Está aqui

Contra a "Directiva da Vergonha"

A 18 de Junho, o Parlamento Europeu aprovou, por larga maioria, a "Directiva do Retorno", a lei comunitária que facilita a deportação de imigrantes ilegais, e que entrará em vigor em 2010. Em Portugal, como noutros países, as associações de imigrantes manifestaram-se contra o que chamaram "directiva da vergonha". Ainda em matéria de imigração de registar em 2008 os acontecimentos ocorridos no Bairro da Quinta da Fonte, em Loures, e toda a especulação que foi feita sobre a alegada natureza racista dos conflitos.  

À semelhança do que aconteceu em Londres, Paris ou Estrasburgo, as associações de imigrantes em Portugal juntaram-se em Junho num protesto contra a directiva de Retorno, uma medida que pretende harmonizar as diferentes políticas de imigração dos 27 estados-membros e conceder-lhes mais poder para repatriar imigrantes indocumentados.

A concentração realizou-se em Lisboa, frente ao Memorial da Tolerância no Largo de São Domingos, e contou com o apoio de cerca de 40 associações de imigrantes, de direitos humanos, de sindicatos e ONG's em protesto contra a lei aprovada.

As organizações de direitos humanos e associações de imigrantes consideram esta lei "desumana", condenando designadamente os prazos para a detenção de imigrantes ilegais sem culpa formada e a disposição que permite a detenção e expulsão de menores não acompanhados. Foi lançado um manifesto internacional de repúdio.

Um dos aspectos mais criticados da directiva é que os imigrantes sem papéis que sejam detidos em solo europeu podem passar até 18 meses em centros de detenção enquanto a decisão judicial da expulsão não estiver pronta.

Como um primeiro passo, fixa um máximo de seis meses, prorrogável por mais doze meses, no caso de haver falta de "cooperação" dos países de origem dos migrantes. A directiva fará assim com que os Estados-Membros tendam a alinhar-se com a duração máxima prevista pelo acordo.

A lei prevê que a partida de um imigrante indocumentado, chamada de "remoção", tenha lugar numa base "voluntária" mas que este, no caso de resistência, poderá ser forçado ou obrigado, sendo depois proibida a sua entrada no território da UE, durante cinco anos. Outro pressuposto da lei fortemente criticado é a detenção de crianças, mesmo que por um período "tão breve quanto possível".

A directiva foi aprovada com 369 votos a favor (partidos da direita e alguns socialistas), 197 contra (esquerda unitária, socialistas e Verdes) e 109 abstenções (em geral socialistas).

No protesto, em Lisboa, a Plataforma das Estruturas Representativas das Comunidades Imigrantes em Portugal, que representa 53 associações de imigrantes em Portugal, considerou "inaceitável" a aprovação do Parlamento Europeu, alegando que se trata de um retrocesso na política de imigração na Europa e que este acto evidencia que existe uma visão distorcida e preconceituosa sobre o que são hoje os fluxos migratórios.

Também presente no protesto, o eurodeputado do Bloco referiu que a "primeira grande contradição" que a Directiva coloca é que não "está em condições de ser resolvida na próxima semana pelo PE" é que o facto da UE admitir ter "uma política comum para os repatriamentos dos imigrantes ilegais", mas "recusa-se a ter uma política comum para a integração e direitos que estas pessoas têm quando chegam à Europa".

"O problema desta Directiva é que introduz uma lógica e uma dinâmica que apela e quase convida aos Governos europeus a endurecerem as suas politicas de imigração", frisou Miguel Portas, que lembrou também que quando existem Estados-membros, como a França e a Itália, que querem "endurecer brutalmente" as suas políticas de imigração, estes países vão "sempre estabelecer uma enorme pressão contra os países que tem legislações mais permissíveis, tolerantes e compreensíveis da condição humana do imigrante para endurecerem as respectivas politicas".

O Governo português foi chamado a condenar publicamente a directiva do retorno mas recusou-se a fazê-lo. Na Cimeira da CPLP, em Junho, o ex-presidente brasileiro Itamar Franco pediu uma condenação unânime à política de imigração da UE, nomeadamente à directiva do retorno por facilitar a expulsão e detenção prolongada de imigrantes. Mas o governo português, pela voz do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, respondeu que Portugal se opunha a qualquer resolução nesse sentido, alegando que Lisboa "aprovou" a directiva de retorno.

