Num dos últimos textos que publicou, sobre os limites da duração do trabalho, as adaptabilidades e os bancos de horas, Jorge Leite escrevia: “Afinal, o trabalho, a força de trabalho, a mão-de-obra, a energia laboral são apenas nomes que encobrem o ser humano que realiza o trabalho, homem ou mulher, mais ou menos jovem, mais ou menos fatigado, mais ou menos vergado ao peso dos problemas do seu quotidiano, captado, aliás, num momento particular da sua existência, pelo que não poderá deixar de se ter em conta que o objeto da obrigação de trabalho é inseparável da pessoa que o realiza” (Memórias das Jornadas Regionais de Direito do Trabalho, Direção Regional do Emprego e Qualificação Profissional, Ponta Delgada, 2016).
Esta frase exprime bem o modo como Jorge Leite perspetivava o Direito do Trabalho e o seu papel: um direito que deve servir, sobretudo, para civilizar a relação que se estabelece entre quem presta trabalho assalariado e a respetiva entidade empregadora, para subtrair esta relação à lógica das relações de força, para proteger a parte mais débil da mesma, para evitar a “ditadura contratual” de outro modo exercida pelo contraente mais poderoso. Um direito que não deve desempenhar uma função de frio instrumento de gestão empresarial, mas que deve, sim, valorizar o trabalho e salvaguardar os trabalhadores, afinal aqueles que, nas palavras de Alain Supiot, arriscam a pele na execução do contrato, quando prestam trabalho.
Toda a vida de Jorge Leite foi dedicada, com inesgotável empenho, apurada sensibilidade e enorme paixão, à defesa dos mais fracos, dos mais vulneráveis, da pessoa humana que existe por detrás de cada ser laborioso. Como alguém disse, o empregador pode querer contratar um par de mãos, mas acaba por contratar, sempre, um ser humano. E esse ser humano e a tutela da sua dignidade, mais do que meras considerações de eficiência, devem constituir o leitmotiv do Direito do Trabalho.
Jorge Leite foi um professor apaixonado e apaixonante, um académico brilhante, um cidadão visceralmente livre, mas politicamente comprometido com a defesa dos valores em que acreditava. Os valores da Esquerda. Colaborou ativamente com o movimento sindical (em especial com a CGTP-IN), foi deputado à Assembleia da República nos anos setenta, por Coimbra, eleito pelo PCP, partido do qual, mais tarde, sairia. Mas nunca deixou de intervir coletivamente, civicamente, a vários níveis. Afinal, como chegou a escrever algures, o próprio Direito do Trabalho é produto do homem solidário, não do homem solitário. Nos últimos anos, Jorge Leite, sem prejuízo da sua independência, manteve uma colaboração estreita com o Bloco de Esquerda, tendo participado em diversas iniciativas públicas deste e tendo apoiado as suas candidaturas em várias ocasiões.
Jorge Leite partiu no dia 24 de agosto. Partiu com a sensação do dever cumprido, a todos os níveis. Sei, porque sobre isso falamos diversas vezes, nos últimos meses, que partiu algo desiludido por, ao longo da legislatura que agora finda, com uma maioria de esquerda no parlamento, não ter sido possível ir mais longe do que se foi, na valorização do trabalho, no combate à precariedade, na eliminação de normas absurdas que ainda hoje se mantêm no Código do Trabalho. Recordo, das nossas últimas conversas, em especial, a desilusão pelo recuo do Partido Socialista na revogação da norma que presume a aceitação do despedimento coletivo (ou por extinção do posto de trabalho, ou por inadaptação) pelo trabalhador, caso receba a compensação pecuniária que o empregador lhe deve pagar, nesse tipo de casos. Uma norma contra a qual Jorge Leite sempre se manifestou (ele e não apenas ele), cuja revogação foi aprovada pelo PS, na generalidade, mas depois estranhamente reprovada, na especialidade… Ou a desilusão pelo tratamento dado aos jovens à procura de primeiro emprego e aos desempregados de longa duração, que agora vão deixar de poder, por isso, ser contratados a prazo, mas, em contrapartida, vão passar a ficar sujeitos a um período experimental duplicado, de 180 dias, com a inerente precariedade e sem justificação bastante. Ou a desilusão pelo facto de o fim do banco de horas individual ser acompanhado pela criação da estranha figura do banco de horas grupal por via referendária, em lugar de se remeter toda esta matéria para a sua sede própria, a contratação coletiva.
Desiludido, por vezes, mas nunca abatido ou descrente. Jorge Leite não se deixava dominar pelo azedume, pelo ceticismo, pela amargura ou pelo cinismo que, por vezes, acompanham o envelhecimento. Jorge Leite era um incorrigível otimista, acreditava na bondade intrínseca das pessoas e no progresso como sentido da história, mesmo que à custa de muitos erros, percalços e dislates. Era um humanista.
O Direito, como ensinava Jorge Leite, não é propriamente uma ciência descritiva, mas prescritiva, não diz o que é mas como deve ser, preocupa-se menos com o ser do que com o dever ser. O combate à precariedade laboral, a resistência perante a colonização economicista do Direito do Trabalho, a defesa da dignidade de quem presta trabalho em moldes subordinados, a afirmação de que o trabalho não deve ser degradado ao estatuto de mera mercadoria, tudo isto pautou a vida de Jorge Leite, enquanto cidadão, jurista e académico. Ele partiu. E, falando por mim, que o conheci quando eu tinha apenas 20 anos e agora já tenho quase 57, confesso que o mundo se vai convertendo num lugar estranho, quando aqueles que amamos, prezamos ou admiramos nos vão deixando.
Em qualquer caso, Jorge Leite não será esquecido. Tentaremos honrar a sua memória, persistindo nesse combate, na defesa da pessoa que trabalha e na afirmação da tese central de que o trabalho não pode sujeitar-se, passivamente, às exigências do mercado, antes este é que deve ser regulado tendo em conta as necessidades daquele.
* João Leal Amado - Professor da Faculdade de Direito de Coimbra.