Francisco Fanhais, companheiro de cantigas e de luta de Zeca Afonso, com quem partilhou o exílio em Paris, tem muito orgulho de ter sido um dos quatro músicos que gravou “Grândola, Vila Morena”, dois anos e meio antes de a música ter sido foi escolhida pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) para ser a segunda senha de sinalização da Revolução dos Cravos.
Em 1998, a editora Strauss reeditou, o disco de Francisco Fanhais Canções da Cidade Nova com nova capa e designação - a dedicatória de José Afonso, que no álbum original se encontrava na contracapa:
"Tu que cantas
Defronte
De faces atentas
e seguras
Faz do teu canto
Uma funda
Nesse lugar
Entre outras mãos mais fortes
e mais duras
Te estenderei
a Minha mão fraterna.
Canta amigo!"
Quando se deu o primeiro contacto com a música de Zeca Afonso?
O meu primeiro contacto com a música do Zeca foi em 1963. Estava no seminário, ainda não tinha acabado o curso, e um dia veio um professor ter comigo, bateu à porta do meu quarto, e disse-me: “Ouve este disco, de que vais gostar de certeza”. O disco que me apresentou era um EP, um vinil pequenino, que tinha quatro músicas. Num dos lados, “Os vampiros” e, no outro, o “Menino do bairro negro”. Ele, que era, como se dizia na altura, um bocado do “reviralho”, aconselhou-me a ouvir o disco baixinho. Ouvi-o no gira discos no meu quarto, baixinho. Esse foi o meu primeiro contacto com a música do Zeca. Foi uma impressão fortíssima o que aquela música, aquela voz, aquele poema, aquele conjunto todo provocou em mim. Eu estava num contexto extremamente fechado - ainda que menos fechado do que noutros seminários do país -, religioso, dava mais atenção às asas dos anjinhos do que propriamente a alguma coisa agarrada à terra, a preocupações sociais, até a denúncia das injustiças que existiam no nosso país. Portanto, aquilo foi um choque muito forte, foi um murro no estômago muito grande ter ouvido a música do Zeca.
E qual foi o dia em que conheceste o Zeca pessoalmente?
Em dezembro de 1968, um padre amigo que estava num colégio em Torres Novas organizou um sarau musical nas Grutas de Lapas. Como sabia que eu cantava, convidou-me e disse-me que tinha convidado também o José Afonso. Aí foi o primeiro contacto pessoal com o José Afonso, uma coisa bastante cerimoniosa de parte a parte. Ele era o “Dr. José Afonso” e eu era o “Padre Fanhais”. Sei a data certa desse encontro por causa do relatório da PIDE. Nesse sarau estava o então presidente da Câmara de Torres Novas, estavam, inclusive, pessoas ligadas à União Nacional, mas o pide não foi autorizado a entrar. Mais tarde, achando-se na obrigação de se justificar perante os seus superiores, fez um relatório onde diz que, “depois da recolha de várias informações, só agora me é possível fazer o relato do que se lá passou na noite de 28 de dezembro”. Fiquei a saber, pela PIDE, que o dia exato em que conheci o José Afonso foi o dia 28 de dezembro. Depois disso, quando já estava no Barreiro, umas pessoas amigas, que pertenciam à secção cultural da Companhia Nacional de Eletricidade, bateram-me à porta e perguntaram-me se queria ir a Setúbal, onde iam encontrar-se com o José Afonso para convidá-lo para uma iniciativa cultural que estavam a organizar. Aí sim, tivemos uma conversa mais longa, o Zeca tinha acabado de vir de uma cura de sono e estava ainda meio estremunhado. Foi uma conversa descontraída à volta de uma mesa sobre a situação do país, sobre a guerra colonial, e sobre o que era preciso fazer. A partir desse momento cantámos várias vezes juntos, porque existiam inúmeras iniciativas culturais no Barreiro, onde estive três anos. As coletividades da margem sul convidavam frequentemente o Zeca Afonso, porque já o conheciam há muitos anos, e a mim porque sabiam que eu cantava.
