Está aqui

Zeca Afonso: Ode à alegria

No caso do Zeca Afonso nunca resultaram os guetos de silêncio a que tentaram condená-lo, desde antes de Abril, quando a censura cortava o seu nome, impondo-lhe a morte do silêncio, tão pouco com os silêncios de matriz "democrático" por via da incomodidade do seu canto insurrecto. Por Fernando Paulouro Neves.

"Escutai por aí os ecos do meu canto”

Walt Whitman


 

Subitamente, uma voz no silêncio. O Zeca. Tem-se falado nele agora, por estes dias de Fevereiro, em que lembra que a morte o levou tão cedo que gravou no coração da gente uma imensa saudade. A verdade é que para mim e para muitos, tantos, o Zeca continua vivo e eu continuo a vê-lo com aquele ar distraído e de sorriso aberto ao futuro criando a infindável "irmandade" à volta da sua música e das suas canções, por esse país fora, que era esse o seu maior prazer:ir em busca de uma nova humanidade. Nem palcos, nem o universo social da canção, tão precário e vazio. Antes, e sempre, o povo que ele gostava de acordar com a sua arte poética -- porque falando em José Afonso é preciso falar em poesia -- nas colectividades populares, em convívios de inquietação colectiva, às vezes em cima do atrelado de um tractor ou em largos que ainda eram o centro do mundo, como o Manuel da Fonseca gostava de dizer. Poesia e música, música e poesia, foi essa a sua biografia essencial traduzida na fala arterial de um canto que era, ao mesmo tempo, o respirar da esperança, insubmisso e rebelde, como recomendava Gabriel Celaya ("a poesia é uma arma"), mas também o coração terno e solidário, versos e palavras contra os poderes e os poderosos, contra os "mandadores sem lei" ou os "eunucos" que fabricavam desumanidades e tolhiam de medo um país.

E, no entanto, o Zeca sabia combinar, como nenhum outro trovador, essa mensagem de urgência social, esse grito e essa ousadia do protesto contra a injustiça entronizada, com o veio lírico que a pureza do seu cantar transformava na luz de todas as Primaveras, nas manhãs claras de Maio, como se o tempo não tivesse outro destino senão o de uma renovação libertadora, carregada de comum humanidade.

É por isso que, ouvindo-o, com aquela voz tão densa de emoção funda, acontece sempre o mesmo milagre de irmos ao encontro de uma enorme paz interior. Então, uma alegria terna brota da música dos seus versos, com aquele timbre tão límpido, ora afectuoso ou dramático, às vezes quase épico, como só acontece quando é o coração que canta. Não admira que o país se apropriasse de uma canção sua para a transformar em bandeira e hino do 25 de Abril.

No caso do Zeca Afonso nunca resultaram os guetos de silêncio a que tentaram condená-lo, desde antes de Abril, quando a censura cortava o seu nome, impondo-lhe a morte do silêncio, tão pouco com os silêncios de matriz "democrático" por via da incomodidade do seu canto insurrecto. Com ele, nada disso resultou. Porque as suas canções há muito constituíam património colectivo identificador da liberdade.

Que me lembre, nenhuma outra obra, no mundo da canção, influenciou tanto geracionalmente, como a sua, num processo de rejuvenescimento que permanece vivo, mesmo quando se refaz em experiências múltiplas do ponto de vista criador. Por isso, houve aquele jovem que, já o Zeca Afonso estava muito doente, pediu ao Fanhais mais ou menos isto: se és amigo do Zeca, diz-lhe que a sua música não vai morrer porque a malta nova está com ele!

Todo o tempo é bom para ouvir o Zeca, mas penso sempre em Maio, decerto pelas cantigas que lhe dedicou, como o seu tempo primordial. Mas ouvi-lo ou vendo os mais jovens reinventando o seu universo criador é sempre uma festa feita de poesia e de música que acontece. Regresso às suas canções para respirar melhor e olhar a luz. E vejo sempre o Zeca avisando a malta: “Vejam bem/Que não há/Só gaivotas/Em terra/Quando um homem/Se põe/A pensar”.


*Fernando Paulouro Neves (Fundão, 1947) - Jornalista e escritor.

Testemunho enviado ao Esquerda.net a 19 de fevereiro de 2017.


 

(...)

