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Nuvens de tempestade capitalista sobre Havana

Depois de o governo anunciar que vai cortar 1 milhão de postos de trabalho, metade até Março de 2011, diz aos trabalhadores cubanos que se tornem empresários, numa aposta para ampliar o sector privado da ilha. Por Rory Carroll, correspondente da América Latina do Guardian
Havana. Foto de puyol5, FlickR

Era suposto ser o início de um admirável mundo novo em que o cliente era rei. Mas o adolescente na cadeira do barbeiro fitou o seu reflexo horrorizado e quase a chorar. “O que é que você fez?” perguntou ele, acariciando os tufos irregulares num couro cabeludo rapado.

O barbeiro, um homem de quarenta e poucos anos com um encardido casaco branco, pousou a tesoura, acendeu um cigarro, e encolheu os ombros. “A mim parece-me bem. Não sei o que está para aí a dizer.”

O jovem cliente examinou a sua cabeça de diferentes ângulos, cada um pior que o outro. “Parece…” – disse, tentando encontrar as palavras – “uma bola de ténis. Um raio de uma bola de ténis careca.” O barbeiro deu mais uma puxada no cigarro e pousou a mão. “Quarenta pesos. Tenha um bom dia.”

A cena passa-se na Rua Neptuno, um quarteirão decadente, banhado pelo sol perto do centro de Havana, um ponto de referência ao desafio de Cuba em transformar a sua economia socialista com um impulso de privatização radical.

As autoridades anunciaram que vão despedir mais de um milhão de trabalhadores do Estado no maior abalo económico da ilha desde 1960. Os cortes começam imediatamente, com o fim de 500 mil empregos até Março. Espera-se que o abrandamento do controlo ao empreendimento privado impulsione o sector, transformando em empresários os antigos trabalhadores públicos.

“O nosso estado não pode e não deve continuar a manter empresas, entidades produtivas, serviços e sectores orçamentados com folhas de pagamento enormes [e] perdas que prejudiquem a economia” disse o porta-voz da federação do trabalho Cubano, que deu a notícia.

“As opções de trabalho vão ser aumentadas e alargadas com novas formas de emprego não estatal, entre as quais o arrendamento de terrenos, cooperativas e emprego próprio, absorvendo centenas de milhares de trabalhadores nos próximos anos,” disse ele.

De facto, as mudanças começaram em Abril, com um projecto-piloto para privatização de barbeiros e cabeleireiros. Anteriormente empregados do estado – cerca de 85% da população activa trabalha para o estado comunista – foram notificados a assumir o controlo dos seus próprios estabelecimentos, cobrar o que quisessem, pagar impostos – e a serem simpáticos com os clientes.

Como o barbeiro mostrou, providenciar bom serviço ao cliente, já para não falar expandir a quota no mercado, são conceitos desconhecidos para muitos habituados a receber a mesma ninharia de salário, independentemente do desempenho no trabalho. “Não quero tomar conta deste lugar,” disse ao Guardian Luís, o barbeiro que preferiu não mencionar o sobrenome. “Como é que sei se vai dar algum lucro? Como é que pago aos fornecedores?”

Quer gostem quer não, estas são as perguntas que muitos mais cubanos irão fazer quando receberem os seus cupões cor-de-rosa. De acordo com um documento do partido de 26 páginas, divulgado pela Associated Press, as autoridades têm reservados para eles planos para a criação de coelhos, para pintar edifícios, fazer tijolos, recolher lixo e pilotar de ferries por toda a baía de Havana.

Alguns dos que vão ser despedidos serão incentivados a formar cooperativas privadas, outros direccionados para empresas geridas por estrangeiros e empreendimentos, e outros encorajados a formar os seus próprios pequenos negócios.

O documento do Partido Comunista admitiu que a falta de experiência, níveis de qualificação insuficientes e pouca iniciativa podem afundar as novas empresas. “Muitas delas podem falir dentro de um ano,” diz o documento.