Mais tarde, foi o Zeca que intermediou a tua participação no ZIP ZIP
Sim, em 69. Ele disse-me que o facto de um padre cantar as canções que eu cantava, e tomar as posições que eu tomava, podia ser interessante e uma novidade, algo que despertaria a curiosidade e o interesse dos organizadores do programa. Resisti um bocado mas ele insistiu e acabei por aceitar. Fomos ao Villaret numa quarta-feira para falar com o Solnado, fomos ter com ele ao camarim e o José Afonso disse-lhe: “Está aqui este amigo que é padre e que canta”. O Solnado apontou para o meu pescoço e questionou porque é que eu não tinha o chamado “cabeção”. Expliquei-lhe que nem todos os padres o usavam, já estávamos depois do Vaticano II. O Solnado chamou entretanto o Fialho Gouveia e pediu-lhe para ligar as luzes do palco e para ouvir o que o “Padre Fanhais” tinha para cantar, já que ele vinha recomendado pelo “Dr. José Afonso”. Quando voltámos ao camarim do Solnado, o Fialho Gouveia só dizia: “O padre tem que passar no próximo programa”. Estávamos numa quarta-feira e o próximo programa era no sábado. O Solnado respondeu que não podia ser, que o alinhamento já estava todo feito, e, portanto, não podia ser alterado. Mas o Fialho Gouveia insistiu várias vezes, e assim foi: “o padre” passou mesmo nessa semana. Cantei quatro temas. Lembro-me de dois: Cantilena [Poema de Sebastião da Gama] e Juventude [Poema de João Apolinário]. A curiosidade era saber depois o que é que apareceria na televisão, porque o programa era depois editado, trabalhado durante o fim-de-semana, e só na segunda-feira passava na televisão. Passaram duas músicas. A pequena conversa em entrevista com o José Fialho Gouveia foi quase toda cortada e as palavras que eu disse antes de cada música também foram muito censuradas. Fui ter com eles e referi que estava espantado como é que, tendo cantado e dito tanta coisa, só passou aquilo. Os organizadores responderam-me que eu não tinha ideia do trabalho que tiveram para conseguirem passar o que passaram. A censura queria apagar tudo, mas eles impuseram-se, como já tinham feito para outras pessoas que já lá tinham ido, e disseram que se “o padre” não passasse o programa acabava.
Mas foi o Zeca que me levou lá. Ele não podia ir ao Zip Zip, porque a censura nunca o iria permitir. Mas o Zeca fez questão que eu fosse, e isso é sinal da sua amizade e do seu desprendimento, e também da importância que dava a que fossemos cada vez mais a denunciar publicamente a situação que vivíamos em Portugal. Em primeiro lugar, a guerra colonial, e depois a censura, o fascismo, a ditadura, a repressão, as estruturas da PIDE, etc, etc... Quantos mais fossemos a denunciar a situação e a engrossar o número dos que resistiam e que espalhavam essa sede de revolta, melhor. Foi por isso que ele insistiu tanto que eu fosse ao Zip Zip. A partir daí foi um nunca mais parar de cantar um pouco por todo o lado.
Consegues destacar algumas experiências com o Zeca que tenham sido mais marcantes?
