O primeiro contacto
O primeiro contato com as músicas do Zeca foi talvez em finais dos anos 60, ou princípio dos anos 70. Ouvi, através de um amigo músico, galego, algumas canções do Zeca, do seu repertório popular. Lembro-me da canção “Natal dos simples”.
Depois conheci pessoalmente o Zeca no inverno de 1970, sendo eu estudante de etnomusicologia e músico do cantor brasileiro G.Vandré, na altura exilado na capital francesa. O Zeca atuava na faculdade da Sorbonne, onde fui apresentado pelo músico galego Bibiano, que o acompanhava com o violão. Pouco depois assisti ao Festival da Chanson Portugaise de Combat na Maison de la Mutualité, que teve lugar em Paris em novembro de 1970, e no qual também participavam o Zé Mário Branco,S o Sérgio Godinho, o Francisco Fanhais, o Tino Flores e o Luis Cília.
Fui saudá-lo e perguntei-lhe se me podia dar informações sobre a música portuguesa, popular e de intervenção, que eu estava interessado em conhecer de mais perto. O Zeca disse-me que não era o mais indicado, porque não tinha estudos musicais e também porque não morava em Paris. Apresentou-me ao Luis Cília, dizendo que ele me poderia dar as informações de que necessitava.
A cumplicidade que se criou
No meu regresso à Galiza, retomei novos encontros com o José Afonso, que resultaram numa relação bastante continuada. Em 1977, e como organizador do evento, viajei a Setúbal para convidá-lo a participar no Festival galego-luso-brasileiro ( A Coruña,1977), com réplica em Vilagarcia de Arousa, dias depois. E, no ano seguinte, repeti a viagem para atuar no Festival dos Pobos Ibéricos ( A Coruña,1978) onde o acompanhei em “Lá vai Jeremias”.

Festival dos Pobos Ibéricos. Na foto, da esquerda para a direita: músicos e irmãos Arzak (Euskadi), José Afonso, Marina Rossell (Catalunha), Xico de Carinho, Bibiano (Galiza), Enrique Morente (Andalucia) e músicos.
Encontrámo-nos em outras atuações: Redondela, Santiago, Vigo, Coimbra, Setúbal, Festa do Avante de Lisboa, Porto, Viana do Castelo… e em visitas particulares à sua casa de Azeitão, especialmente no ano 85, quando já doente, altura em que estive vários meses a tirar um curso de pedagogia musical em Lisboa.

No primeiro encontro em Setúbal, em 1977, estava em condições precárias de ânimo, pelo menos musicalmente falando. A uma pergunta que lhe fiz sobre a música a sua resposta foi: “Em Portugal já não se faz música pelo desespero revolucionário”.
Zeca Afonso: Personalidade de múltiplas facetas e valores
Não é fácil apreender a personalidade de José Afonso, pessoa de múltiplas facetas, e responder a uma pergunta tão englobada. Gostava do encontro com os amigos e era muito bem humorado. Como cidadão era o paradigma da solidariedade e do compromisso social, sempre bem disposto a atender as necessidades da gente e a colaborar com as coletividades e associações populares. Lembro que estava muito preocupado com a situação das cooperativas camponesas do Alentejo e fazia campanha solidária e de apoio em concertos, também na Galiza, levando autocolantes para arrecadar fundos. Também quando organizámos em Vigo o Festival “Galiza a José Afonso”, a 31 de agosto do 1985, pôs a condição de que fosse de utilidade para a defesa da cultura galega e de que se convidasse um grupo de Timor Leste, para eles poderem expor a sua problemática.
O Zeca mandou uma nota solidária, que se leu durante a iniciativa: "... a minha grande amizade pela Terra e povo galego, com o qual ao longo dos anos mantive as melhores relações, e para manifestar também a minha inteira solidariedade com a luta pelo reconhecimento efetivo da língua e cultura galegas..." (Azeitão, 30 de agosto de 1985).
José Afonso, o cantor de valores
José Afonso, o cantor de valores: solidariedade (Grândola, Utopia, Cantar Alentejano, A morte saiu à rua…), compromisso (Alípio, O que faz falta, Enquanto há força, Os vampiros...). Personalidade de múltiplas facetas e valores. De difícil interpretação, porque era tudo de uma vez, pessoa, cidadão, cantor, criador,… Não era músico profissional, mais sim intuitivo.
Não estava interessado no que rodeava a música, o marketing, o palco… e sim no aspecto social, de encontro, de situações solidárias,….
A sua OBRA é de valor universal: de qualidade e originalidade quer no aspecto musical quer na poesia. Mantém a sua vigência em valores humanos e exemplo de cidadão solidário e comprometido socialmente.
“Não se sentiria justificado como cantor se não se justificasse como cidadão”(José Afonso)
A maior herança de Zeca Afonso
A sua obra, em musicalidade e conteúdo, que se revaloriza e se renova dia a dia pelos diferentes grupos e cantoras/es que continuam a beber da sua fonte, que parece inesgotável. Tem um grande impacto e influência na Galiza, desde os Vozes Ceives (Benedicto, Bibiano) aos poetas e músicos atuais.

Em 1985, entrevistei-o para A Nossa Terra, jornal galego em que eu colaborava. Pedi-lhe para escolher, entre as suas canções, as mais representativas, segundo as características:
*Francisco Peña (Xico de Carinho), músico, dirigente da AJA
- Coordenador musical da homenagem “Galiza a José Afonso” Vigo,1986.
-Participação na Unidade didática sobre José Afonso. Vigo,1987.
- Participação no CD “Galiza a José Afonso” Ed. Do Cumio.Vigo,1999
- Gravação de “Balada do sino” (J. Afonso), no CD “Rolada das cantigas” do grupo Na Virada. Vigo,2001).
- Sócio da AJA desde a sua fundação. Setúbal,1987.
Testemunho enviado ao Esquerda.net a 20 de fevereiro de 2017.