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A histeria "Antifa" de Donald Trump é absurda. Mas também é muito perigosa

Antifa ocupa no imaginário da direita o papel do Partido Comunista em meados do século XX. Enquanto alguns na direita associam antifa aos anarquistas, outros rotulam-los frequentemente de comunistas ou marxistas, destacando a continuidade com a “ameaça vermelha” do passado. Artigo de Chip Gibbons.
Foto Shealah Craighead/Casa Branca/Flickr

Durante quase duas décadas, o Governo dos Estados Unidos tem vindo a travar aquilo a que chama uma "guerra contra o terrorismo". Ao longo dos últimos dias, os Estados Unidos foram engolidos por uma onda de terror. Mas os perpetradores não são a "Al-Qaeda", o "ISIS" ou qualquer outro adversário estrangeiro - o terror vem das forças da ordem.

Depois de a polícia ter assassinado George Floyd, em pleno dia, a 25 de Maio -, o último de uma longa lista de assassinatos policiais de pessoas negras, de Philando Castile e Eric Garner a Tamir Rice e Breona Taylor - a polícia e a Guarda Nacional tiveram rédea solta, de formas brutais que apenas servem para confirmar os argumentos dos manifestantes sobre o quão fora de controlo estão essas polícias. Em Minneapolis, a Guarda Nacional disparou balas de borracha sobre os moradores que estavam nos seus alpendres, enquanto o Departamento de Segurança Pública tweetou sobre a preparação para a "guerra urbana". Imagens horríveis de agentes do Departamento de Polícia de Nova Iorque a conduzir os seus veículos por entre as multidões de manifestantes. Em Louisville, Kentucky, David McAtee, o proprietário de uma churrasqueira - que frequentemente fornecia refeições gratuitas às forças da ordem - foi baleado e morto pela polícia e a Guarda Nacional, que em seguida deixou o seu corpo na rua durante doze horas. Por todo o país, a polícia atacou manifestantes, jornalistas e transeuntes com uma série de armas, incluindo bastões, gás lacrimogéneo, balas de borracha e granadas de atordoamento.

Donald Trump e o seu Procurador-Geral, William Barr, decidiram ignorar esta verdadeira onda de violência policial, a raiz da raiva que percorre a nação, e, em vez disso, apostaram em teorias da conspiração que justificam os seus apelos à repressão - o mais absurdo de todos, mas também o mais perigoso, são os seus ataques fulminantes contra os “antifa".

Cuidado com a cabala sinistra do antifa

Na narrativa de Trump e Barr, os acontecimentos que se desenrolaram nas cidades de todo o país não são rebeliões ou revoltas com base na legítima raiva popular. Não são, como disse Martin Luther King, "a linguagem dos que não têm voz". Em vez disso, são cuidadosamente orquestrados, a violência é pré-planeada e levada a cabo por uma cabala tecida como parte de um plano sinistro.

Quando Barr se dirigiu à nação, no sábado, anunciou que "agitadores e radicais vindos de fora estão a explorar a situação". Segundo Barr, "em muitos lugares, parece que a violência é planeada, organizada e conduzida por grupos anarquistas e extremistas de esquerda, grupos extremistas de extrema-esquerda que utilizam táticas semelhantes às dos antifa". Barr advertiu então que a lei federal faz com que seja crime atravessar as fronteiras estaduais com a intenção de incitar a um motim e que o Departamento de Justiça estaria disposto a perseguir esses crimes.

Trump reiterou esses argumentos no Twitter. Afirmou falsamente que "80% dos DESORDEIROS em Minneapolis, ontem à noite, eram de FORA DO ESTADO”, referindo-se aparentemente a uma declaração sobre os estados de origem dos detidos, feita inicialmente pelo presidente da câmara de St Paul, mas que foi desmentida quase ao mesmo tempo. Trump também cavalgou a expressão "agitadores externos" que foi usada para deslegitimar o Movimento dos Direitos Civis e todos os outros movimentos de massas da história americana. Ele referiu-se a protestos geridos profissionalmente e lançou a culpa da violência a anarquistas de esquerda radical", “anarquistas dirigidos por ANTIFA" e "ANTIFA e a Esquerda Radical". 

Finalmente, a 31 de Maio, Trump tweetou ameaçadoramente: "Os Estados Unidos da América vão designar a ANTIFA como uma Organização Terrorista".