Neste dossier:

Zeca Afonso: Sem muros nem ameias

Um homem comprometido com a luta pela Liberdade. Um homem bom e humilde, solidário, com um enorme sentido de humor. Um criador nato, um génio. É assim que o descrevem músicos, ex-alunos, jornalistas... os Amigos do Zeca Afonso com quem o Esquerda.net falou. Dossier organizado por Mariana Carneiro.

Zeca Afonso: A incessante tentativa de transformar o mundo

As letras das músicas de Zeca Afonso, os seus poemas, as declarações prestadas nas inúmeras entrevistas que concedeu ao longo da sua vida, todos os seus testemunhos, não só nos dão a conhecer um pouco mais o seu percurso, a sua forma de estar na vida, a sua incessante tentativa de transformar o mundo, como também retratam a intemporalidade do seu contributo.

José Afonso: O Homem, o Professor, o Companheiro, o Amigo

No dia da sua partida, ia apanhar o comboio, de regresso, mas, quando chegou à estação, tinha uma quantidade de gente – população e alunos – a querer despedir-se do professor e do homem. Por Francisco Naia.

Com o Zeca Afonso aprendi a estar no palco e na música de modo diferente

O palco como espaço de partilha, não só entre músicos mas com o público; máximo rigor na prestação musical, inovação constante rejeitando «importações» alienantes preservando a nossa identidade, sempre valorizando a palavra. Por Janita Salomé.

Zeca Afonso em vídeo

Neste artigo, poderá aceder, entre outros, ao vídeo do concerto do Zeca Afonso no coliseu, em Lisboa, em 1983, a entrevistas concedidas pelo próprio à RTP e a uma televisão espanhola, assim como a um testemunho de Mário Viegas sobre o Zeca e a alguns tributos que lhe foram prestados após a sua morte.

Zeca Afonso, a força das palavras

O Esquerda.net relembra o grande artista e ativista e reproduz uma entrevista na qual Zeca fala sobre a necessidade de os jovens se oporem a um modelo de sociedade que é “teleguiado de longe por qualquer FMI, por qualquer deus banqueiro”.

“Quando eu cantava o fado na rua não nos livrávamos da polícia”

O esquerda.net republica a entrevista de Maria Eduarda a Zeca Afonso publicada na edição nº145 de 9 de dezembro de 1981 do jornal “em marcha”.

Zeca Afonso era de uma grande coragem física e intelectual

Questionado pelo Esquerda.net sobre qual é a grande herança do Zeca Afonso, Carlos Guerreiro responde: “Era um gajo muito bom. Era farol mas também era regaço, era riso mas também era profundidade intelectual. Era o Zeca, pá! Era um homem bom e humilde”.

O que aprendi de mais importante com o Zeca tem a ver com uma postura em relação ao mundo

No testemunho recolhido pelo Esquerda.net, o cantor Manuel Freire recorda a primeira vez que cantou com o Zeca e lembra o amigo como “um fulano normal que era um grande intérprete e um grande criador”.

Zeca Afonso foi estruturalmente um homem de cultura

Em conversa com o Esquerda.net, o arquiteto José Veloso fala sobre o seu convívio com Zeca Afonso aquando da participação de ambos no documentário do realizador de cinema Cunha Telles “Os Índios da Meia Praia”.

Zeca Afonso: Grande admiração pela juventude

Júlio Pereira recorda o seu melhor amigo, e como era fundamental para a sua criatividade estar rodeado de jovens e de coisas novas. O músico assinala ainda a forma como Zeca Afonso sente de uma maneira catastrófica a falência do 25 de Abril.

O Zeca era um inovador nato

Em conversa com o Esquerda.net, Sérgio Godinho afirma que a importância de Zeca Afonso "passa também por ele ser tão inovador, tão inventivo na maneira como compunha e tão surpreendente”. O músico deixa um conselho: “Ouçam o Zeca, vale a pena!”

Que viva o Zeca

De tanto se falar em José Afonso, o artista, por vezes corremos o risco de esquecer o Zeca, o ser inteiro. Por Viriato Teles.

Zeca Afonso: Um homem comprometido que fez da sua arte uma luta

Em entrevista ao Esquerda.net, Rui Pato fala sobre o seu companheiro de música e de estrada: “é um símbolo da liberdade e da luta pela liberdade. Sobre o ponto de vista musical, ele é que atirou a pedrada ao charco. Há música portuguesa antes do Zeca Afonso e depois do Zeca Afonso”.

