Com efeito, a história do direito do trabalho em Portugal é uma história truncada e atropelada pela oportunidade político-ideológica e pela (in)conveniência académica.
Na verdade, com prejuízo para a autonomia universitária e para a razão dos tempos, o direito do trabalho só entrou nos planos de estudos das Faculdades de Direito no ano lectivo de 1974-75. Tarde, tardíssimo. Tão tarde que vivemos hoje o século XXI com a cicatriz de não ter cumprido integralmente o século XX. Talvez por isso seja tão frequente a não assunção do direito laboral como direito de parte e o não reconhecimento da sua autonomia face a outras áreas do direito.
Nestas circunstâncias adversas devemos a Jorge Leite a artesania que representa o estabelecimento do estudo de uma disciplina jurídica, a sua consolidação universitária e o desenvolvimento do ensino e da investigação jurídico-laboral. Ele foi um dos três arquitectos do pensamento jurídico-laboral português moderno e até ao final não deixou nunca de riscar novas soluções doutrinárias, de reflectir criticamente sobre a lei e a jurisprudência e de ampliar os recursos normativos do sistema com o rasgo de simplicidade e a aparência de facilidade que só os grandes mestres alcançam.
Ficamos a dever-lhe construções teóricas que sedimentaram o nosso património jurídico e muito contribuíram para o direito a ter direitos no trabalho: é o caso da inoponibilidade da condição resolutiva ao contrato de trabalho, da introdução na nossa literatura do direito à ocupação efectiva do trabalhador muito antes da sua consagração legal ou da primeira referência aos direitos da (e não de) personalidade do trabalhador, matéria que defendia dever constituir o pórtico de qualquer lei ou código do trabalho.
A sua jubilação não o afastou dos grandes temas de actualidade e até à morte, sem flutuatio animi, foram os tópicos laborais o seu entusiástico interesse. Preocupava-se com a precariedade dos vínculos laborais e buscava no ordenamento jurídico-constitucional antídotos para os seus efeitos mais corrosivos. Acompanhando as tendências mais recentes da literatura aperfeiçoava a categoria dos designados “direitos de sensibilidade a situações de particular vulnerabilidade dos trabalhadores”, bem como apurava conceptualmente a justa causa de despedimento, apartando-a das causas objectivas de cessação do contrato de trabalho.
Investigava porque era um estudioso por vocação, mas gostava de investigar porque era um estudioso em permanente demanda da ideia de justiça e de uma humanidade conseguida. Não admira, pois, que no já longínquo ano de 1988, tivesse professado “uma mundividência antropologicamente amiga do mundo do trabalho e, em especial, do trabalho subordinado”.
Jorge Leite foi também um professor generoso e apaixonado que ensinava sempre que alunos, alumni, colegas ou profissionais se lhe dirigiam com dúvidas ou hesitações. O relógio parava, a porta estava sempre aberta de par em par e as divergências doutrinárias, estratégicas ou ideológicas nunca impediram a interlocução nem interferiram nas suas avaliações pessoais ou académicas. Acreditava na radical aceitação dos outros, certeza que deixava, fraternalmente, transbordar nas relações com os seus mais próximos. Foi o que sucedeu com aqueles que com ele compartiram uma das suas mais acarinhadas criações – a revista Questões Laborais, que, ao longo de 53 números, beneficiou do seu enorme conhecimento, labor organizativo e avisado conselho.
Fui presente neste percurso, testemunha do seu ensino, tive a franquia de colaborar em diversas empresas e fui distinguida com a sua preciosa amizade, mas, em rigor, só posso dizer que fui, como serei sempre, sua aluna no Direito do Trabalho e na vida.
Coimbra, 2 de Setembro de 2019
* Maria Regina Redinha - professora e investigadora na área do Direito do Trabalho, coordenadora científica do Centro de Investigação Jurídico-Económica, da FDUP.