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Os desconsolados da fuga de Cabul

Os liberais podem mostrar-se tristes por terem dado para um peditório que afinal era um embuste. É lamentável que nem sequer o admitam. Podem mesmo reprovar a "traição" de Biden e jurar que fazem todas as guerras pela democracia mas o embaraço é muito. Artigo de Luís Fazenda.
João Gomes Cravinho, Augusto Santos Silva e Marcelo Rebelo de Sousa. Foto André Kosters/Lusa

A retirada da NATO do Afeganistão, negociada com os talibã em fevereiro de 2020 por Donald Trump, depois de anos de tentativas, e consumada por Joe Biden, surgiu como uma surpresa terrífica nos media mas estava à vista de todos, incluindo os militares portugueses, saídos de vez em maio. Todos sabiam, não há motivo para o espanto. Só então acordaram, despertaram mesmo em grande alvoroço, todos aqueles que tinham apoiado a invasão do antigo santuário do criminoso Bin Laden. Com o desconforto horrífico de quem ainda estava a aplaudir Biden por “regressar ao concerto" dos aliados europeus, ao contrário do antecessor, e, logo de seguida, veem Biden impotente e até patético, como diz a CNN, a conferir o caos de Cabul, lembrando a fuga e abandono de Saigão.
 
Emergiu a vitória dos talibã sem a mais leve resistência de um exército afegão de 170 mil militares, municiado pelos Estados Unidos da América (EUA). Este facto ficará para a história dos manuais militares. Biden justificou a retirada por se ter concluído a punição dos terroristas do 11 de setembro, ali realizada, e informou literalmente urbi et orbi que nunca tinha sido objetivo dos EUA construir aí uma nação ou democracia,o que constitui uma mentira a não esquecer. Nem sequer disse, nesse momento, o que quer que fosse sobre as escravizadas mulheres afegãs, irmãs de Malala que empenhou o Nobel da Paz à educação das meninas.
 
Cá por terras lusas, não faltaram opiniões defendendo o ato e a operação americana de retirada e até lembrando que os países europeus que também estiveram a ocupar o Afeganistão, por vinte anos, não quiseram suceder aos EUA na responsabilidade de liderar as forças estacionadas num país hostil. Mas o desespero opinativo veio de muitos que, há duas décadas, tinham responsabilidades políticas ou eram líderes de opinião. Vieram à liça para reafirmar a justeza da invasão e até ameaçar com futuras ocupações do território.

Dizem tais "falcões" que aos Estados Unidos da América assistia um direito de retaliação e que as guerras humanitárias continuam a ser precisas. Veja-se, então, mais de perto esse argumentário.
 
A defesa legítima de um país face à agressão de terceiros é razão bastante para o emprego da violência. Essa é a premissa da guerra justa. E é compreensível até que haja formas de perseguição judiciária internacional dos fautores de atentados, como o do 11 de setembro. Podem, inclusivamente, justificar-se medidas defensivas de tipo militar ou formas de pressão internacional. Contudo, a invasão de outro país, mesmo que lá se tivessem refugiado os responsáveis da organização terrorista, não é uma resposta a uma agressão no seu espaço vital mas simplesmente outra agressão. Posteriormente, os Estados Unidos da América invadiram o Iraque, provocando muitos milhares de mortos e vagas de refugiados, com o pretexto inexistente de realizar uma guerra preventiva devido à existência de armas de destruição maciça, o que era falso, como se sabe. Será que essa agressão deu ao Iraque um direito de retaliação e invasão dos EUA se tivessem dimensão militar para tal? Mas essa era a propaganda do Daesh! Será que o argumento é civilizado nos pró-imperialistas e o mesmo argumento passa a ser bárbaro quando utilizado pelos fundamentalistas sunitas? Esse conceito de retaliação é estranho à Carta das Nações Unidas que constitui a base mais importante do direito internacional.
 