O espetáculo na Baixa da Banheira. O ginásio da Baixa da Banheira ainda estava em construção mas já era possível estar lá dentro. O chão ainda estava em cimento e ainda não tinha cadeiras, mas o sítio estava apinhado de gente. Ainda há pouco tempo estava a falar com o Armando Caldas e ele lembrou-me desse espetáculo. Não cabia lá sequer um alfinete. Estava tudo aos berros, toda a gente a cantar “Os vampiros”. Esse foi um espetáculo magnífico. Lembro-me de outro na Faculdade de Agronomia, na Ajuda. Foi um espetáculo à noite, num anfiteatro ao ar livre, durante a crise académica, creio que no verão de 69. Estava também tudo ao rubro. Lembro-me de ter cantado aquele poema do Geraldo Vandré “Vem, vamos embora, que esperar não é saber”. Foram momentos muito fortes. Às vezes, eu e o Zeca íamos cantar e a polícia não deixava, as iniciativas eram proibidas. Lembro-me, no Coliseu, na distribuição de prémios da Casa da Imprensa, março de 71, onde uma série de amigos só puderam cantar só puderam cantar o que a censura deixou. Lembro-me do Zeca, do José Jorge Letria, do Manuel Freire... Eu fui uma das pessoas impedidas de cantar e todos foram muito solidários comigo porque falaram de mim durante as suas atuações.
Fizeste-me lembrar aquele épico espetáculo em que foste proibido de cantar e o público cantou por ti. Tu anunciavas o título da música e o público cantava...
Sim, foi no Entroncamento. O resultado disso foi muito superior ao que teria sido se eu tivesse podido cantar. Lembro-me do sargento da guarda encavacadíssimo ao lado. Eu disse às pessoas que se abrisse a boca para cantar era preso, mas que elas não estavam proibidas de o fazer. Eu dizia: “Se eu cantasse agora cantava uma coisa que diz 'Vemos, ouvimos e lemos'. Conhecem, sabem qual é?”. E começava tudo a cantar aos berros. O homem, coitado, não sabia onde é que se havia de meter. O sargento da guarda ficou pior que estragado.
Devem-se ter arrependido mil vezes de te proibir de cantar...
Sim, sem dúvida. Existiram vários episódios, tanto aqui como lá fora.
Falando em lá fora, foste para França com o Zeca em abril de 71...
Bem, eu estava numa situação complicada, porque tinha três grandes proibições à minha frente. Desde que fui ao Zip Zip, passei a integrar o grupo, o comboio dos cantores. Na primeira carruagem ia o Zeca e o Adriano, e depois todos os outros vinham nas carruagens seguintes. Mas todos juntos no mesmo comboio. Ou seja, às tantas, estávamos todos proibidos de cantar. Além disso, era coadjutor do Barreiro e dava aulas de religião e moral. Depois, com a denúncia da guerra colonial, com o facto de integrar um grupo de cristãos e padres que se incompatibilizaram com a Igreja pelo facto de a hierarquia eclesiástica nunca ter tomado uma posição firme contra a guerra colonial - quando em público denunciávamos a injustiça da guerra colonial e a cobardia e o silêncio da Igreja – fiquei suspenso das minhas funções de padre. Ao mesmo tempo, fiquei impedido de dar aulas de religião e moral no Barreiro, porque, apesar de dependermos do ministério, só podíamos ser professores de moral com o aval do bispo da diocese respetiva. Nas aulas que eu dava, falávamos de tudo, e até de religião. Cheguei ao fim do ano letivo de 69/70 e estava suspenso das minhas funções de padre, não podia cantar e não podia dar aulas. Estive um período sem saber muito bem o que havia de fazer. Entretanto, escrevi a um padre amigo que estava em Estrasburgo, que já morreu há três ou quatro anos, o Jorge, dizendo-lhe da minha situação e perguntando-lhe se me arranjava qualquer coisa lá, para poder sobreviver. Não me respondeu. Anos mais tarde, já depois do 25 de Abril, quando fui à Torre do Tombo consultar o meu processo, encontrei a carta, que afinal tinha sido apanhada pela PIDE. Tinha pensado mal deste amigo que não respondeu e, afinal, alguém se meteu entre nós. Ainda colaborei na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos.