Na ocasião, Itamar Franco defendeu que os chefes de Estado e de governo da CPLP deveriam condenar a política de imigração europeia, posição que não teve eco no representante português.

Quinta da Fonte

Outro acontecimento que marcou o ano de 2008 foi o caso do bairro da Quinta da Fonte, em Loures, onde em meados de Julho, ocorreram dois tiroteios em plena via pública, com a PSP a cercar o bairro e a efectuar várias detenções e a apreender diversas armas. A dimensão dos confrontos que envolveram moradores do bairro, onde vivem cerca de 250 pessoas, desencadeou um discurso mediático sobre a natureza racista dos conflitos, e exacerbou as tensões existentes entre a população cigana e a africana, residentes no bairro.

Após os tiroteios houve casas destruídas e muitos dos seus moradores, sobretudo da comunicada cigana, abandonaram o bairro por não se sentirem seguros. Alguns chegaram mesmo a tentar ocupar casas em Fetais, que estão destinadas a realojamentos e se encontram concluídas mas desabitadas, mas a PSP interveio para impedir essa acção.

O bairro da Quinta da Fonte permitiu o realojamento de famílias desalojadas para a construção dos acessos à Expo-98. A autarquia de Loures, reconheceu que muitos dos habitantes tentam há anos sair do bairro, e têm solicitado à Câmara alternativas noutros locais, que a autarquia diz não existirem. Os moradores de etnia cigana são os que mais solicitações terão feito à Câmara.

Na reacção aos acontecimentos de Julho, várias associações de moradores e de defesa dos imigrantes, que viriam a estar na origem da realização de uma Marcha pela Paz no próprio bairro, justificaram os acontecimentos como consequência do próprio insucesso das políticas de realojamento, que não terão tido em conta uma organização territorial que permitisse uma gestão democrática do território e fomentasse a convivência de todos os grupos étnicos, em igualdade de circunstâncias.

Á data dos conflitos existiam denúncias por parte de váris ONG's que há vários anos tinham sinalizado as causas do mal-estal dos habitantes do bairro, às entidades públicas, mas nada foi feito.

O estudo do Observatório da Imigração, "Espaços e Expressões de Conflito e Tensão entre Autóctones, Minorias Migrantes e Não Migrantes na Área Metropolitana de Lisboa", publicado em 2007, para o Alto-Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas (ACIME), apontava já os vários factores que "condicionam o funcionamento e a estruturação do bairro".

As características da população, quer pela diversidade étnica, instabilidade laboral, predomínio da juventude, carência social e económica e falta de acompanhamento pelas instituições sociais; a dimensão "excessiva" e o isolamento do bairro, que origina a sua segregação; o processo de realojamento, classificado como "um barril de pólvora"; as "deficientes condições de habitabilidade"; a "deficiente manutenção e degradação" dos espaços públicos; as infraestruturas, equipamentos e ocupação dos tempos livres dos jovens; e o "insucesso, absentismo e abandono escolar", forma os principais problemas identificados pelo estudo em relação ao bairro da Quinta da Fonte. O estudo contou com testemunhos de elementos da Pastoral dos Ciganos, da Escola da Apelação, da Junta de Freguesia e do Centro Comunitário para apontar alguns caminhos a seguir no sentido de atenuar as tensões no bairro.

Ao contrário da opinião veiculada por algumas reportagens sobre a natureza racista dos conflitos do final da semana passada, o estudo desaconselha essa leitura, ao dizer que "existem algumas discrepâncias quando se trata de referir a natureza dos conflitos, uma vez que existe uma certa tensão e receio entre as populações residentes no bairro e esse facto impede muitas vezes que os problemas se resolvam e cessem de imediato. Os próprios moradores entrevistados desvalorizaram as tensões e conflitos étnico-culturais e preferem falar em conflitos de vizinhança.

O estudo negou a existência de gangs no bairro, e refere que a criminalidade associada a grupos de jovens da Quinta da Fonte é praticada sobretudo fora do bairro. Apesar da "conflitualidade entre bairros e com alguns grupos de outros bairros, parece-nos que esta situação não se relaciona com conflitos de base étnica ou racial", concluiu o Observatório.

(...)

