"Escutai por aí os ecos do meu canto”
Walt Whitman
Subitamente, uma voz no silêncio. O Zeca. Tem-se falado nele agora, por estes dias de Fevereiro, em que lembra que a morte o levou tão cedo que gravou no coração da gente uma imensa saudade. A verdade é que para mim e para muitos, tantos, o Zeca continua vivo e eu continuo a vê-lo com aquele ar distraído e de sorriso aberto ao futuro criando a infindável "irmandade" à volta da sua música e das suas canções, por esse país fora, que era esse o seu maior prazer:ir em busca de uma nova humanidade. Nem palcos, nem o universo social da canção, tão precário e vazio. Antes, e sempre, o povo que ele gostava de acordar com a sua arte poética -- porque falando em José Afonso é preciso falar em poesia -- nas colectividades populares, em convívios de inquietação colectiva, às vezes em cima do atrelado de um tractor ou em largos que ainda eram o centro do mundo, como o Manuel da Fonseca gostava de dizer. Poesia e música, música e poesia, foi essa a sua biografia essencial traduzida na fala arterial de um canto que era, ao mesmo tempo, o respirar da esperança, insubmisso e rebelde, como recomendava Gabriel Celaya ("a poesia é uma arma"), mas também o coração terno e solidário, versos e palavras contra os poderes e os poderosos, contra os "mandadores sem lei" ou os "eunucos" que fabricavam desumanidades e tolhiam de medo um país.
E, no entanto, o Zeca sabia combinar, como nenhum outro trovador, essa mensagem de urgência social, esse grito e essa ousadia do protesto contra a injustiça entronizada, com o veio lírico que a pureza do seu cantar transformava na luz de todas as Primaveras, nas manhãs claras de Maio, como se o tempo não tivesse outro destino senão o de uma renovação libertadora, carregada de comum humanidade.
É por isso que, ouvindo-o, com aquela voz tão densa de emoção funda, acontece sempre o mesmo milagre de irmos ao encontro de uma enorme paz interior. Então, uma alegria terna brota da música dos seus versos, com aquele timbre tão límpido, ora afectuoso ou dramático, às vezes quase épico, como só acontece quando é o coração que canta. Não admira que o país se apropriasse de uma canção sua para a transformar em bandeira e hino do 25 de Abril.
No caso do Zeca Afonso nunca resultaram os guetos de silêncio a que tentaram condená-lo, desde antes de Abril, quando a censura cortava o seu nome, impondo-lhe a morte do silêncio, tão pouco com os silêncios de matriz "democrático" por via da incomodidade do seu canto insurrecto. Com ele, nada disso resultou. Porque as suas canções há muito constituíam património colectivo identificador da liberdade.
Que me lembre, nenhuma outra obra, no mundo da canção, influenciou tanto geracionalmente, como a sua, num processo de rejuvenescimento que permanece vivo, mesmo quando se refaz em experiências múltiplas do ponto de vista criador. Por isso, houve aquele jovem que, já o Zeca Afonso estava muito doente, pediu ao Fanhais mais ou menos isto: se és amigo do Zeca, diz-lhe que a sua música não vai morrer porque a malta nova está com ele!
Todo o tempo é bom para ouvir o Zeca, mas penso sempre em Maio, decerto pelas cantigas que lhe dedicou, como o seu tempo primordial. Mas ouvi-lo ou vendo os mais jovens reinventando o seu universo criador é sempre uma festa feita de poesia e de música que acontece. Regresso às suas canções para respirar melhor e olhar a luz. E vejo sempre o Zeca avisando a malta: “Vejam bem/Que não há/Só gaivotas/Em terra/Quando um homem/Se põe/A pensar”.
*Fernando Paulouro Neves (Fundão, 1947) - Jornalista e escritor.
Testemunho enviado ao Esquerda.net a 19 de fevereiro de 2017.