helms – um dos mais virulentos racistas da política moderna – lançando ataques verbais e legislativos implacáveis aos programas de transporte escolar que, se tivessem sido tomados literalmente, teriam feito recuar o poder governamental para implementar políticas anti-segregação mais amplas. E gabava-se que tinha tornado aceitável que outros liberais o fizessem também. Isto aliás era tudo aceitável porque, como Biden frequentemente alegava, tinha sido um ativista dos direitos civis. Mais tarde foi forçado a admitir que apenas tinha trabalhado num piscina só para negros durante o movimento pelos Direitos Civis.

O par de décadas que se seguiu a isto viu Biden virar a sua atenção para outro tema: travando “guerra” contra as drogas e o crime. Eliminação da liberdade condicional, confiscação de bens particulares, estabelecimento de penas mínimas obrigatória duras por posse de droga, implementação da disparidade nas sentenças por posse de crack e de cocaína em pó, introdução de dezenas de novas penas de morte e investimento com recursos sem precedentes na construção de novas prisões e em prender pessoas para as encher: Biden não foi um ator secundário em tudo isto e muito mais. Foi uma das forças motrizes, constantemente gabando-se do seu papel nestas políticas que devastaram as comunidades negras, políticas adotadas por questões abertamente eleitoralistas. “Gostava de ver a ala conservadora do Partido Democrata”, gracejou certa vez.

Não é coincidência que os dois temas nos quais Biden se encostou mais fortemente na primeira metade da sua carreira para demonstrar as suas credneciais centristas foram também os que tornaram a vida dos afro-americanas acentuadamente pior: a “moderação” política depois dos anos 1960 significava habitualmente o quão se estava disposto a desprezar a causa dos direitos civis. Assim, a relação próxima de Biden com outro dos mais conhecidos racistas do congresso – Strom Thurmond que mais tarde louvou calorosamente como um “homem corajoso” que “verdadeiramente queria ajudar” – também não é surpresa.

A repressão dos anos 1990 contra os imigrantes – o período no qual foi construído o aparelho de deportação em massa agora nas mãos de Trump – foi outra das causas de Biden. Foi um soldado leal desta cruzada, apoiando uma proibição especial de aceitar imigrantes se fosse HIV positivos; facilitando as regras para a deportação, mesmo de residentes legais com famílias; restringindo o acesso dos imigrantes à Segurança Social; até mesmo a certa altura sugerindo utilizar tropas para lidar com os migrantes sem papéis.

Um plano concebido mais tarde por Biden para reduzir as migrações da América Latina apenas aumentou a violência e a miséria de que estes migrantes já estavam a fugir nos seus países de origem, abrindo caminho para futuras crises de migratórias para as quais, enquanto vice-presidente, defenderia as mesmas soluções autodestrutivas.

Os anos 1990 também viram Biden fazer pontaria às liberdades civis, sendo autor de leis anti-terrorismo que, entre outras coisas, “eliminavam o decreto federal do habeas corpus” como um especialista em Direito depois veio a explicar. Foi esta legislação anterior que fez com que Biden se tivesse gabado a quem quisesse ouvir que tinha sido ele efetivamente o autor do Patriot Act da era Bush, que, do seu ponto de vista, não ia suficientemente longe. Introduziu nessa lei a possibilidade da militarização da aplicação da lei ao nível local e voltou a sugerir colocar militares no terreno dentro das fronteiras dos EUA, antes de se transformar num defensor das liberdades civil na última parte da presidência de Bush, quando os ventos políticos tinham mudado.

Biden também passou os anos 1990 a votar uma variedade políticas neoliberais: o NAFTA, uma das mais devastadoras derrotas políticas dos sindicatos na memória recente e para o qual o voto de Biden foi crucial, tendo mudado o sentido de voto para este passa; a emenda do orçamento equilibrado na Constituição, que antes tinha desacreditado dizendo que “fazia da política económica de Herbert Hoover uma obrigação constitucional”, uma afirmação que fica muito aquém da realidade; a terrível reforma das pensões de Clinton; a revogação da proibição Glass-Steagall da era do New Deal-era dos bancos se envolveram em negócios de títulos de risco. E fez tudo isto enquanto se lamentava interminavelmente sobre os excessivos gastos governamentais.