Neste dossier:

Portugal em 2008

Em Portugal, o ano de 2008 fica marcado pelas gigantescas mobilizações de professores contra a política educativa do governo. A crise financeira internacional também fez as suas vítimas por cá, tendo o governo preferido salvar os bancos, em vez de defender os mais fracos. Exemplo disso é o novo código do trabalho, aprovado só com os votos do PS, e o aumento da pobreza, do desemprego e da precariedade

Prémio "Precariedade 2008" para José Sócrates

O agravamento da precariedade em 2008, faz com que existam hoje 900 mil trabalhadores, aproximadamente 1/5 da população activa em Portugal, em situação precária. O Governo PS rejeitou a criminalização dos falsos recibos verdes, assim como a integração dos milhares de precários do Estado, e centrou a sua acção em falsos anúncios de "criação" de emprego. 

Aprovado divórcio sem culpa

A nova lei do divórcio foi um dos temas do ano que agitou as relações entre o Presidente da República e o PS. Cavaco Silva vetou a nova lei depois de aprovada no Parlamento, numa posição que lhe mereceu críticas de toda a esquerda parlamentar que o acusou de conservadorismo. Em Setembro o diploma teve novamente luz verde. 

As gigantescas mobilizações dos professores

2008 será sem sombra de dúvida lembrado pelos maiores protestos de sempre que uma classe profissional alguma vez protagonizou contra reformas impostas por um governo. Duas manifestações gigantescas e uma greve que ficou perto dos 100% de adesão, mostraram ao país que os professores não se rendem às políticas burocráticas e economicistas de José Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues. A contestação promete continuar com nova greve nacional a 19 de Janeiro de 2009. 

As fraudes financeiras e os favores à banca

Começando pelo BCP e terminando no BPN e no BPP, 2008 foi o ano em que a máscara dos banqueiros caiu. Foram milhões de euros de prejuízos camuflados na razão inversa dos prémios e regalias para os grandes responsáveis. As fraudes detectadas mostraram a promiscuidade entre o poder político e o económico. Com a agudização da crise financeira, o governo veio em socorro da banca com milhões, algo que nunca tinha ousado fazer com os trabalhadores ou os mais desfavorecidos. 

Novo código do trabalho aprovado só com os votos do PS

Fazendo tábua rasa das suas propostas enquanto oposição, o Partido Socialista aprovou o novo código do trabalho, merecendo rasgados elogios dos patrões e da direita. O fim do pagamento de horas extraordinárias, a legalização da precariedade e o ataque s convenções colectivas são algumas das novas regras que fazem de 2008 o ano em que a balança voltou a pender para o lado dos mais fortes. Só que nem tudo foram rosas para PS e Patrões, dado que o Tribunal Constitucional chumbou uma das normas do código, que assim voltará ao parlamento em 2009.

Universidades na penúria

Se 2007 trouxe à praça pública os escândalos, fraudes e negociatas que envolvem o ensino superior privado português, já o ano de 2008 trouxe à tona as enormes dificuldades financeiras que enfrentam as universidades públicas, face à redução contínua das transferências do Orçamento de Estado. Por outro lado, já quase não existem universidades sem propina máxima, e torna-se cada vez mais insustentável a precariedade a que estão sujeitos muitos dos professores deste sector. 

Populações e profissionais de saúde defendem SNS

Mudou o ministro da saúde mas a políticas mantiveram-se. O fecho das urgências nocturnas e a continuação da degradação do serviço nacional de saúde, levou as populações a saírem à rua de norte a sul do país. O descontentamento dos enfermeiros também ganhou expressão, na maior manifestação de sempre da classe, de que há memória. 

Contra a "Directiva da Vergonha"

A 18 de Junho, o Parlamento Europeu aprovou, por larga maioria, a "Directiva do Retorno", a lei comunitária que facilita a deportação de imigrantes ilegais, e que entrará em vigor em 2010. Em Portugal, como noutros países, as associações de imigrantes manifestaram-se contra o que chamaram "directiva da vergonha". Ainda em matéria de imigração de registar em 2008 os acontecimentos ocorridos no Bairro da Quinta da Fonte, em Loures, e toda a especulação que foi feita sobre a alegada natureza racista dos conflitos.

Alta tensão: Governo recusou alterar lei

Foi graças às acções de vários grupos cívicos que em muitas localidades do país contestaram a instalação de linhas de alta tensão na proximidade de casas e povoações, que em 2008 esta luta ganhou contornos nacionais, com o primeiro encontro nacional de movimentos a ter lugar em Junho. O governo foi forçado a recuar em alguns projectos mas o essencial, a alteração da lei, continua por concretizar. 

