Em declarações à agência Lusa em 2014, o especialista em direito do trabalho Jorge Leite sublinhava que, “hoje, o trabalho suplementar é mais barato que o trabalho normal porque o seu valor foi reduzido para metade e deixou de ser também compensado com tempo de descanso".
O professor jubilado da Universidade de Coimbra responsabilizava a reforma laboral de 2012, “cujo resultado é seguramente a desvalorização do trabalho”.
"Jorge Leite tem afirmado a perceção de que papel do trabalho suplementar vem sendo transviado"
“A intuição sagaz para este trabalho pertence a Jorge Leite, um dos fundadores do Observatório sobre Crises e Alternativas, seu inspirador sistemático e professor de direito do trabalho de grandes méritos que, nestas matérias, tem sempre a noção mais precisa acerca do fulcro das coisas; do lado para onde o pêndulo se inclina e da feição que está a ser dada ao conjunto, isto é, às relações laborais, às escolhas jurídicas e, enfim, à sociedade”, escrevem José Reis e Manuel Carvalho da Silva na introdução do Caderno do Observatório sobre Crises e Alternativas “Horas extraordinárias: por que está a lei a incentivar o trabalho suplementar?”,
Os autores sublinham ainda que “desde há alguns anos e, em particular desde 2012, Jorge Leite tem afirmado a perceção de que o papel do trabalho suplementar vem sendo transviado, porque não obedece à proporção que lhe cabe numa ordem positiva”.
“Daí resultam distorções graves, tanto no plano individual, como no da afirmação de direitos coletivos, no da organização das empresas e, enfim, no da própria natureza da sociedade que se está a construir. Jorge Leite explica como ninguém que a inserção pelo trabalho –entenda-se a inserção justa, criativa, realizadora e qualificadora –é o principal mecanismo de inclusão de que uma sociedade dispõe. E sabe o que isto quer dizer em diferentes planos, do geral ao particular. E também sabe o que o pode ameaçar”, acrescentam.
Na conclusão do Caderno “Horas extraordinárias: por que está a lei a incentivar o trabalho suplementar?” é assinalado que o espírito legal de desincentivar o trabalho suplementar foi “alterado de diversas formas e em momentos distintos”.
Conforme lembram os autores, no âmbito das medidas adotadas em 2012 para “conseguir uma desvalorização interna do custo do trabalho para as empresas, cortou-se para metade as majorações de remuneração por trabalho suplementar e eliminou-se mesmo o período de descanso compensatório por trabalho suplementar (25% do tempo realizado)”.
“Estas medidas legais, apesar de outras que contribuíram para transformar o trabalho suplementar em trabalho executado em horário normal de trabalho (nomeadamente os regimes de adaptabilidade e do banco de horas ), afastaram o já pequeno obstáculo que as majorações representavam ao uso frequente do trabalho suplementar”, escrevem.
José Reis e Manuel Carvalho da Silva salientam que “a reforma legislativa de 2012 acentuou o desequilíbrio económico entre as partes, sendo que essa realidade é particularmente visível nas alterações referentes ao regime do tempo de trabalho que, além do mais, contribuem para uma clara subalternização da dimensão coletiva das relações de trabalho”.
Os investigadores apontam ainda que a limitação do direito à contratação coletiva, que se traduziu “na suspensão temporária de cláusulas de instrumentos de regulamentação coletiva ou na, pura e simples, eliminação de disposições constantes dessas convenções, não deixa de causar perplexidade e constitui uma medida que não deixa de ser preocupante num tempo em que a contratação coletiva deveria constituir a principal ferramenta para lidar com uma conjuntura – que se reconhece – difícil”.
José Reis e Manuel Carvalho da Silva referem ainda que “apenas o corte para metade das majorações representou uma transferência de rendimento dos trabalhadores para as empresas de cerca de 367 milhões de euros e, no período em análise (2011-2018), de 2.3 mil milhões de euros).
“Por outras palavras, além de reduzir o desincentivo à sua utilização, por via da diminuição das majorações legais, o novo quadro legal promove efetivamente o recurso a esta modalidade de trabalho, já que, no caso da 1a hora suplementar em dia útil, o custo efetivo é inferior ao preço da hora normal de trabalho”, concluem.
No documento é também sinalizado que, “só em 2018, a totalidade das horas extraordinárias não pagas - 49,4% do total trabalho suplementar realizado - somaram cerca de 820 milhões de euros. Desde o início do período em análise (desde 2011), ficaram por pagar - segundo os trabalhadores - mais de 6,6 mil milhões de euros”, sendo que, “caso se considere os valores pagos, mas subavaliados pela fórmula de cálculo, esse montante eleva-se a cerca de 8,1 mil milhões de euros em oito anos, tendo as empresas beneficiado ainda do corte das majorações ”.
José Reis e Manuel Carvalho da Silva frisam ainda que “a opção legal pelo incentivo ao trabalho suplementar tem, para lá do valor subtraído e dos efeitos macroeconómicos, uma outra consequência: o desacerto crescente entre a vida profissional e a vida familiar dos trabalhadores, o tempo de ócio e lazer, e, se aplicado de forma continuada, a degradação das condições de vida e da saúde quer individual quer da sociedade, entretanto cada vez mais envelhecida, também fruto da degradação das condições de trabalho”.