“Enquanto os meus filhos cresciam, eu trabalhava ou dormia”

Num momento em que a idade da reforma aumentou consideravelmente é preciso denunciar casos que passam invisíveis à sensibilidade política e humana. Por Raul Matos.

26 de abril 2017 - 12:04
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"Existem profissões de risco em que o desgaste físico e psicológico passa despercebido a quem dita uma lei em que a idade da reforma é aos 67 anos"
"Existem profissões de risco em que o desgaste físico e psicológico passa despercebido a quem dita uma lei em que a idade da reforma é aos 67 anos"

Trinta anos a trabalhar por turnos e em vez de ser contemplado com uma reforma, ganhei tremores vitalícios.

Não tenho dúvida de que existem inúmeras profissões de risco, muitas profissões em que o desgaste humano quer físico quer psicológico passa despercebido a quem dita uma lei geral em que a idade da reforma é aos 67 anos. É aqui que eu entro e por isso não posso deixar de dar o meu testemunho.

Tenho 58 anos, trabalho há 30 anos na manutenção de uma fábrica. Este emprego que me dá o sustento privou-me ao longo destes anos de uma vida normal. Enquanto os meus filhos cresciam e aprendiam a ser homens na escola, eu trabalhava ou dormia para poder trabalhar durante a noite enquanto eles dormiam. Quantos dias e por vezes, quantas semanas passavam sem eu os encontrar. Espreitava o seu sono quando entrava à uma da manhã ou imaginava-os na escola com os deveres feitos para tentar descansar durante o dia. Uma vida de desencontros que não me ajudou a criar e educar os meus filhos nem a desempenhar em pleno o meu papel de pai.

Esta é apenas uma das muitas consequências do meu emprego por turnos.

Outra, foi sem dúvida educar o meu sono cada vez que o turno mudava. Ter que dormir sem que o sono me acompanhasse para poder estar acordado num trabalho exigente e de risco.

Foram 30 anos de luta com o sono que ora tinha que chegar de dia ora de noite. Não podia chegar quando ele quisesse, ele não poderia perturbar o meu trabalho.

Só há cerca de 20 anos começou a ser obrigatório o Equipamento de proteção individual na empresa, até aí, a proteção era apenas a Divina.

Sem tempo para pausas

Se o turno de 8 horas de trabalho é a manhã, pára-se meia hora para almoçar, se as 8 horas são o turno da tarde, pára-se meia hora para jantar mas, se as 8 horas são o turno da noite o estômago tem abstinência, não há tempo para parar.



Raul Matos sofre de tremores que lhe perturbam a fala e dificultam o andar
 

Sou um trabalhador pontual e assíduo mas absentista à vida, à minha e à da minha família. Tenho três filhos que mal vi crescer e uma saúde frágil. Tenho como companheiro do meu dia-a-dia um mau estar físico, mental e até mesmo psicológico.

Hoje sofro de tremores que me acompanham no falar, no andar e não me permitem estar parado. Fazer uma refeição com líquidos ou alimentos menos sólidos, só com malabarismos porque de colher é impensável.

Sou apenas igual a muitos em que o direito ao trabalho roubou o direito a uma vida com dignidade.

Será difícil no século XXI, num país dito desenvolvido eu e tantos outros podermos ter uma vida com alguma dignidade com direito a uma reforma ainda que com tremores.

58 anos de idade, 30 anos a trabalhar por turnos não estará mais do que na hora de ter uma reforma para a qual descontei nesta vida de sofrimentos???

Vamos acordar consciências para que não pesem àqueles que ditam leis.

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Raul Matos é eletroinstrumentista (manutenção industrial)

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