Maria da Glória: a proibição de “A Magrizela”

porAna Bárbara Pedrosa

Nesta obra, não apenas há muitas situações sexuais como há muitas variantes que hão-de ter sido ainda mais problemáticas para os censores: sexualidade infantil, necrofilia (praticada por crianças), atracção sexual de uma criança pelo pai adoptivo, relações eróticas homossexuais, relações eróticas grupais, várias relações extra-conjugais. Por Ana Bárbara Pedrosa.

26 de julho 2019 - 13:39
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Volvidas décadas, não tendo a autora assinado a obra censurada pela PIDE com um apelido, torna-se muitíssimo difícil aceder a qualquer informação sobre si. Nos processos da PIDE, não é possível encontrar dados pessoais, partindo-se dos nomes próprios disponíveis. Sem uma ficha, não conseguimos aceder a um relatório, que terá sido escrito, que justifique a proibição da obra. Uma pesquisa online poucas informações nos ofere. Aliás, a pouco mais se chega do que à lista de obras proibidas pela PIDE ou a raras vendas de alfabarrabistas. Para mais, A Magrizela (1962), livro que aqui trataremos, foi impresso pelas Oficinas Gráficas de R. R., em Lisboa, e a capa do livro foi feita pela autora.

O que terá levado à censura?

Não havendo relatório disponível que justifique a proibição da obra, também não é difícil indagar. A Magrizela inclui muito do que feria a moral do Estado Novo no que concerne à sexualidade (a mera afirmação da sua existência era suficiente para motivar uma censura), e ainda muito além do que seria expectável. Já vimos, neste dossier, os censores literários a proibirem a circulação de obras por conterem descrições de relações eróticas (por exemplo, com Carmen de Figueiredo), e já vimos os censores particularmente escandalizados com actos necrófilos (com Casa sem pão, de Maria Archer). Aqui, nessa matéria, a narrativa vai mais longe. Não só vemos muitas situações sexuais como vemos muitas variantes que hão-de ter sido ainda mais problemáticas para os censores: sexualidade infantil, necrofilia (praticada por crianças), atracção sexual de uma criança pelo pai adoptivo, relações eróticas homossexuais, relações eróticas grupais, várias relações extra-conjugais. Noutro tópico, no início da narrativa, há ainda situações de maus-tratos a crianças e de violência doméstica.

Contudo, esta obra de Maria da Glória, ao contrário das obras, por exemplo, de Maria Teresa Horta e de Natália Correia que aqui trataremos, não nos parece ter qualquer intento político ou social, ou sequer retratos psicológicos convincentes e contundentes das personagens. A exposição da sexualidade não serve para mostrar um confronto nem para fazer uma reivindicação, muito menos para mostrar densidade psicológica, tensão, humanidade. A forma como as personagens estão delineadas, por sua vez, tende até a ser um tanto reaccionária: os homens são vistos como animais sexuais, as mulheres procuram afecto; no caso dos primeiros, amor e infidelidade não são contraditórios; no caso das segundas, não podem ser concomitantes, a não ser por vingança.

A autora parece optar pela contínua novidade para prender o leitor. A acção tem muitas reviravoltas, sempre inesperadas, e no fim vence o amor, que aqui aparece como uma força espontânea intransponível, um baluarte apesar dos problemas, e que existe sempre apesar de: apesar do tempo, apesar das separações, apesar de outros homens, de outras mulheres, apesar de as duas personagens principais acreditarem em traições. Assim, nada na narrativa, para além dele, parece deixar marcas: as pessoas que passam nas vidas das personagens não voltam a ser referidas, os casos de necrofilia e de relações homossexuais são referidas uma vez só, sem grande papel na narrativa, sem que se perceba de que forma contribuem para a formação das personagens, ou sequer como as constituem.

Não havendo referência a outros assuntos, parece-nos, por isso, que esta foi uma obra que não passou pelo crivo da PIDE graças à mera existência, e não afirmação, do erotismo no seu cerne. Pela sua inclusão, e pela forma tão evidente como existe, e de forma reiterada, não nos parece que a sua proibição tenha sequer sido matéria de questionamento e acreditamos que a obra tenha sido proibida assim que foi lida.

Sem outras informações, torna-se impossível analisarmos a recepção desta obra. Também não sabemos de que forma esta obra censurada terá influenciado a vida da autora. Ainda assim, podemos arriscar que muito dificilmente esta obra sobreviveria até hoje, muito dificilmente se poderia canonizar. Não traz em si a força do seu tempo nem do intemporal, não questiona, não provoca, não incita, não acrescenta matéria a um leitor coetâneo.

Para saber mais sobre as obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE, clique aqui.