Esquerdas convergem contra o neoliberalismo

2008 foi ao ano em que várias personalidades e sectores da esquerda portuguesa se aproximaram para procurar alternativas à governação neoliberal e ao pensamento único. A convergência começou por se fazer sentir no comício festa do Teatro da Trindade, em Junho, e continuou no Fórum Sobre Serviços Públicos e Democracia, em Dezembro. No parlamento, Manuel Alegre e outros deputados socialistas votaram ao lado do Bloco de Esquerda e do PCP em matérias tão fundamentais como o código do trabalho.

PS chumbou casamentos homossexuais

Duas propostas de legalização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, subscritas pelo Bloco e Os Verdes foram chumbadas com votos da maioria dos deputados do PS. Os socialistas recuaram em relação ao compromisso de apresentar a proposta no programa eleitoral de 2009 e impuseram uma contestada disciplina de voto sobre esta matéria.

Número de mortes por violência doméstica duplicou

Foi um ano negro da violência doméstica em Portugal. Em 2008, 44 mulheres foram assassinadas por actuais ou antigos companheiros e maridos, mais do dobro que em todo o ano passado, em que se tinham registado 21 casos. A média deste ano, em termos de homicídio conjugal, permite concluir que, em cada semana, uma mulher é assassinada pelo seu marido ou companheiro. Portugal regista uma das piores estatísticas da União Europeia nesta matéria.

Linha do Tua: os acidentes e a barragem

No dia 22 de Agosto de 2008 um novo acidente na Linha do Tua causou mais uma morte. Foi o quarto acidente em cerca de ano e meio, levantando dúvidas e suspeitas sobre as condições de manutenção da linha. A previsível construção da barragem que vai deixar submersa pelo menos uma parte da Linha do Tua é contestada por cidadãos e movimentos, e apontada como uma das razões que pode estar na origem do "desleixo" com que governo e autoridades têm tratado este assunto. 

Camionistas paralisaram o país

2008 fica marcado por protestos em todo o Mundo contra o aumento do preço dos combustíveis. Em Portugal, os pescadores foram os primeiros a reagir, paralisando por alguns dias a frota pesqueira. Mas a mobilização com maior impacto foi sem dúvida a dos camionistas. Contra a vontade da grande empresa representativa do sector, milhares de camionistas revoltaram-se e montaram um bloqueio de vários dias no mês de Junho, que fez secar bombas de gasolina e obrigar o governo a negociar o que antes recusara. 

Primeira condenação por violência nas praxes

Em 2008, pela primeira vez um tribunal português condenou praticas violentas ocorridas durante cerimónias de praxes académicas em Santarém. Inédita é também a decisão do Tribunal da Relação do Porto de condenar o Instituto Piaget a pagar cerca de 40 mil euros a uma aluna vítima de praxe em 2002. O Parlamento reconheceu pela primeira vez a importância de se discutir este assunto e aprovou por unanimidade, na Comissão Parlamentar de Educação, um relatório com medidas de combate à violência nas praxes.   

Skinheads condenados por discriminação racial

O dia 3 de Outubro de 2008 fica na história portuguesa pela primeira condenação efectiva por discriminação racial. Dos 36 skinheads acusados de crimes de sequestros, ofensas corporais, posse ilegal de armas, distribuição de propaganda nazi e discriminação racial, 23 foram condenados à prisão, embora a mior parte tenha ficado com pena suspensa. Mário Machado, o líder do movimento Hammerskins Portugal apanhou 4 anos e 10 meses de prisão efectiva. 

Bloco elege primeiros deputados nos Açores

Nas eleições regionais dos Açores de 18 de Outubro, o Bloco de Esquerda triplicou o número de votos, passando para 3,3%, e pela primeira vez obteve representação na Assembleia Regional dos Açores, com dois deputados eleitos. O PS venceu novamente as eleições com maioria absoluta, num ano que também fica marcado pela polémica em torno dos vetos de Cavaco Silva ao Estatuto dos Açores. 

Congresso Karl Marx com 150 comunicações

A actualidade do pensamento marxista na presente conjuntura de crise do capitalismo global foi um dos temas que dominou o Congresso Internacional Karl Marx, realizado entre 14 e 16 de Novembro, e promovido pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, pela Cooperativa Culturas do Trabalho e Socialismo (Cutra) e pela Transform Europe (rede internacional de associações culturais).