Não muito depois da mudança de século, Biden entusiasticamente votou a favor de outro grande desastre da política externa: a guerra no Iraque (“votei a favor de irmos para o Iraque e votaria outra vez”). Foi o ato mais grave de um padrão para Biden, que tinha apoiado a guerra de Margaret Thatcher nas Falklands e que foi uma das figuras-chave que pressionou para que NATO empreende-se a sua expansão para leste nos anos 1990, uma provocação escusada à Rússia que o famoso diplomata da era da Guerra Fria George Kennan, falando mais de um ano antes de Vladimir Putin assumir o poder, premonitoriamente denunciava como “o começo de uma nova guera fria”. A estratégia de Biden para o Afeganistão é indistinguível da que Trump está a implementar e a sua abordagem de “reforço do contra-terrorismo” – o uso de ataques com drones e de forças especiais em qualquer parte do mundo – tornou-se a política anti-terrorista de Obama, uma política que causou morte e carnificina numa longa série de países e alimentou a ameaça que era suposto extinguir.

Claro, Biden não é apenas pró-Israel – é um dos políticos mais defensores de Israel da sua geração. Através de palestras pagas e de doações de campanha, Israel tem sido amiga de Biden em toda a sua campanha e Biden tem correspondido, desde pressionar para mais ajuda dos EUA a votar a mudança da embaixada para Jerusalém – outra política extremista que Trump copiou de Biden e dos seus amigos – e até censurando a administração Bush pelas suas críticas ao programa de assassinatos de Israel. Mas ser “o maior amigo de Israel” na administração Obama não lhe valeu de muito com Benjamin Netanyahu, que se rebelou abertamente contra os EUA sob Obama, anunciando de forma humilhante novos colonatos a meio de uma visita oficial de Biden.

Finalmente, a propensão da família Biden para se envolver em empreendimentos monetários que – caramba, de alguma forma parecem sobrepor-se constantemente à carreira política de Biden – tornam-no num contraste perfeito para Trump. Seja o caso do filho de Biden, Hunter, ser contratado como lobista de uma empresa de cartões de crédito do Delaware ao mesmo tempo que Biden estava a votar legislação favorável a esta; o seu irmão misteriosamente ser contratado por uma empresa de construção de média dimensão pouco tempo depois de ter recebido um contrato governamental de 1,5 mil milhões de dólares; ou Hunter, outra vez, se ter juntado à direção de uma empresa de gás ucraniana manchada por corrupção enquanto Biden era o ponta de lança da política dos EUA na Ucrânia. Este último caso podendo ser uma bomba relógio, com os responsáveis ucranianos recentemente a revelar ao Hill que Biden se apoiou no governo para despedir o principal procurador que ia investigar a empresa, incluindo uma entrevista com o filho de Biden.

O mais assombroso é que Biden não mudou. Enquanto outros candidatos com historiais igualmente perturbadores percebem pelo menos utilizar as ideias progressistas fazendo delas palavra fiada, não há nenhuma indicação que Biden se tenha movido um milímetro sequer no seu pensamento. Não pensa que “cinco centenas de bilionários sejam a razão pela qual estamos com problemas” e não tem “empatia” pelo mais jovens. Ainda apoia o tratado Trans-Pacífico. Ainda pensa que a melhor maneira de parar as migrações é agravar as condições que a ela levam. Ainda quer cortar o programa de saúde Medicare e a Segurança Social.

Resumindo, uma nomeação de Joe Biden seria um desastre, alienando alguns eleitores que abandonara Hillary Clinton em 2016 ao concorrer com um programa similarmente sem brilho. A única que poderia ser mais danosa seria uma presidência de Joe Biden na qual, se levarmos a sério as suas próprias palavras, assistiríamos ao ex-vice-presidente a colaborar com um Partido Republicano cada vez mais extremista, num esforço para alcançar alguns dos objetivos que a direita mais acalenta há muito tempo, incluindo cortar com os últimos vestígios do New Deal. Ainda mais assustadora é a probabilidade que uma presidência assim tão dececionante possa abrir caminho para uma extrema-direita populista ainda mais virulenta – e competente – do que Trump.

A boa notícia é que a nomeação de Biden está longe de ser inevitável e a sua escolha de concorrer como continuação do legado de Obama pode dar à esquerda num sentido alargado uma oportunidade para rediscutir os atalhos dessa administração sem ir contra o sobrenaturalmente popular ex-presidente em si. Entretanto, se alguém que conhecem não estiver familiarizado com o historial de Biden em temas como a segregação racial e a questão dos transportes escolares, a encarceração massiva, a política económica neo-liberal, a guerra e as liberdade civis, o aborto ou a imigração aqui está uma maneira fácil de o apresentar.


Artigo publicado na revista Jacobin. Traduzido por Carlos Carujo para o esquerda.net.

Branko Marcetic escreve na Jacobin. É autor do livro Yesterday's Man: The Case Against Joe Biden do qual resultaram um conjunto de artigos sobre a vida do candidato que se podem ler nesta revista online.

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