Zeca Afonso: Instantes de vida

Com o Zeca, companheiro-intérprete de uma geração, aprendíamos as canções pilares de resistência, de esperança. Nas palavras certas para dizer revoltas e sonhos cabiam revolucionários, pacifistas… e todos os homens de boa vontade. Por Maria Antonieta Garcia.

Zeca Afonso: Um grande amigo e um homem extraordinário

Luís Cília refere a grande amizade que o une a Zeca Afonso. A enorme qualidade do seu trabalho “deixa grandes marcas na cultura portuguesa”, assinala o compositor e intérprete no testemunho que deu ao Esquerda.net.

Ação ou Acção ou há são

Sempre gostei de agir atuar e falar tal cumo Zeca escrevia cantava tocava atuava agia na clandestinidade depois no sucesso daí nossa amizade simples”. Por José Duarte.

Encontrei no Zeca Afonso um dos melhores seres humanos que alguma vez conheci

Num testemunho enviado ao Esquerda.net, Jorge Palma afirma que “quanto ao seu trabalho enquanto criador, a sua voz clara e sincera, o seu constante combate pela Liberdade, só temos de lhe ficar eternamente gratos e seguir o seu exemplo”.

Vejo sobretudo o Zeca como um músico e um poeta extraordinário

Em declarações ao Esquerda.net, Joaquim Vieira sinalizou que, enquanto músico, Zeca Afonso “reunia três qualidades: a poesia, a música e a voz”. “Nessa medida foi insuperável, ninguém chegou ao nível dele”, destaca o jornalista.

Zeca Afonso: As suas aulas eram absolutamente revolucionárias

Hélida Carvalho foi aluna de Zeca Afonso no Liceu Nacional de Setúbal durante cerca de dois meses, até o seu professor de Organização Política ser preso pela PIDE. Ao Esquerda.net descreve o primeiro contacto com a “ave rara”.

O Zeca passou a vida a dar-me conselhos

O encenador e diretor artístico Hélder Costa conheceu Zeca Afonso em Coimbra, na República do Prá-Kis-Tão. Já o último encontro teve lugar em Azeitão: foi “num dia absolutamente tétrico”, aquando da eleição de Cavaco Silva com maioria absoluta.

José Afonso, um cantor de valores

A maior herança que nos deixa é a sua obra, em musicalidade e conteúdo, que se revaloriza e se renova dia a dia pelos diferentes grupos e cantoras/es que continuam a beber da sua fonte, que parece inesgotável. Tem grande impacto e influência na Galiza. Por Francisco Peña (Xico de Carinho).

Fazemos da saudade e da memória do Zeca Afonso uma arma

Francisco Fanhais fala-nos da sua cumplicidade com o Zeca Afonso, dos vários momentos em que partilharam o palco, da gravação do álbum “Cantigas do Maio”, dos tempos do PREC, da participação nas campanhas de dinamização cultural do MFA.

Zeca Afonso: Ode à alegria

No caso do Zeca Afonso nunca resultaram os guetos de silêncio a que tentaram condená-lo, desde antes de Abril, quando a censura cortava o seu nome, impondo-lhe a morte do silêncio, tão pouco com os silêncios de matriz "democrático" por via da incomodidade do seu canto insurrecto. Por Fernando Paulouro Neves.

Para o Zeca

Digo-to, também por ti, para que saibas que a tua força não se acabou quando te foste, e enquanto houver memória, haverá força para ir longe, bem longe, mesmo além de Taprobana. Por Camilo Mortágua.

Sobre o Zeca Afonso

O que nos unia? Sei que nunca por nunca tentámos “converter-nos” um ao outro a opções religiosas ou ideológicas; tínhamos em comum o ideal que Mário Sacramento sintetizou naquela recomendação lapidar: “Por favor, façam que o mundo seja bom”. Por António Correia.

AJA celebra 30 anos a evocar a Obra e o exemplo de cidadão de José Afonso

Em declarações ao Esquerda.net, o presidente da direção da Associação José Afonso (AJA), Francisco Fanhais, afirma que a AJA tem como objetivo “dar continuidade ao legado do Zeca, preservar a sua memória e pôr a sua arte ao serviço da cidadania”.