Após meio século de certeza oficial como sendo socialista o seu curso, Cuba está a entrar em novas águas. O seu destino final permanece obscuro. “Um híbrido está a evoluir que não se pode dizer que seja alguma coisa,” disse Julia Sweig, uma especialista sobre Cuba do grupo de peritos do Conselho sobre Relações Externas. Estamos a presenciar uma transição Cubana única mas dentro da economia mundial.”

No ano passado, a taxa de desemprego oficial foi de 1,7%, mas, com uma média de salários mensais de apenas 20 dólares, complementados com um livro de rações e cuidados de saúde e ensino gratuitos, muitos cubanos fazem apenas esforços mínimos, sugerindo uma piada antiga: “Eles fingem que nos pagam e nós fingimos que trabalhamos.” O sonho de Che Guevara de criar um “homem socialista” motivado por incentivos morais mais do que materiais, há muito que foi abandonado.

O anúncio desta semana – largamente divulgado por todos os meios de comunicação social estatais – tem sido trilhado desde que Raúl Castro sucedeu ao seu irmão Fidel como presidente em 2008. “Temos de apagar para sempre a noção de que Cuba é o único país do mundo em que as pessoas podem viver sem trabalhar,” disse ele no mês passado à Assembleia Nacional. As décadas do embargo dos Estados Unidos – uma medida punitiva incapacitante – não podem mais ser responsabilizadas por todos os males da ilha, disse ele.

Não era possível continuar a proteger e a subsidiar os salários de uma forma ilimitada e os cortes irão afectar todos os sectores governamentais, disse a federação sindical. “Perdas que prejudiquem a nossa economia são, em última análise, contraproducentes, criando maus costumes e distorcendo a conduta dos trabalhadores.”

Os trabalhadores dos ministérios do Açúcar, Saúde Pública, Turismo e Agricultura vão ser os primeiros a ir, de acordo com o documento do Partido Comunista. Os últimos serão os da aviação civil e dos ministérios das Relações Externas e Serviços Sociais.

Para aliviar a dor, as autoridades esperam dinamizar o atrofiado sector privado, encorajando os cubanos a criar animais, cultivar legumes, conduzir táxis, reparar veículos, fazer doces e frutos secos e procurar trabalho de construção.

Os militantes de esquerda no estrangeiro podem sentir-se decepcionados pelos cortes, mas as autoridades cubanas acreditam que o florescente mercado negro é um indicador de que o sector privado irá absorver o trabalho excedente. Um tal consenso contrasta com a Grã-Bretanha, Irlanda e Grécia, entre outros, onde os cortes provocaram protestos.

Um diplomata ocidental baseado em Havana foi menos ardente sobre a resposta de Cuba, principalmente porque houve cortes simultâneos em subsídios para alimentação, cigarros e outros produtos que as pessoas costumavam trocar. “As pessoas sabiam que isto ia acontecer, mas agora está aqui e é real, e estão preocupadas. Os patrões vão-se livrar dos trabalhadores menos produtivos, daqueles que não trabalhem ou que faltem ao emprego. O tipo de pessoas que não possuem o incentivo para se lançar na criação de emprego. A população interroga-se se não irá haver um aumento na criminalidade ou protestos sociais.”

A Europa suportou as suas próprias lutas económicas mas pelo menos estava habituada ao desemprego, disse o diplomata. “As pessoas aqui não estão habituadas e serem ameaçadas com a perda dos seus empregos. Podem reclamar que o seu salário é de apenas 15 dólares por mês, mas são 15 dólares mais do que nada.”

O jornalista americano que divulgou que Fidel Castro aparentemente tinha admitido que o modelo económico de Cuba não funciona, insistiu que a citação reflecte com precisão a visão do antigo presidente. Castro confirmou ter proferido a observação de nove palavras, que causou um espanto generalizado, mas disse que tinha sido mal interpretado pois queria dizer “precisamente o contrário”.

No final de um almoço em Havana, Castro disse a Daniel Goldberg, um correspondente da revista Atlantic: “O modelo cubano já nem para nós funciona.”

Goldberg disse que o comandante estava em plena forma, focando muitos tópicos diferentes ao mesmo tempo. “Não quero chamar-lhe um discurso improvisado mas era uma espécie de semi-corrente de consciência.”

