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EUA: Recorde de gastos na campanha, sobretudo doações de super-ricos

11 mil milhões de dólares terão sido gastos nas eleições norte-americanas de 2020. Mas o problema não é apenas a quantidade de dinheiro. É de onde ele vem, defende Richard Briffault.
Os dois principais partidos dos EUA estão dependentes do dinheiro dos grandes capitalistas do seu país. Ilustração de  Butter My Parsnips/Flickr.
Os dois principais partidos dos EUA estão dependentes do dinheiro dos grandes capitalistas do seu país. Ilustração de Butter My Parsnips/Flickr.

Os gastos totais para as eleições federais de 2020 devem alcançar o novo recorde de quase 11 mil milhões de dólares até novembro. Ajustando este valor à inflação, é quase 50% mais elevado do que os gastos das eleições de 2016. As despesas das campanhas eleitorais federais deste ano – para a presidência, para o Senado e para a Câmara dos Representantes – está a caminho de ser o dobro do que foi em 2008.

O aumento das despesas de campanha é impressionante. Mas a minha investigação sobre regulação de financiamentos de campanha sugere que o volume dos gastos eleitorais não é o principal problema do sistema de financiamento das campanhas dos EUA. O verdadeiro desafio para a democracia americana é de onde o dinheiro vem.

Campanhas sem financiamento público

As campanhas para as eleições federais americanas são totalmente financiadas por dinheiro privado; a maior parte proveniente de doadores individuais ricos, comités da ação política e outras organizações interessadas. Candidatos ricos também financiam as suas próprias campanhas.

Os EUA têm um programa de financiamento público para as eleições presidenciais, estabelecido em 1974. Durante duas décadas desempenhou um papel importante nas campanhas. Mas atribuía aos candidatos fundos limitados e impunha limites de gastos muito baixos. Como as necessidades e custos das campanhas contemporâneas cresceram, o sistema entrou em colapso. Apesar de ainda estar disponível, nenhum dos candidatos mais importantes recorreu a fundos públicos nas últimas três eleições presidenciais.

Quando Joe Biden concorreu à nomeação democrata em 1988, e outra vez em 2008, aceitou fundos público, que foram 22% e 14%, respetivamente, dos seus fundos de campanha. Este ano, até 31 de agosto, todos os 531 milhões de dólares que financiam a campanha de Joe Biden vieram de fundos privados, de acordo com a Open Secrets, uma base de dados disponível publicamente que analisa os dados financeiros das campanhas. Tal como os 478 milhões que financiam, até ao momento, a corrida para a reeleição do presidente Donald Trump.

O milésimo do 1%

Os dólares privados que alimentam as eleições nos EUA vêm principalmente de uma minúscula fração da sociedade. Os críticos da desigualdade norte-americana falam frequentemente no “1%” - mas para as finanças de campanha é o 0.0001% que conta.

A lei federal requer que campanhas, PACs e grupos externos às campanhas reportem as identidades de doadores de pelo menos 200 dólares.

Os arquivos de setembro dos financiamentos de campanha – que cobre contribuições efetuadas até ao final de agosto – indica que 2,8 milhões de pessoas, ou seja 0,86% da população dos EUA, tinha contribuído com 200 ou mais dólares para uma das eleições federais deste ano. Contudo, coletivamente, estes relativamente altos contribuintes forneceram quase 74% de todos os fundos de campanha. São quase cinco mil milhões dados por uma pequena fração dos americanos. Um número ainda menor – 44.000 pessoas, ou seja cerca de um centésimo dos 1% dos 328 milhões de pessoas dos Estados Unidos – deram até ao momento 10.000 dólares ou mais cada uma para estas eleições, somando quase, 2,3 mil milhões. E 2.635 pessoas ou casais – menos de um milésimo da população dos EUA – deram 1,4 mil milhões, aproximadamente um quinto do total de contribuições reportadas até ao final do Verão.

Estes números refletem apenas as contribuições publicamente reportadas. O aumento dos grupos de dinheiro obscuro – que gastam dinheiro para influenciar os resultados eleitorais mas não têm de declarar as suas doações porque se declaram não-eleitorais – sugere que mais dinheiro estará a ser gasto por uma pequena elite de doadores.

A classe dos doadores

A classe doadora americana não é representativa da comunidade em sentido mais amplo cujos interesses estão em jogo nas eleições.

Os dadores são mais velhos, mais brancos e mais ricos do que a América no seu todo, mostra a minha análise, e vêm desproporcionalmente de alguns lados. Até ao momento mais dinheiro foi doado a partir de Washington, D.C., do que mais do que 20 outros estados combinados, e Joe Biden angariou 10% do seu dinheiro em apenas seis áreas de código postal, em Washington, D.C., Nova Iorque, num subúrbio desta cidade e num subúrbio de Indianapolis.

Algumas áreas económicas, como as finanças, o imobiliário, as comunicações, o direito, os cuidados de saúde, os recursos naturais, o petróleo e o gás, são especialmente grandes gastadores, através de doações pessoais ou dos PAC relacionados com as indústrias. Não há nenhum registo formal destes doadores.

De acordo com relatórios de meios de comunicação social e páginas de internet como o Open Secrets, nos anos mais recentes tem acontecido um impressionante aumento no número e importância dos pequenos doadores. Este ano, os pequenos doadores contabilizam cerca de 22% das recolhas de fundos para campanha, uma subida relativamente aos 14% de 2016. Há um passo numa direção mais democrática. Mas os grandes doadores ainda são centrais no sistema de financiamento de campanhas americano.

Impacto na democracia

Seja quem for que ganhe em 2020 deverá lidar com os prejuízos provocados pela pandemia numa economia devastada e na saúde pública. Uma variedade de outros assuntos enormemente importantes – desde a justiça racial e as migrações, ao comércio, ao ambiente, ao sistema judicial – também se articulam com o resultado eleitoral.

Ter um pequeno número de indivíduos muito ricos a financiar candidaturas políticas distorce o processo eleitoral. Trata-se menos do clássico quid pro quo – a troca de dólares de campanha por votações – do que da relutância dos políticos em tomar posições que contradigam os interesses dos seus grandes doadores. O que entra – ou sai – da agenda legislativa pode ser motivado pela preocupação de angariar doadores.

A influência dos doadores tende a ser mais significativa em assuntos que têm pouca atenção mediática – quem tem uma isenção fiscal específica, por exemplo, ou quem está apto para receber um apoio no âmbito da pandemia – do que temas quentes como os direitos reprodutivos. Mas o dinheiro de campanha molda inevitavelmente a ação governamental e quem decide quem dela beneficia, quem é prejudicado e quem é ignorado.

Como explicou o Supremo Tribunal ao apoiar em 2002 o McCain-Feingold Act que proibia o “soft money” – as doações que podiam afetar uma eleição sem ser focadas expressamente nela – “há provas que ligam o soft money às manipulações do calendário legislativo, levando o Congresso a falhar em atuar, entre outras coisas, legislando os genéricos, reformando as leis sobre indemnizações e a legislação do tabaco.”

Em 2018, o então diretor do orçamento federal e antigo congressista Mick Mulvaney admitiu-o com uma candura desarmante: “tínhamos uma hierarquia no meu gabinete no Congresso. Se fosses um lobista que nunca nos deu dinheiro, não falava contigo. Se fosse um lobista que nos tenha dado dinheiro, talvez falasse contigo.”

Como diz o ditado, quem paga ao flautista escolhe a música.


Richard Briffault é professor de Legislação da Universidade de Columbia.

Artigo publicado originalmente no The Conversation. Tradução de Carlos Carujo para o esquerda.net.

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