Lembro-me de um episódio do qual nunca me esquecerei. Fomos visitar uma senhora que vivia numa barraca ao pé da Costa da Caparica – quando canto “Menino do bairro negro”, vem-me sempre à memória este episódio – que tinha o marido preso em Peniche. O trabalho dela era coser camisas em casa para uma fábrica que havia ali perto. Trazia as peças soltas da fábrica e passava a noite inteira a coser com um candeeiro de petróleo ao lado da máquina de pedais. Tinha dois filhos. Uma miúda que andava na quarta classe e um miúdo mais pequeno. Levámos uns brinquedos e perguntámos se a miúda que estava na quarta classe ia continuar os estudos. Respondeu-nos que não tinha condições de pôr a filha a estudar, já que aquilo que ganhava mal dava para visitar o marido a Peniche, para pagar a renda da barraca, a alimentação, os transportes, etc, e que a filha assim que acabasse a quarta classe iria trabalhar com ela. Os filhos estavam a brincar em cima da cama e nós pensávamos que estavam distraídos, mas o que é certo é que a miúda não estava nada distraída e, quando ouviu a mãe dizer que não tinha condições de a pôr a estudar, deu um berro: “Mas eu sou inteligente!”. Ainda ouço isto hoje: “Mas eu sou inteligente!”. Fazendo a ligação com a atualidade, há pouco tempo estava num grupo de amigos onde estava um pessoa que trabalha nos serviços sociais de uma universidade e que falava sobre a quantidade de estudantes que têm de desistir dos estudos porque os pais não têm condições para os manter lá.
Bem, fechando este parêntesis, em abril de 71, o Zeca disse-me que ia a França e eu pensei “é agora!”. Pedi-lhe para me levar. Fomos de carro eu, ele e a Zélia. Parámos no sul de Espanha, onde ele ia cantar, e onde conheci o Paco Ibáñez. Depois o Zeca e a Zélia deixaram-me em Lyon e seguiram para Paris. Suponho que iam ter com o Zé Mário, para preparar já o “Cantigas de Maio”, que foi gravado mais tarde.
Qual era o sentimento na altura? Pensavas voltar brevemente?
A ideia era respirar por uns tempos. Era mudar de ares, sair daqui para não morrer asfixiado. Quando cheguei, liguei ao Zé Mário e disse-lhe: “estou cá, conta comigo para o que for preciso. Estou aqui para fazer o que não posso fazer em Portugal”.
Participaste em Paris na gravação das “Cantigas de Maio”
O Zé Mário e o Zeca prepararam as coisas para a gravação das “Cantigas de Maio”. Foi em outubro e novembro de 71. Como eu lá estava, o Zé Mário disse-me para dar uma ajuda na gravação, o que me daria alguns trocados para me ajudar a sobreviver por lá. Estivemos quinze dias no estúdio, que ficava a cerca de 30 quilómetros de Paris. Cantei sobretudo em duas músicas, na “Grândola” e no “Coro da Primavera”.
O som da marcha na “Grândola” foi feita pelos quatro de madrugada...
Sim. Quando surgiu a altura de gravar a Grândola não havia acompanhamento musical nenhum. Era uma moda que o Zeca fez em homenagem à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, onde tinha estado em 17 de maio de 1964. Lembro-me da data porque é o dia dos meus anos, mais tarde achei graça à coincidência. O Zeca foi lá e gostou muito do que lá viveu, esteve lá com o Carlos Paredes – quem conta muito isto é o Hélder Costa, que também estava em Grândola, nessa altura, nesta sociedade. Como aquilo era uma moda feita ao estilo das modas alentejanas, o Zé Mário disse que podíamos fazer uma encenação musical como se fossemos um grupo coral alentejano aí pelas ruas. Só que o chão do estúdio era em soalho liso que não dava para fazer aquele efeito. Então o Zé Mário encontrou no exterior um sítio onde havia gravilha. O inconveniente é que ao lado passava uma estrada, e, se fosse durante o dia, o barulho dos carros daria cabo da gravação. A única solução foi gravar de madrugada. Andávamos os quatro de braços dados, como se fossemos cantadores de um grupo de coral alentejano, a arrastar os pés na gravilha numa noite de frio e nevoeiro. Nesse mesmo dia ao fim da tarde, fomos para o estúdio e, com os auscultadores, ouvimos os passos gravados durante a madrugada e foi sobre esses passos que estávamos a ouvir que o Zeca começou a cantar a “Grândola, Vila Morena”. Claro que nenhum de nós sabia qual seria a aplicação da canção dois anos e meio depois. É algo de que me orgulho imenso. Não tenho mérito nenhum nisso, obviamente, tratou-se de uma coincidência, mas tenho muito orgulho de ter sido um dos quatro que gravou a “Grândola” - eu, o Zé Mário, o Zeca e o Carlos Correia, também conhecido por “Bóris”, que era quem na altura acompanhava o Zeca à viola. Acompanhar a gravação integral foi uma experiência muito forte.
