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A crise das urgências veio para ficar
Ao longo destes 35 anos de SNS, basta um olhar rápido para perceber a evolução positiva da estrutura hospitalar Portuguesa. Antes do 25 de Abril não havia senão grandes hospitais universitários nas grandes cidades e pequenas estruturas, quase todas elas ligadas àds misericórdias, nas pequenas e médias cidades.
A desigualdade no acesso aos hospitais era social e também geográfica. Nos primeiros anos do SNS a chamada “periferia” via os primeiros médicos a chegarem a locais que nunca antes tinham conhecido médicos e os cuidados de saúde primários multiplicaram-se pelo país. No entanto, na década de 80 a estrutura hospitalar era ainda deficitária na área das urgências.
O caso de Lisboa era paradigmático. Com apenas duas grandes urgência, Santa Maria e São José, o número de doentes nestes locais era demasiado. Em São José o número de atendimentos urgentes a cada dia ultrapassava o milhar (actualmente ronda os 300). Macas pelos corredores, tempos de espera superiores a um dia, doentes que morriam nos corredores antes de serem visto pelo médico.
Nos anos 90 as urgências em Lisboa dão um salto de leão em qualidade – abrem os Hospitais Garcia de Ortal, Amadora-Sintra e São Francisco Xavier. Redistribui-se os atendimentos, os profissionais, cai o tempo de espera, aumentam as acessibilidades. As urgências equiparam-se tecnologicamente, os cuidados ficaram mais Humanos – mais espaço, mais tempo de observação, mais privacidade no atendimento.
A história é sempre importante quando tomamos decisões para o nosso futuro colectivo e analisar os planos para a concentração das urgências na área metropolitana de Lisboa carece desta história.
Desde 2007, pela mão do Governo Sócrates, que está pensada uma reestruturação profunda das urgências hospitalares na Grande Lisboa. Essa reforma contava com alguns princípios, talvez verdadeiros na altura mas que hoje desapareceram: a queda no número de casos urgentes e o desenvolvimento das Unidades de Saúde Familiar.
A presença da Troika e o Ministério de Paulo Macedo (ambos confundem-se nesta matéria) vieram acelerar uma reforma que deixou de fazer sentido. Aumentaram o número de casos urgentes – porque há menos apoio social na doença crónica, menos dinheiro para comprar medicamentos, menos dinheiro para alimentação cuidada e hábitos de vida saudáveis – fecharam centros de atendimento da área primária e há menos profissionais de saúde a trabalhar nas urgências – porque não os formamos e os que formamos fugiram do país, porque os mais velhos deixaram de fazer urgências em virtude dos pesados cortes no pagamento das horas extraordinárias, porque os hospitais não os contratam devido a retrições financeiras – e os centros de saúde têm ainda menor capacidade de resposta do que no passado – porque faltam médicos de família, porque Paulo Macedo impôs aumentos vergonhosos na lista de utentes de cada médico.
Tudo isto cria uma tempestade perfeita, cujo resultado é o caos e a sobrelotação dos serviços de urgência. A recente vaga de notícias sobre a demora no tempo de atendimento não é sazonal, não é um epifenómeno. É o resultado de decisões políticas que cortam oferta de cuidados de saúde no momento em que as pessoas mais precisam deles.
A crise das urgências hospitalares é, portanto, multifactorial e complexa. Mas não pode ser desligada do contexto geral em que vivemos. A relação entre as crises económicas e os indicadores de saúde é sobejamente conhecida. Não voltemos a repisa-las. Talvez devamos concentra-nos nas respostas de que dispomos para as enfrentar.
Falemos do país de que ninguém quer falar, que é incómodo e do qual a comunicação social não faz a mais pequena ideia – a Islândia. Atingida em 2008 por uma crise económica sem precendentes, na Islândia o número de suicídios não cresceu, a incidência de ataques cardíacos caiu, assim como o consumo de substâncias aditivas ou a taxa de depressão. O que fez a Islândia de diferente? Simples, não cortou no seu orçamento de saúde, não restringiu a sua oferta de cuidados, não diminuiu a sua estrutura hospitalar – pelo contrário, gastou mais em saúde nos dois primeiros anos pós-crise mas está hoje com orçamentos anuais semelhantes aos dos pré-crise.
Fica por perguntar então, o corte nas despesas de saúde é inevitável? A piora da qualidade e da acessibilidade são obrigações “troikanas” sem alternativa? Pois se assim o é, deveríamos esperar que ao longo destes 3 anos de troika, de Paulo Macedo, de constrangimentos financeiros no SNS, as suas contas estivessem mais equilibradas e o seu défice mais controlado. Mas a verdade é o seu contrário. Apesar dos cortes no orçamento impostos pela tutela, a dívida no SNS acumula-se e o défice, assim como os atrasos nos pagamentos nos hospitais aumentam. Paulo Macedo já não o consegue esconder mais – há um défice permanente, estrutural no SNS que pode chegar aos 3 mil milhões de euros, o número deixado pelo anterior governo de Sócrates. Depois dos cortes efectivos nos salários dos profissionais de saúde que vão dos 30 aos 50%, do corte na oferta de cuidados, na degradação das urgências hospitalares, fica um défice que é igual ao ponto de partida. A saúde sofre do mesmo mal que todo o resto da área da governação: depois dos “necessários sacrifícios” que degradaram violentamente as nossas condições de vida, está tudo na mesma ou pior – a dívida, o défice, os juros, tudo segue descontrolado.
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