A retirada da NATO do Afeganistão, negociada com os talibã em fevereiro de 2020 por Donald Trump, depois de anos de tentativas, e consumada por Joe Biden, surgiu como uma surpresa terrífica nos media mas estava à vista de todos, incluindo os militares portugueses, saídos de vez em maio. Todos sabiam, não há motivo para o espanto. Só então acordaram, despertaram mesmo em grande alvoroço, todos aqueles que tinham apoiado a invasão do antigo santuário do criminoso Bin Laden. Com o desconforto horrífico de quem ainda estava a aplaudir Biden por “regressar ao concerto" dos aliados europeus, ao contrário do antecessor, e, logo de seguida, veem Biden impotente e até patético, como diz a CNN, a conferir o caos de Cabul, lembrando a fuga e abandono de Saigão.
Emergiu a vitória dos talibã sem a mais leve resistência de um exército afegão de 170 mil militares, municiado pelos Estados Unidos da América (EUA). Este facto ficará para a história dos manuais militares. Biden justificou a retirada por se ter concluído a punição dos terroristas do 11 de setembro, ali realizada, e informou literalmente urbi et orbi que nunca tinha sido objetivo dos EUA construir aí uma nação ou democracia,o que constitui uma mentira a não esquecer. Nem sequer disse, nesse momento, o que quer que fosse sobre as escravizadas mulheres afegãs, irmãs de Malala que empenhou o Nobel da Paz à educação das meninas.
Cá por terras lusas, não faltaram opiniões defendendo o ato e a operação americana de retirada e até lembrando que os países europeus que também estiveram a ocupar o Afeganistão, por vinte anos, não quiseram suceder aos EUA na responsabilidade de liderar as forças estacionadas num país hostil. Mas o desespero opinativo veio de muitos que, há duas décadas, tinham responsabilidades políticas ou eram líderes de opinião. Vieram à liça para reafirmar a justeza da invasão e até ameaçar com futuras ocupações do território.
Dizem tais "falcões" que aos Estados Unidos da América assistia um direito de retaliação e que as guerras humanitárias continuam a ser precisas. Veja-se, então, mais de perto esse argumentário.
A defesa legítima de um país face à agressão de terceiros é razão bastante para o emprego da violência. Essa é a premissa da guerra justa. E é compreensível até que haja formas de perseguição judiciária internacional dos fautores de atentados, como o do 11 de setembro. Podem, inclusivamente, justificar-se medidas defensivas de tipo militar ou formas de pressão internacional. Contudo, a invasão de outro país, mesmo que lá se tivessem refugiado os responsáveis da organização terrorista, não é uma resposta a uma agressão no seu espaço vital mas simplesmente outra agressão. Posteriormente, os Estados Unidos da América invadiram o Iraque, provocando muitos milhares de mortos e vagas de refugiados, com o pretexto inexistente de realizar uma guerra preventiva devido à existência de armas de destruição maciça, o que era falso, como se sabe. Será que essa agressão deu ao Iraque um direito de retaliação e invasão dos EUA se tivessem dimensão militar para tal? Mas essa era a propaganda do Daesh! Será que o argumento é civilizado nos pró-imperialistas e o mesmo argumento passa a ser bárbaro quando utilizado pelos fundamentalistas sunitas? Esse conceito de retaliação é estranho à Carta das Nações Unidas que constitui a base mais importante do direito internacional.
A vingança (ou a expedição punitiva como singularmente é descrita) provou que era apenas um ataque preparatório e uma invocação de ordem propagandística para uma sequência de guerras no Médio Oriente visando limitar o "terrorismo" e controlar o petróleo sob tutela da NATO. Apenas a multiplicação de atoleiros da Líbia ao Afeganistão preveniu o assalto ao Irão porque três presidentes americanos não se atreveram a tal, nem sequer Trump que demoliu o acordo nuclear negociado por Obama com os aiatolas persas. E, no entanto, esses desastres militares, mesmo onde os EUA só querem atuar com força aérea, provocaram a multiplicação de milícias terroristas. Estas encontraram campos de recrutamento inesgotáveis para proceder a novas vinganças em nome de Deus, apesar da eliminação do califado do Daesh.
Por outro lado, a defesa de guerras pretensamente humanitárias para impor uma determinada ordem, mesmo que dita progressiva, tem-se revelado um fiasco porque a evolução dos Direitos Humanos faz parte de um processo social e político dos seus habitantes e não de uma agência externa alheia às suas práticas, crenças, critérios e lideranças. Devemos ajudar aqueles que lutam pelos Direitos Humanos nos seus respetivos países a ganhar eles próprios essas batalhas,com toda a solidariedade ativa. Situação diferente viviam os vários grupos étnicos e tribos afegãos. Em 20 anos de ocupação do Afeganistão, os direitos civis foram parcialmente protegidos apenas na capital, mas não houve tempo para a escolarização geral das raparigas. Porquê? Porque é que a fome campeia? Em 20 anos não se montou um serviço de saúde generalizado. Porquê? Porque é que a corrupção e o tráfico de estupefacientes minaram o poder? Porque é que os simulacros de eleições ficaram desertos de eleitores? Os pés de barro do colossal invasor eram a medida dos Direitos Humanos. "Falhámos o objetivo de formar instituições", diz o ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva. E, no entanto, jorraram biliões de dólares para os supostos Direitos Humanos e tanta gente morreu e muito mais gente fez o êxodo dos indesejados na Europa e em outras partes da Ásia. Os aliados "democráticos" dos Estados Unidos da América como a Turquia e a Arábia Saudita também agridem dentro e fora do seu espaço e não se descortina nenhum humanitário que queira beliscar o "sultão" de Ancara ou os príncipes de Riad. Os sauditas foram mesmo os instigadores originários da Al Qaeda.
Os liberais podem mostrar-se tristes por terem dado para um peditório que afinal era um embuste. É lamentável que nem sequer o admitam. Podem mesmo reprovar a "traição" de Biden e jurar que fazem todas as guerras pela democracia mas o embaraço é muito. Basta ouvir as dolorosas palavras do Comandante Supremo das Forças Armadas, Marcelo Rebelo de Sousa, "saímos de cabeça erguida". A quem pretende convencer?