Quando é que regressas a Portugal?
Vim cá uma vez ou duas, nomeadamente após a morte da mulher do Nuno Teotónio Pereira. Entretanto, voltei no dia 30 de abril de 1974, quando soube que as fronteiras estavam abertas. Na manhã do dia 25 de Abril, telefonou-me um amigo que me disse que em Portugal havia uma revolução, estava tudo virado do avesso. Ainda não se sabia bem ainda o que tinha acontecido, se era uma viragem à direita ou à esquerda. Mas as músicas que se ouviam na rádio eram do Zé Mário, do Zeca, do Adriano. Era um bom sinal! Nenhum fascista escolheria como sinal da sua revolução músicas de cantores proibidos. Quando as fronteiras abriram meti-me no comboio, a 29 de abril, e cheguei a 30. Quando chegámos a Vilar Formoso não havia ninguém na estação. Eram 6 ou 7 da manhã e só havia um tipo, que vim a descobrir que era um cabo, de metralhadora em punho a andar de um lado para o outro no cais. Abrimos logo a janela para respirar o ar puro do Portugal novo e um amigo que vinha comigo no comboio decidiu meter-se com o cabo. Disse-lhe baixinho: “Então ó nosso cabo, diga-me lá onde é que estão os pides? Onde é que estão os pides?”. O cabo parou e disse em voz alta: “Ó amigo, fale alto que isto agora é um país livre!”. Pensei: “Isto começa bem!” Foi o primeiro flash do Portugal Novo.
A partir daí, tornei a encontrar-me com o Zeca, obviamente. O PREC estava no início, as ocupações, as comissões de trabalhadores, as comissões de moradores, as cooperativas. O poder popular estava na hora do dia e o Zeca e eu, e outros amigos, dávamos o nosso contributo.
Foram para Trás-os-Montes nas campanhas de dinamização cultural do Movimento das Forças Armadas. Como foi essa experiência?
O Zeca um dia telefonou-me e disse que se ia oferecer à V Divisão, que era na Rua Castilho, para as campanhas de dinamização. Perguntou-me se eu queria ir e acabámos por ir os dois apresentar-nos e oferecer o nosso contributo para o que fosse preciso. Fomos para Bragança. Entretanto, juntou-se a nós o Luís Filipe Rocha. Ficámos numa camarata que estava vazia, com cerca de 30 camas. Falámos com as populações, para perceber um pouco como as coisas se processavam a nível popular, as desconfianças, o receio que existiam. Assistimos ao desfile de uma banda que tinha sido recuperada. Fomos às minas da Ribeira, falar com a população de lá, recolhemos elementos, ouvimos relatos de pessoas que tinham sido perseguidas pela PIDE. O Zeca ia tomando notas e depois, de regresso a casa, fez um relato em poesia “Em terra de Trás-os-Montes” que deu origem à música com esse mesmo nome. Lembro-me da alegria que as pessoas sentiram quando lá voltámos e o Zeca cantou a música. Ficaram espantadíssimas porque o que o Zeca cantava era o que nos tinham contado. É uma memória muito forte que eu guardo.