Aqui é preciso esclarecer alguns factos. Donald Trump podia tweetar que ia separar o Mar Vermelho, abolir a gravidade ou ressuscitar os mortos das suas sepulturas, e grande parte dos meios de comunicação social dos EUA dedicaria tempo a discutir o que tais ações significariam para a América como se fossem uma séria possibilidade. Mas não são.

O mesmo é válido neste caso. Enquanto o Secretário de Estado pode designar grupos como "organizações terroristas estrangeiras", a palavra-chave aqui é "estrangeiro". Quando a administração Obama foi confrontada com uma petição de reacionários para declarar o "Black Lives Matter" uma organização terrorista, respondeu dizendo que “não cabe à Casa Branca designar organizações terroristas internas. O governo dos EUA não pode criar uma lista de organizações terroristas domésticas".

Aqueles que à direita salivam ao pensar em detenções em massa de esquerdistas ficarão desapontados, pois o governo não pode declarar proscrita uma organização política interna. Mesmo durante a Guerra Fria, na era da “ameaça vermelha”, o Supremo Tribunal deixou claro que o governo não pode criminalizar a adesão a uma organização com objetivos lícitos e ilícitos, a menos que um indivíduo se associe a ela com a intenção específica de promover esses objetivos ilícitos.

No que diz respeito a organizações terroristas estrangeiras, o Supremo Tribunal defendeu uma definição extremamente ampla de apoio material que permite essencialmente ao governo criminalizar o discurso político. No entanto, o Tribunal declarou que a lei americana "não proíbe a defesa independente [de] ou a adesão" a uma organização desse tipo.

Acima de tudo, é importante estabelecer o que é e o que não é um antifa. Antifa é a abreviatura de anti-fascismo. Não se refere a nenhuma organização, mas a uma ideologia ampla (oposição ao fascismo). Claro que não se pode declarar uma ideologia ampla ou uma afinidade política como "organização terrorista" - "antifa" pode ser tão proibido como o "feminismo" ou o ”neoliberalismo".

Quando Donald Trump ou comentadores de direita invocam o Antifa, não estão a referir-se a uma filosofia política existente. Estão a invocar uma teoria da conspiração de extrema-direita. Na mente de alguns, antifa não é apenas uma organização política; é a mão oculta que estaria por detrás de toda uma série de supostas más condutas.

Neste sentido, antifa ocupa no imaginário da direita o papel do Partido Comunista em meados do século XX. Enquanto alguns na direita associam antifa aos anarquistas, outros rotulam-los frequentemente de comunistas ou marxistas, destacando a continuidade com a “ameaça vermelha” do passado. A Direita não faz grande distinção entre as diferentes tendências de esquerda, vendo-as a todas como um inimigo uniforme.

Além de agitar “Ameaças Vermelhas", a fixação da direita com o antifa é a extensão de outra teoria da conspiração: o mito de manifestantes pagos e desordeiros profissionais. Estas reivindicações foram frequentemente papagueadas durante os protestos de "Occupy" e "Black Lives Matter", mas agora escalaram dramaticamente com o presidente, alguns representantes eleitos para cargos importantes e a parte menos marginal dos meios de comunicação de direita, todos repetindo agora este mito e muitas vezes sobrepondo-as a teorias de conspiração anti-semitas relacionadas com George Soros.

Os protestos em todo o país são manifestações de indignação perante a continuação dos assassinatos policiais de pessoas negras desarmadas. Ao enfrentar os protestos com violência, a polícia está a optar por uma escalada. Nada disso funciona para as narrativas que Trump deseja lançar, por isso explora os medos direita agitando um vilão sombrio de esquerda.

As forças da ordem vão ouvir a mensagem

Ainda assim, mesmo na ausência de poderes efetivos para declarar o antifa como grupo terrorista doméstico, as declarações de Trump são arrepiantes. Pode não existir uma lista formal de organizações terroristas domésticas, mas o FBI tem investigado repetidamente ativistas e organizações não-violentas, usando as suas autoridades anti-terroristas. E neste momento, as diretrizes do FBI permitem-lhe abrir investigações usando técnicas extremamente intrusivas sem qualquer fundamento que sugira o envolvimento do alvo em atividades criminosas ou que ameacem a segurança nacional.

Na verdade, sabemos que o FBI já está a tratar do caso. Em Novembro de 2017, o diretor do FBI, Christopher Wray, disse ao Congresso que, embora o antifa não seja uma organização, estão em curso investigações  a "extremistas anarquistas", examinando pessoas "motivadas pela ideologia antifa". (Em setembro de 2017, apresentei um pedido a FOIA solicitando ao FBI todos os ficheiros relativos ao antifa. Ainda não recebi os ficheiros solicitados).