Também disse que ficou surpreendido com a subsequente tentativa de Castro explicar a observação: “Eu não sei como pôde interpretar isso ao contrário.”

O homem de 84 anos já antes tinha feito admissões semelhantes, disse o jornalista, e as alterações económicas em curso na ilha fazem delas “ uma evidência de que o modelo cubano não está a funcionar.”

Julia Sweig, a especialista sobre Cuba que também estava presente no almoço, apoiou a versão de Goldberg e disse que a aparente reviravolta de Castro era destinada a uma audiência interna.

“Ele queria dizer que embora estejamos a alterar o nosso modelo, não significa que estejamos a importar o modelo capitalista dos Estados Unidos,” disse ela.

A onda de aparições públicas e comentários de Castro, disse Sweig, foram “espontâneas”, mas encaixaram na estratégia da reforma económica do seu irmão e sucessor, Raúl Castro.

14 de Setembro de 2010

Tradução de Noémia Oliveira para o Esquerda.net

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Neste dossier:

Despedimentos em Cuba

O anúncio de que cerca de um milhão de empregados públicos vão perder os seus empregos em Cuba, metade dos quais até Março de 2011, significa a maior mudança económica e social no país desde 1960.

Governo cubano exigirá eficiência e produtividade aos seus empregados

Pagará indemnização de 60% do salário durante 5 meses aos despedidos que não encontrarem ocupação. Por Gerardo Arreola, correspondente em Havana do La Jornada.

Arranca o “novo modelo cubano” com mais de meio milhão de despedimentos

A nova política laboral elimina o subsídio de desemprego. O Estado irá manter áreas estratégicas como o petróleo, a biotecnologia e o turismo entre outras. Por Gerardo Arreola, correspondente em Cuba do La Jornada

Nuvens de tempestade capitalista sobre Havana

Depois de o governo anunciar que vai cortar 1 milhão de postos de trabalho, metade até Março de 2011, diz aos trabalhadores cubanos que se tornem empresários, numa aposta para ampliar o sector privado da ilha. Por Rory Carroll, correspondente da América Latina do Guardian

Cuba prepara-se para privatização limitada

No ”novo modelo” serão legalizadas actividades profissionais até agora consideradas como mercado negro. Por Geraldo Arreola, correspondente em Cuba do La Jornada.

O despedimento de um milhão de trabalhadores

Em todo o lugar, em todo o tempo, são precisos sindicatos que falem livremente pelos trabalhadores e que lutem pelos seus interesses, sem se subordinar aos Estados.

Democracia e autogestão como forças produtivas

Quem discutiu previamente as actuais medidas que permitem vender propriedades a estrangeiros, por 99 anos, que permitem a construção de uma grande quantidade de campos de golfe, que eliminam totalmente o magro subsídio de desemprego? Por Guillermo Almeyra, La Jornada, México.

O perigo é que Cuba acabe a parecer-se o final da URSS

O diagnóstico de Fidel Castro sobre a crise está ligado à necessidade urgente de mudanças na ilha. Estima-se que apenas cem mil conseguirão outro emprego, e em actividades por conta própria de destino incerto. Por Marcelo Cantelmi, do Clarín

Sobre aspectos da situação em Cuba

É ao povo cubano que compete, soberanamente, tomar as decisões que considere mais adequadas para prosseguir a construção do socialismo, consolidar as conquistas alcançadas e defender a soberania e a integridade territorial do seu país, diz a nota do Gabinete de Imprensa do PCP.

"Reduzir os gastos sociais abusivos"

“É necessário elevar a produção e a qualidade dos serviços, reduzir os gastos sociais abusivos e eliminar gratuitidades indevidas, subsídios excessivos, o estudo como fonte de emprego e a aposentação antecipada”, diz a Central dos Trabalhadores de Cuba. Leia a íntegra do documento.

Entrevista: Para onde vai Cuba?

Sam Farber é um socialista veterano nascido e criado em Cuba. Ele é o autor de numerosos artigos e livros sobre o país, incluindo As Origens da Revolução Cubana Reconsideradas. Falou com Alan Maass, do Socialist Worker, sobre o significado do anúncio de layoff - e sobre o futuro para Cuba.