Voltaram a cruzar-se depois disso em palco e fora dos palcos?
Nunca mais deixámos de nos cruzar. Tanto aqui como em França. Íamos muitas vezes lá fora: a França, à Holanda, à Alemanha, a Itália, a Espanha não tanto, porque ainda não tinha acontecido a reviravolta lá. O Zeca ia na altura com quem estava mais disponível. Eu deixei de ir a partir de 84, quando fui para Alvito. Aí, deixei de ter tanta disponibilidade para o acompanhar. Mas até 84 sempre que eu estava disponível e o Zeca estava interessado nisso, porque eu também não forçava coisa nenhuma, acompanhava-o. Às vezes ia outro, ia o Júlio Pereira, o Vitorino... Fomos muitas vezes lá fora. Em janeiro de 76, fizemos um espetáculo na universidade de Hamburgo com o Jose Luis Iglesias, que também acompanhava muito o Zeca nestas situações. Desse espetáculo resultou o LP “José Afonso in Hamburg”, editado em 1982. As coisas corriam sempre bastante bem. Eram tournées organizadas por amigos que ainda mantenho. Mas, às vezes, apanhávamos deceções bastante grandes. Uma vez estávamos em França e o Zeca estava a falar com todo o entusiasmo sobre a revolução portuguesa, sobre tudo o que se tinha passado, sobre o benefício que isso poderia significar para os emigrantes e, às tantas, estava um indivíduo encostado a uma coluna, com um ar meio enfastiado, diz “Eh pá, canta um fado!”.
O Zeca como cantor, amigo, ativista... Que características destacas na personalidade do Zeca?
O desprendimento completo dele, a ausência absoluta de vedetismo, uma solidariedade muito grande, uma enorme coerência entre aquilo que anunciava e a forma como o exercia na prática. Era um utópico, mas um utópico ativo, não se limitava a enunciar as coisas, mas participava – em comissões de trabalhadores, apoio às lutas, cooperativas… Dava o seu contributo e o seu empenho, cantando, muitas vezes, nas piores condições, porque não existiam recursos técnicos suficientes para podermos cantar com menos desgaste físico. Valia tudo, e o Zeca estava sempre presente. Essa solidariedade dele era algo muito forte. E depois uma criatividade enorme. Aquele génio musical do Zeca, que escrevia coisas lindas e cantava e inventava músicas lindas sem saber uma nota de música. Ele dizia muitas vezes: “Eu pego na viola e as únicas posições que sei é primeira, segunda e marcha à ré”. Com aquela ausência de conhecimentos técnicos musicais académicos, digamos assim, tinha aquela criatividade espantosa fruto das muitas vivências que ele teve em todo o lado. Ele assimilava, era uma espécie de esponja que absorvia muitas influências, seja de música clássica, seja de música religiosa.
E influências africanas...
Claro! Fortíssimas influências africanas.
Paulo Esperança, vice-presidente da AJA, disse recentemente que o Zeca foi um “pai da world music”
Chegamos a pensar que se este homem tivesse nascido nos Estados Unidos, o que para nós era uma infelicidade muito grande, tinha sido um dos expoentes máximos da world music em todo o mundo. Era um génio. E tinha uma preocupação muito grande em não se repetir. Trauteava-nos frequentemente as músicas que estava a compor, para vermos se se assemelhavam a algo que já existia. Era de uma grande exigência do ponto de vista criativo. E depois não se limitou a criar e a ser aquele génio musical e poético que toda a gente reconhece. Do ponto de vista humano, era um homem franciscano, desprendido, simples. Ainda por cima cheio de humor. Ria a bandeiras despregadas quando contavam uma anedota que tinha mesmo graça. Era despistado, andava sempre com o saco dos remédios e esquecia-se das coisas. E teve na sua vida fases muito complicadas. O Pato conta muitas histórias dele, de como chegava a uma estação de comboio, tirava as moedas dos bolsos e perguntava até onde dava aquele dinheiro. Depois fazia a viagem, saía na estação e voltava para trás. Amigo, solidário, anti vedeta. Não é porque fosse uma vedeta e não quisesse ser uma vedeta. As coisas saíam-lhe espontaneamente. Estava sempre preocupado com os amigos e era bem disposto. Uma vez, antes do 25 de Abril, íamos ver a Zélia que estava em Santa Maria. À entrada do hospital estavam umas mulheres com umas bancas enormes a vender laranjas. O Zeca vira-se para mim e diz: “Com este sol tão lindo, com estas laranjas, quem é que pensa em revoluções?”. [Risos] Porque a revolução estava sempre nas nossas preocupações.
