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Monsanto e a controvérsia científica

Os organismos geneticamente modificados (OGMS) são um tipo de biotecnologia que enquanto dispositivo político reforça os cânones da ciência moderna. Centrais na discussão sobre a objetividade e missão da ciência, bem como da legitimidade das publicações científicas, os OGMs promovem uma controvérsia que se desenha no eixo norte-sul e na dissidência científica.
Foto Wikipedia.

Apesar do apregoado consenso científico sobre os OGMs, este é talvez um dos debates políticos mais acessos a nível internacional. O que nos obriga a enquadra-lo geopoliticamente, para então seremos capazes de compreender as antinomias da ciência moderna e o modelo de racionalidade que serve de base a um dispositivo (bio)imperialista, promotor de um sistema de exclusão na modernidade capitalistai. Na controvérsia de desenho no eixo norte-sul importa compreender como o dito consenso científico se resume a um consenso epistémico do norte, e não a um consenso global.

Eixo Norte-Sul

A natureza teórica dos OGMs decorre de pressupostos epistemológicos partilhados, que pelo seu método regrado, permitem a construção de uma ordem e estabilidade de conhecimentos sem a qual estes dispositivos técnicos não se poderiam impor enquanto dispositivos políticos. Para compreender melhor esta ideia importa consolidar que no debate sobre OGMs está presente uma luta epistemológica em sistema de desigualdadeii. Por um lado, parte-se da premissa que a controvérsia sobre os OGMs é a oposição entre cientistas e a sociedade, não considerando a oposição interna da ciência como uma dissidência, mas como uma rotina da racionalidade científica. Por outro lado, crê-se que é através da popularização das ciências, neste caso em particular da literacia sobre biotecnologia, que se superarão as controvérsias. Estas duas premissas, para além de promotoras de injustiça cognitiva, opõem o saber científico ao saber tradicional, reforçando as dicotomias moderno/tradicional, social /natural, científico/cultural e impondo uma ideia homogeneizada das identidades (e espécies) naturais, constituindo assim um império racional (bio) tecnológicoiii. Neste sentido, de potencial de império, a biotecnologia surge como um dispositivo propenso a apoiar movimentações do poder económico e cultural.

Haiti

Um dos melhores exemplos que talvez possa ser dado aqui para se compreender a biotecnologia como dispositivo do novo imperialismo é o caso do Haiti. Em 2010 após o sismo que vitimou mais de 200 000 pessoas, uma das empresas multinacionais que prontamente acedeu enquanto ajuda humanitária foi a Monsanto. Uma doação de sementes transgénicas ao governo haitiano por parte desta companhia motivou manifestações massivas na América Latina que denunciaram o aproveitamento politica e económico por parte da companhia da situação catastrófica do país. Desengane-se quem achar que a ajuda era no sentido da recuperação da produção alimentar dos camponesesiv.

Dissidência

O desenho da controvérsia acontece também na dissidência. O modelo da racionalidade moderna aceita a variedade interna, no entanto, não deixa de policiar ostensivamente as suas fronteirasv. Assim, numa situação de crise paradigmática da ciência, e quando a sua governação cada vez mais se entrega a modelos de mercado, passam a ser essas entidades os agentes de policiamento das fronteiras, e das práticas, cientificas. Neste sentido uma controvérsia científica que só se desenhe no eixo norte-sul, mas descarte a sua dissidência na prática, será na verdade apenas um reclamar que desafia as trajectórias hegemónicas sem no entanto as reorientar. O desenho da controvérsia terá assim de ser feito com base numa prática dissidente que reconfigure as fronteias entre a ciência e a política, e sociedade, implicando uma redefinição das suas legitimações e dos seus meios de produçãovi.

No entanto qualquer dissidência, mais do que a controvérsia, será altamente perseguida e publicamente ridicularizada até ao momento em que poderá vir a ser coaptada. Foi assim com o debate promovido no anos 60 promovido pelos movimentos ambientalistas com base nos trabalhos de Rachel Carson, e assim tem sido com o corpo cientifico que contrária os estudos científicos sobre OGMsvii. Neste sentido, o policiamento das fronteiras científicas, a par do controlo que as empresas privadas como a Monsanto têm sobre a produção do conhecimento cientifico deste organismos, colocam não só em questão a forma como esta informação afecta o sistema regulatório, mas também a forma como visões de capital natural são reconstruidas moldando suposições metodológicas de incerteza.

Incerteza Ecológica

Ao nos depararmos com a incerteza é razoável para um cientista adoptar uma posição ética, em vez de uma posição puramente cientifica. No entanto, o debate sobre os modelos de racionalidade ecológica que podem ser adoptados não se desligam de um entendimento que as teóricas ecológicas mobilizadas para os debates estão nas bases conceptuais da ética ambiental, que são reproduzidas (ou promovidas) nos processos regulatórios. Com isto quero dizer que os próprios conceitos ecológicos são moldáveis e podem assumir significados muitos distintos. A sua plasticidade, que não é em si um problema, torna-los também mais passiveis de serem colonizados por tecno-epistemologias não democráticas. Como por exemplo, temos as noções de estabilidade ecológica que se associam aos OGMs, mas que são uma visão de estabilidade que produz ausência de flutuações nas populações componentes colocando, por exemplo, em crise os conceito de biodiversidades e de integridade ecológica ou de espécie.

No processo de colonização epistémica a Monsanto é das empresas mundiais que mais investimento tem realizado. Policiando as publicações científicas através do controlo dos corpos editoriais das revistas, forçando processos regulatórios sobre métodos e processos de desregulação sobre mercados, a Monsanto têm-se imposto como uma força imperialista na racionalidade técnica moderna não democrática. Uma autêntica força colonial.

 

 

* Irina Castro é Ecóloga, Estudante de Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação.

 


i,ii Santos, Boaventura Sousa (2006) A gramática do tempo: para uma nova cultura politica [Para um novo senso comum. A ciência, o direito e a política na transição paradigmática, Volume IV], Edições Afrontamento, Porto

iii Ver Sheila Jasanoff (2006) Biotechnology and Empire: The Global Power of Seeds and Science, OSIRIS, 21, 273-292

iv Ver Via Campesina (16 de Junho de 2010) Haitian peasants march against Monsanto Company for food and seed sovereignty: http://viacampesina.org/en/index.php/actions-and-events-mainmenu-26/stop...

v Santos, Boaventura (2002, [1987]) Um Discurso Sobre as Ciências [13º Edição], Edições Afrontamento, Porto

vi Jason A.Delborne (2008) Transgenes and Transgressions: Scientific Dissent as Hetergoneous Pratice, Social Studies of Science 38, 509-541

vii Ver Combat Monsanto: Building a world free from Monsanto: http://www.combat-monsanto.co.uk/spip.php?rubrique18

Comentários (1)

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