A vingança (ou a expedição punitiva como singularmente é descrita) provou que era apenas um ataque preparatório e uma invocação de ordem propagandística para uma sequência de guerras no Médio Oriente visando limitar o "terrorismo" e controlar o petróleo sob tutela da NATO. Apenas a multiplicação de atoleiros da Líbia ao Afeganistão preveniu o assalto ao Irão porque três presidentes americanos não se atreveram a tal, nem sequer Trump que demoliu o acordo nuclear negociado por Obama com os aiatolas persas. E, no entanto, esses desastres militares, mesmo onde os EUA só querem atuar com força aérea, provocaram a multiplicação de milícias terroristas. Estas encontraram campos de recrutamento inesgotáveis para proceder a novas vinganças em nome de Deus, apesar da eliminação do califado do Daesh.
 
Por outro lado, a defesa de guerras pretensamente humanitárias para impor uma determinada ordem, mesmo que dita  progressiva, tem-se revelado um fiasco porque a evolução dos Direitos Humanos faz parte de um processo social e político dos seus habitantes e não de uma agência externa alheia às suas práticas, crenças, critérios e lideranças. Devemos ajudar aqueles que lutam pelos Direitos Humanos nos seus respetivos países a ganhar eles próprios essas batalhas,com toda a solidariedade ativa. Situação diferente viviam os vários grupos étnicos e tribos afegãos. Em 20 anos de ocupação do Afeganistão, os direitos civis foram parcialmente protegidos apenas na capital, mas não houve tempo para a escolarização geral das raparigas. Porquê? Porque é que a fome campeia? Em 20 anos não se montou um serviço de saúde generalizado. Porquê? Porque é que a corrupção e o tráfico de estupefacientes minaram o poder? Porque é que os simulacros de eleições ficaram desertos de eleitores? Os pés de barro do colossal invasor eram a medida dos Direitos Humanos. "Falhámos o objetivo de formar instituições", diz o ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva. E, no entanto, jorraram biliões de dólares para os supostos Direitos Humanos e tanta gente morreu e muito mais gente fez o êxodo dos indesejados na Europa e em outras partes da Ásia. Os aliados "democráticos" dos Estados Unidos da América como a Turquia e a Arábia Saudita também agridem dentro e fora do seu espaço e não se descortina nenhum humanitário que queira beliscar o "sultão" de Ancara ou os príncipes de Riad. Os sauditas foram mesmo os instigadores originários da Al Qaeda.
 
Os liberais podem mostrar-se tristes por terem dado para um peditório que afinal era um embuste. É lamentável que nem sequer o admitam. Podem mesmo reprovar a "traição" de Biden e jurar que fazem todas as guerras pela democracia mas o embaraço é muito. Basta ouvir as dolorosas palavras do Comandante Supremo das Forças Armadas, Marcelo Rebelo de Sousa, "saímos de cabeça erguida". A quem pretende convencer?

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Neste dossier:

Afeganistão, 20 anos após o 11 de Setembro

A retirada das tropas ocupantes coincide com o aniversário das duas décadas do atentado que lhe serviu de pretexto. Neste dossier, olhamos para a situação do país que assiste ao regresso dos talibãs e para o que mudou ou ficou na mesma durante 20 anos de mais uma guerra fracassada dos EUA. Dossier organizado por Luís Branco.

 

Treino na Academia Militar de West Point

EUA gastaram 21 biliões de dólares na militarização desde o 11 de Setembro

Segundo os autores do recém-lançado relatório do Institute for Policy Studies, com uma parte do dinheiro gasto na guerra ao terror, os Estados Unidos podiam ter descarbonizado completamente a sua rede elétrica, eliminado a dívida estudantil, prolongado o Crédito Fiscal Infantil da era covid por dez anos, garantido o pré-escolar gratuito, financiado as vacinas covid em todo o mundo - e ainda sobrava dinheiro para gastar. Artigo de Luke Savage.

