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Jorge Leite escolheu o lado mais frágil da relação laboral
A missão é espinhosa: pedem-me umas linhas sobre uma pessoa, cujas qualidades pessoais, intelectuais e pedagógicas não cabem numa dissertação de doutoramento quanto mais em duas páginas. Simultaneamente, o pedido vem dirigido a uma pessoa que nunca se habituará à morte e que tem extrema dificuldade nas despedidas.
Se tivesse que definir Jorge Leite numa única palavra, a que me vem de imediato à cabeça é “generosidade”. Em traços largos, era generoso como só as grandes almas podem ser, sendo que todos, mesmo os que nunca o chegaram a conhecer, usufruíram desta sua característica. E foi generoso até ao final, partindo sem amargura, com total serenidade, esperando eu que com a certeza de que não o esqueceremos.
Pese embora a sua morte recente, a primeira nota que quero deixar é que Jorge Leite é intemporal. Profundamente sabedor, tinha uma humildade desarmante e uma simpatia que cativava todos aqueles que tiveram a sorte de com ele se cruzar, seja na academia, seja noutras sedes, sempre em defesa dos mais desprotegidos. Tais qualidades não podem, contudo, ser confundidas com uma (inexistente...) falta de firmeza ou com um (igualmente inexistente...) pendor oscilante. Pelo contrário, Jorge Leite foi sempre o mesmo, sabendo dizer o que era preciso ser dito com o sorriso nos lábios que só aqueles que têm a razão do seu lado sabem envergar.
A primeira vez que tive oportunidade de o ouvir foi num Congresso de Direito do Trabalho, algures no início deste século, e a simplicidade do discurso, a contrastar com outros mais pomposos embora de conteúdo muito mais fluído, cativou-me de imediato.
Já na última vez em que tive o prazer de estar com ele, embora fisicamente já enfraquecido pela doença, veio até Lisboa dar uma verdadeira aula sobre Transmissão de Estabelecimento, demonstrando uma força, uma energia e uma sagacidade fora do alcance dos demais mortais. Fê-lo, com uma grandiosidade tal que, ultrapassado em muito o tempo, ninguém o queria deixar de ouvir e, não obstante a doença, ele também não queria deixar de nos ensinar.
A partir daí, iniciou uma troca de correspondência comigo, tratando-me como uma igual (que não sou), uma vez mais com uma disponibilidade que é pouco característica dos académicos. E, contudo, no Direito do Trabalho, Jorge Leite não só era um académico reputadíssimo como escolheu o lado mais frágil da relação laboral. Fê-lo, não apenas assente na convicção pessoal, mas tratando de justificar essa mesma escolha com irrefutáveis argumentos científicos, cuja utilidade se mantém intocável.
Muito do trabalho recente de Jorge Leite, explicado essencialmente pela generosidade a que já me referi, foi quase anónimo, uma vez que usou o seu saber para ajudar na redacção de textos legislativos, sem procurar retirar qualquer protagonismo e sem outro fito que não o de acautelar os direitos daqueles que ele próprio afirmou serem os mais necessitados. Entre muitas outras frases que permanecerão, escreveu que “a liberdade de contratar não é mais que a conversão jurídico-formal da necessidade económica de o trabalhador contratar”. Esta frase, quanto a mim, define não apenas aqueles aos quais se dirige, como, acima de tudo, o seu autor, sempre preocupado com os demais.
Talvez por tudo isto e o mais que ficou por plasmar, de pessoas como Jorge Leite não nos despedimos. Dizemos um “até já”, sabendo que continuarão a iluminar-nos o caminho. Obrigada, Jorge Leite.
* Rita Garcia Pereira - Advogada.
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