Memória do Querido Amigo Jorge Leite

O Professor Jorge Leite não se escondia nas teorias abstratas. Estava na luta. Quem o conheceu ficava sempre admirado com a sua inteligência, a sua sabedoria, o seu raciocínio incisivo, a sua agilidade argumentativa, a sua capacidade criativa. Por José Joaquim Gomes Canotilho.

29 de setembro 2019 - 22:39
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São tristes os verbos conjugados no passado e no imperfeito.

O pedido da família para proferir umas curtas palavras é indeclinável. Sinceramente, Jorge Leite não precisava de apresentação. Resta, isso sim, a saudade de um homem excecional no plano ético, cívico, universitário e político.

Permitam-me que comece com uma lembrança dos últimos tempos de vida. Nas suas palavras, estava a “viver a ilusão da desilusão”. Nesta sobrevivência com sombras, o eterno professor da esperança, ousava continuar a luta buscando um pingo da imunologia da esperança. No penúltimo dia de vida consegui conversar com ele sobre coisas como a ida à vindima e as perturbações políticas, sociais, laborais e internacionais. Num ápice, uma ardente melancolia transmutou-se em sono profundo. Caminhar para a noite.

Quem foi, quem é, quem será Jorge Leite? Nós conhecemo-nos nos longínquos anos da década de setenta do século passado. Ambos tínhamos terminado a guerra colonial, ele em Moçambique e eu na Guiné. Quem a guerra tem sempre um após-guerra marcado pelo alheamento e pela realidade da vida cortada. Jorge vem frequentar o curso de direito e eu regressei à vida universitária. A nossa gleba passa pela Praça da República, com as sua tertúlias e pequenas conspirações.

Vinte e cinco de abril. Jorge Leite foi mais generoso do que eu nos tempos da construção da democracia e da igualdade libertadora. Desempenha o cargo eletivo de deputado, colabora na feitura do projeto de constituição e especializa-se no direito do trabalho. Auxiliava o movimento sindical, aprofundava estudos sobre questões laborais, ergue-se a mestre e companheiro da constituição social. Além da permanente dádiva de estudos, insistia na concretização dos princípios básicos da constituição democrática.

Não só isso. Jorge Leite estrutura a cadeira de Direito do Trabalho e trabalha com sabedoria e dedicação na formação de uma “escola de Direito do trabalho” na Faculdade de Direito de Coimbra. As “escolas”, como um amigo (João Lobo Antunes) escreveu, não são só instituições formais mas um corpo relativamente sólido de princípios, conceitos e manobras técnicas que são transmissíveis de geração em geração, não necessariamente imutáveis, mas evolutivamente aperfeiçoáveis, de modo que é possível reconhecer afinidades entre os seus discípulos. Desde o início do curso, avolumam-se auditórios reais e virtuais que se vão alicerçando, através dos tempos, nos “ensinamentos” de Jorge leite. O seu prestígio – mesmo quando sopravam acusações de rigidez problemática e metodológica – alastrava-se no imenso mundo do direito do trabalho. Compreenderão, por isso, nesta hora triste, que recorde a minha proposta apresentada no Conselho Científico da Faculdade de Direito de Coimbra no sentido da contratação do Doutor Jorge do Carmo Silva Leite como professor catedrático convidado da minha escola.

Como já foi insinuado, o Professor Jorge Leite não se escondia nas teorias abstratas. Estava na luta. Quem o conheceu ficava sempre admirado com a sua inteligência, a sua sabedoria, o seu raciocínio incisivo, a sua agilidade argumentativa, a sua capacidade criativa. Na praxis exigente das convenções de trabalho, nos tribunais arbitrais, nos pareceres magistrais, transportava sempre propostas de uma luminosidade inovadora.

Voltemos um pouco para o intimismo narrativo. A simplicidade, a modéstia, a amizade que partilhava com outros transportava sempre o timbre da “amizade perfeita” alicerçada no bom e no bem. Perante estas qualidades no absoluto justifica-se que interroguemos a Jorge neste comovido momento: qual o segredo da tua identidade e da tua ética?

Ousámos acompanhar-te no regresso aos clássicos e descobrir a tua ciceroniana amicitia, amicitia, amicitia! O segredo aí está: amizade porque ela acompanha a mãe, o amor, a ama. A tua família gostará, creio eu, de ouvir estas raízes da existência.

Para mim, Jorge significa verdadeiro irmão.

Agradecemos, agradeço. A tua ilusão continua.


Agosto/2019

José Joaquim Gomes Canotilho
(Texto lido no funeral do Professor Jorge Leite)

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