A polícia local também receberá a mensagem de que antifa é sinónimo de terrorismo doméstico, com impacto na forma como policiam a organização anti-racista, anti-polícia brutal ou qualquer manifestação de esquerda que considerem relacionada com "antifa".

Para além das questões de legalidade, rotular o antifa como uma organização terrorista no discurso público abre caminho a propostas muito mais repressivas. Em resposta ao tweet de Trump, vimos não só comentadores de direita, mas também membros do Congresso discutirem actos tão extremos como o envio de militares contra os antifa ou a detenção de membros antifa no campo de prisioneiros militares dos EUA na Baía de Guantanamo, em Cuba.

Trump invocou ontem o antifa no seu discurso arrepiante e fascista em que se comprometeu em usar os militares, a nível interno, contra os protestos, classificando antifa como um dos "principais instigadores desta violência".

Sabe-se também que a polícia local está impregnada de teorias da conspiração de direita. O presidente do Sindicato da polícia de Minneapolis, Bob Kroll, que lidera atualmente a acusação de que os assassinos de Floyd foram afastados sem o devido processo, no passado fez lóbi a favor de legislação anti-manifestações. Questionado sobre isso pelo "In These Times", afirmou que "George Soros... Ele é um grande financiador de coisas como essas".

E as “Ameaças Vermelhas“ nunca são inofensivas. Durante o pós-II Guerra Mundial, o FBI criou uma "Divisão Radical" (mais tarde denominada Divisão de Informações Gerais). Liderada por J. Edgar Hoover, compilaram dossiês sobre radicais e usaram-nos para prender dez mil pessoas durante os ataques de Palmer. Como chefe do FBI, Hoover continuou a sua prática, criando o Índice de Segurança, uma lista de subversivosa serem detidos sem direito a julgamento, em caso de emergência. No seu auge, este Índice continha 26.174 nomes. Para além das listas do FBI, durante a Guerra Fria, o Procurador-Geral criou uma lista de "organizações subversivas". Muitas das ações repressivas que estão a ser fantasiadas neste momento em relação ao antifa faziam mesmo parte do estado securitário durante a Guerra Fria.

Trump pode não conseguirproibir oficialmente o antifa, mas com a sua retórica bombástica, está a dar luz verde a mais repressão. A aplicação da lei e os legisladores vão ler isto como apoios aos seus próprios ataques à dissidência. E o facto de o Presidente rotular uma determinada ideologia como "terrorismo" terá efeitos arrepiantes, independentemente dos meandros da jurisprudência da Primeira Alteração. Muitas pessoas que ouvem esta retórica perguntar-se-ão se o envolvimento em ativismo as sujeitará a represálias estatais.

Ironicamente, muitos dos que propagam as teorias da conspiração da Direita sobre antifa também têm estado a armazenar armas, ao mesmo tempo que alertam para os campos de morte da FEMA, a lei marcial e as erosões da liberdade constitucional. Mas, como vimos nos anteriores protestos de "Black Lives Matter" e estamos a ver agora novamente, muitos desses indivíduos estão do lado da polícia militarizada que esmaga os protestos. Usando uma lógica conspiracionista contorcida, é a polícia e agora os militares que estão a impedir a tirania, e as suas vítimas são na verdade os instigadores da lei marcial.

Isto está errado. A culpa dos acontecimentos que se estão a desenrolar em todo o país é dos responsáveis pela aplicação da lei. A violência policial continuada, especialmente a violência policial racista, tem produzido raiva massiva. Quando as pessoas se juntam às manifestações contra esta violência, a polícia tenta provocá-las e agravar as tensões, atacando os protestos.

Não surpreende que Trump e outros na extrema-direita ignorem isto. Estão a virar-se para uma velha teoria de conspiração da direita, que encontra forças alheias, exteriores, como a verdadeira causa de todo o descontentamento social.

Trump está a tentar usar o espectro do antifa para reprimir a dissidência. Ele está a fazer bluff, em grande medida, e não podemos deixar que nos afaste das ruas. Mas o clima político perigoso que ele está a tentar criar não pode ser ignorado.


Artigo publicado no site da revista Jacobin. Traduzido por António José André para o esquerda.net.

Chip Gibbons é jornalista e escreve para "In These Times" e "Nation".  

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