O perigo é que Cuba acabe a parecer-se o final da URSS

O diagnóstico de Fidel Castro sobre a crise está ligado à necessidade urgente de mudanças na ilha. Estima-se que apenas cem mil conseguirão outro emprego, e em actividades por conta própria de destino incerto. Por Marcelo Cantelmi, do Clarín

26 de setembro 2010 - 17:05
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Foto de Peter Ashton aka peamasher

A difícil tarefa é deixar a paixão suficientemente longe quando falamos da questão cubana. Por esse desvio inevitável da razão é possível encontrar, por vezes, interpretações inverosímeis sobre o que na verdade está a acontecer na ilha comunista. Ou na tradução política de declarações que, como é habitual no resto do mundo, também diferem muito do que parecem ou pretendem parecer. A paixão encobre inimigos e amigos com igual fanatismo.

Há duas novidades que puseram novamente Cuba no centro das atenções e as pessoas dos muitos e diversos grupos lançaram-se a apropriar-se da verdade como uma missão revelada. Uma das noticias provem do reaparecido e impetuoso Fidel Castro, que disse a uma jornalista da prestigiosa Atlantic Monthly dos Estados Unidos que “o modelo” já não funciona “nem sequer para nós”. A outra foi a decisão sem precedentes dentro da tradição desta etapa histórica de Cuba de despedir 500 mil trabalhadores estatais.

Este valor equivale a 10% da população laboral do país. E ainda assim é metade da quantidade publicamente mencionada em Abril passado por Raúl Castro como a quota necessária de sacrifícios para reduzir a camada supérflua no emprego publico.

Ambos factos têm um vínculo que, se for explorado, poderá ser esclarecedor. Fidel lançou aquela frase premeditadamente, segundo é possível reconstituir, depois de se ter voltado a trabalhar na finalização do projecto do seu irmão que tencionava transformar a estrutura económica do país.

O dado mais estrondoso desse retrocesso foi a forma atípica como se desenrolaram os acontecimentos de 26 de Abril passado que comemoram os 57 anos da Revolução. Nessa ocasião não falou nenhum dos Castro, e quem tomou o microfone, o vice-presidente Ramón Machado Ventura, fez honra aos seus antecessores ortodoxos ao ignorar totalmente a palavra reforma.

A frase do comandante ao jornalista norte-americano que, numa interpretação inverosímil mas extensa, foi traduzida como uma autocrítica do modelo comunista – não é precisamente o que Fidel faria neste momento – foi, na verdade, a repetição de outra que o seu irmão não deixou de pronunciar desde que o revelou enquanto tomava as rédeas do pais. A questão é mais que isso. A citação foi uma ratificação de que há uma decisão real para as mudanças, pelo menos neste vértice do poder cubano que, claramente, não é o único vigente na ilha.

O despedimento de um número de tal magnitude de empregados estatais é uma vitoria dos Castro para aprofundar essa viragem e impô-la sobre os atavismos da forte burocracia do Partido Comunista, cuja componente principal tem duas vertentes: uma estratificada, que é a da gerontocracia apegada ao poder, e outra idealista que percebe que um modelo asiático em Cuba será também puro capitalismo com uma máscara socialista. Neste ponto, dá-se a controvérsia de buscar um caminho próprio, devido à proximidade com os EUA, que implicaria o risco de Washington se apropriar de certas debilidades que traria consigo a abertura.

Porém, é um beco sem saída: se não há mudanças, o sistema irá colapsar porque a realidade económica não mostra alternativas. Nunca como agora a maior das Antilhas esteve em situação tão difícil e o auxílio petroleiro da Venezuela é uma gota frente ao tamanho oceânico do desafio.

O plano para que Cuba saia do actual abismo tem faces diferentes. Os primeiros foram os passos inclusivos que ocorreram há quatro anos, permitindo um maior acesso da população aos hotéis turísticos e a compra de telemóveis ou de outros bens de linha branca. Mas, na base disto, encontra-se a decisão de terminar o igualitarismo herdado das origens da Revolução. Essa parte do processo está a decorrer desde o momento em que, há anos, Raul Castro impôs nas mais de 800 empresas do Ministério da Defesa que encabeça, o critério do estímulo material sobre o moral.

Por outras palavras, ganha quem se esforçar mais. Na lista de trocas também cairão os restaurantes públicos (18.600 em toda a ilha) e com eles os famosos cartões de distribuição, com a ideia de que todos esses instrumentos se coligaram para que a maioria das pessoas viva sem o esforço de lutar pelo seu emprego.

São só argumentos. Há que não esquecer que Cuba tem hoje os salários mais reduzidos do hemisfério, entre dez e doze dólares mensais, não importa o nível académico da pessoa ou o tipo de trabalho que desempenha. Isso explica a crise de consciência existente. Seria uma atmosfera ideal para a proliferação de negócios com o estrangeiro, que é o objecto de desejo desta transformação. Mas a ilha não tem uma população numerosa como o Vietname ou a China e, além disso, suporta um embargo anacrónico imposto pela Casa Branca, que trava a circulação de bens e pessoas. Essa medida, de claro porte eleitoralista nos EUA, é promovida por uma minoria anticastrista da Flórida que cada vez mais se opõe à posição da maioria da direita republicana e democrata que aspiram a aumentar o comércio com Cuba.

A aposta é, então, criar um começo que traga esses negócios, configurando um negócio que justifique no exterior a ruptura dos bloqueios existentes contra a ilha e que o resultado multiplique a circulação do dinheiro para atenuar o enorme custo social da crise, que se expressa também no vigor do mercado negro. Os passos realizados até agora, no entanto, mostram nas suas lentidão e confusão as extremas contradições que existem na ilha. Deve só ficar bem explícito que não existe hoje, e improvavelmente no futuro próximo, emprego privado que absorva o meio milhão de empregados que o Estado perdeu.

Estima-se que apenas cem mil conseguirão, e em actividades por conta própria de destino incerto. Deste modo, as tensões sociais podem aumentar e acelerar trocas que brotariam por pressão e por falta de decisão. E o perigo de que Cuba acabe a parecer-se mais com o final da URSS do que com a reconversão da China.

18/09/10

Tradução de Ana Bárbara Pedrosa

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