Os desconsolados da fuga de Cabul

Os liberais podem mostrar-se tristes por terem dado para um peditório que afinal era um embuste. É lamentável que nem sequer o admitam. Podem mesmo reprovar a "traição" de Biden e jurar que fazem todas as guerras pela democracia mas o embaraço é muito.  Artigo de Luís Fazenda.

Vendedor ambulante expõe bandeiras e posters dos líderes talibãs junto a um mural de uma menina na escola.

O Afeganistão visto pelas mulheres da RAWA

A Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA) é uma organização política feminista fundada em 1977 com sede em Quetta, no Paquistão. Nesta entrevista ao Osservatorio Afghanistan, Maryam faz um balanço de 20 anos de ocupação ocidental e apresenta as perspetivas sobre como continuar a luta na nova fase que agora se abre.

Um mural no Afeganistão protesta contra o assassinato de Fakunda Malikzada: 'O assassinato de Fakhunda é uma mancha em todos os homens afegãos'.

Mulheres afegãs correm perigo, mas sempre viveram sob ameaça

A vida das mulheres afegãs corre agora perigo por causa dos talibãs. Mas elas sempre enfrentaram a violência masculina, como relata a investigadora Jenevieve Mannell, que no Afeganistão ouviu muitos testemunhos de mulheres vítimas de violência nos últimos anos.

Prisioneiro de Guantanamo e bandeira dos EUA

Ataques aos direitos civis do pós-11 de Setembro ainda permanecem

Dias antes dos atentados às Torres Gémeas, Anthony Romero tomava posse da histórica associação de defesa dos direitos civis ACLU. Passados 20 anos, diz que ainda há muito por desfazer nas decisões políticas tomadas na sequência do 11 de Setembro.

Forças talibãs tomam conta do aeroporto internacional em Cabul, após a retirada dos norte-americanos.

Os talibãs afegãos: Bilhete de identidade

No momento em que o Emirado Islâmico do Afeganistão é restabelecido, muitas questões permanecem sobre esta organização, a sua hierarquia, os seus recursos e os seus objetivos. Artigo de Dorothée Vandamme.

Amy Goodman e Haroun Rahimi

O que é o Estado Islâmico Khorasan?

Em entrevista ao programa Democracy Now, de Amy Goodman, o professor Haroun Rahimi explica as origens do grupo responsável pelos atentados ao aeroporto de Cabul e como os EUA e os talibãs têm colaborado para os atacar.

Soldado norte-americano em Rajankala, província de Kandahar, Afeganistão.

Quem está enterrado no cemitério dos impérios?

O destino do governo afegão foi apenas o mais recente da longa lista de casos de colapso de entidades fantoche criadas pelo ocupante estrangeiro quando a ocupação chega ao fim. Artigo de Gilbert Achcar.

 

Bruno Neto

“Não podemos levar a um país os direitos humanos com bombas”

Bruno Neto é coordenador de uma missão humanitária que garante o acesso à saúde a comunidades de várias províncias no Afeganistão. Nesta entrevista, fala da incerteza que se vive no terreno e do vazio de alternativas que a intervenção militar externa deixou no país.

Combatente talibã ergue a sua bandeira num veículo em Kandahar. Foto de STRINGER/EPA/Lusa.

Afeganistão: a ocupação dos EUA apenas tirou vidas, a vitória talibã não é sinal de paz

O que os EUA gastaram no Afeganistão nos últimos vinte anos não tem precedentes na história mundial, um investimento que fica nas mãos dos talibãs. A vitória destes são más notícias para os progressistas de todo o mundo. A crítica dos agentes americanos não é motivo para os apoiar. Por Farooq Tariq.

Tariq Ali

Tariq Ali: Debacle no Afeganistão

Todos aqueles que querem continuar a lutar devem mudar o seu foco para os refugiados que em breve estarão a bater à porta da NATO. No mínimo, refúgio é o que o Ocidente lhes deve. Artigo de Tariq Ali.