Há uma outra dimensão que pouca gente refere. Era um homem com preocupações metafísicas. A sua tese, inclusive, foi sobre Jean-Paul Sartre: “Implicações substancialistas na filosofia sartriana”. Era alguém que pensava para além dos acontecimentos e que refletia. Um dia disse-me: “Sanfras”, que era como me tratava, “se os meus amigos marxistas soubessem que eu leio São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila, Santo Agostinho, o que iriam pensar de mim?”. Há uma reflexão pessoal que faço, nunca cheguei a falar com ele sobre isto, sobre uma das razões pelas quais ele era amigo de padres. O Zeca teve uma educação religiosa o mais tradicional e o mais traumática possível. Imagino que, a certa altura no seu percurso de vida, encontrando padres que vinham da linha do Concílio Vaticano II e que denunciavam a opressão, o fascismo e a guerra colonial, sentiu-se próximo dessas pessoas. Porque sentiu que, se calhar, viviam um cristianismo oposto àquele que ele tinha vivido e que lhe tinham incutido. E, inteligente como era, compreendeu as nossas razões, que eram, por um lado, denunciar a hipocrisia da Igreja, e, por outro, denunciar a cumplicidade perfeita entre a Igreja e o Estado. Porque a Igreja era o mais forte apoio moral da ditadura. Portanto, encontrar pessoas vindas da igreja que se empenhavam nesta denúncia era estimulante. Lembro-me que o então prior de Palmela, o António Correia, que ainda é um grande amigo meu, deu a chave da sua casa paroquial ao José Afonso para este a utilizar, e ele ia lá principalmente nos momentos em que corria o risco de ser preso. O Zeca tinha muito em consideração quem queria viver num cristianismo a sério. Eu sentia que ele tinha preocupações de ordem espiritual, no sentido mais amplo da aceção da palavra, e que tinha admiração por aqueles que dentro da Igreja lutavam pela sua transformação.
O Zeca faz falta?
Se faz falta? Faz. A memória que temos dele é uma memória que nos enche de saudade, mas se há alguma mensagem que ele hoje nos pode transmitir é que não podemos estacionar na memória nem na saudade. Não podemos parar assim. E cada vez que nos lembramos de que ele já não está connosco, quando chegamos a 23 de fevereiro e sabemos que foi nesse dia que ele morreu, é como se chegássemos a um apeadeiro, a uma estação. É sempre um ponto de chegada, mas é também sempre um ponto de partida. Porque a vida não pára e aqueles para quem ele diz alguma coisa, e somos muitos, felizmente, não desanimam, não páram, não desistem, e fazemos da saudade e da memória uma arma.
Francisco Fanhais lembrou as palavras do Zeca, no Coliseu, antes de cantar “Utopia”, a 29 de janeiro de 1983:
Utopia
“Esta canção é um pouco aquilo que eu imaginei que pudesse ser uma sociedade sem oprimidos nem opressores.
Eu creio que essa utopia pode efectivamente concretizar-se”.
* Francisco Fanhais - músico e presidente da direção da associação José Afonso
Entrevista concedida ao Esquerda.net a 16 de fevereiro de 2017.