Colômbia: Petro, Francia, o ELN e as FARC

Uma das prioridades do novo governo da Colômbia é resolver o conflito armado que ainda perdura. Consegui-lo não será uma tarefa fácil. Mas existe uma fórmula simples capaz de dar uma volta à história: mudanças sociais e garantias de vida. Por Pablo Solana

03 de agosto 2022 - 20:45
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"o diálogo com o ELN é certamente o que ordena o panorama" - Foto Brasil de Fato

"Primeiro, a paz", disse Gustavo Petro no seu discurso de vitória. O Exército de Libertação Nacional (ELN) não deixou passar mais de 24 horas para manifestar, a título de resposta, "a sua plena vontade de avançar" numa nova negociação com o Estado. Um setor das dissidências das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) saudou o novo governo e propôs: "Temos que dialogar".

Embora pareça que os diferentes protagonistas falam a mesma língua, o diálogo não será fácil. A Colômbia terá um presidente ex-guerrilheiro e uma vice-presidente vítima da violência; nunca na história deste país houve à frente do Estado pessoas com um perfil tão apropriado para avançar na saída política do conflito armado. No entanto, existem fatores complexos que excedem qualquer boa vontade.

Em 2016, a guerrilha mais numerosa, FARC, desmobilizou. Mas quando o Estado não cumpriu os Acordos de Havana, surgiu um conjunto de dissidências que optaram por pegar em armas novamente. O ELN “mantém ativo o seu sistema de luta e resistência política e militar”, como afirmam no mesmo comunicado em que manifestam a sua vontade de negociar. Seis anos após a assinatura dos acordos, os confrontos nas diversas regiões do país são mais frequentes do que se relata.

Ambas as siglas, ELN e FARC, têm sido referências históricas para os movimentos revolucionários do continente. Essa mística insurgente é parte do passado, mas na Colômbia a luta armada não tem ficado para trás. Qual é a estratégia atual do ELN? Que peso político têm as dissidências das FARC? Por que nos últimos anos estes grupos aumentaram a quantidade de combatentes nas suas fileiras? Qual é o vínculo que mantêm com o movimento político e social? Que querem dizer quando falam de "paz"?

A particularidade colombiana

Enquanto vários países latino-americanos, em meados do século XX, moldavam os seus projetos nacional-populares (o peronismo na Argentina, o cardenismo no México, Velazco Alvarado no Peru, Getúlio Vargas no Brasil, Paz Estenssoro na Bolívia), na Colômbia assassinavam a tiro aqueles que poderiam ter encarnado essa possibilidade: o caudilho liberal Jorge Eliécer Gaitán.

Durante a segunda metade do século XX, a América Latina não era exatamente um território de paz; no entanto, a violência na Colômbia definiu um curso particular que a distanciou dos ciclos que marcaram os altos e baixos políticos na região. Com esse magnicídio, bloqueou-se a possibilidade de estabelecer algum tipo de estado de bem-estar, como fizeram outros países que aproveitaram as possibilidades económicas que o pós-guerra oferecia à América Latina.

Nos anos 70 e 80, as formas ditatoriais não exigiam golpes militares estridentes na Colômbia como no resto do continente; a repressão — tão ou mais criminosa do que sob as ditaduras — manteve a formalidade institucional. No início do século XXI, o país esteve nos antípodas do "ciclo progressista" que caraterizou as experiências mais dinâmicas da região: enquanto Chávez e os demais arriscavam mudanças de rumo a favor dos povos, na Colômbia governava Uribe pela força de massacres contra a população.

A disputa política na Colômbia ordenou-se em torno do conflito armado: a esquerda foi associada à luta guerrilheira, seja porque em alguns casos acompanhou efetivamente essas apostas ou porque tal identificação foi construída a partir das classes dominantes. Ao mesmo tempo, a direita legitimou-se em nome do combate a uma insurgência armada que tachou de comunista, apátrida e narcoterrorista, com a leviandade que qualquer campanha suja de propaganda suja permite em tempos de guerra.

Embora a luta armada existisse antes mesmo do assassinato de Gaitán, as guerrilhas que nos preocupam surgiram no período de violência que se iniciou depois desse crime político, influenciadas ao mesmo tempo pela realidade continental.

As FARC herdaram a rebelião camponesa endógena e apoiaram-se num Partido Comunista Colombiano que, encorajado pelos feitos de Fidel e Che, lhes deu formação marxista. O núcleo promotor do ELN, formado principalmente por jovens universitários, adquiriu formação militar no início da década de 60 em Cuba e com essa aprendizagem criaram o seu próprio grupo de combate no país. As FARC reforçaram a sua identidade comunista (um pouco cubana, mas mais soviética) e o ELN misturou o seu guevarismo original com a Teologia da Libertação, uma contribuição de Camilo Torres e de outros padres guerrilheiros.

A luta armada manteve-se com altos e baixos durante as décadas seguintes. Contou com apoio popular na medida em que foi a resposta defensiva ante uma oligarquia que persistiu na violência contra aqueles que procuravam uma alternativa ou simplesmente defendiam o seu território.

As maiores tentativas democráticas foram feitas por organizações insurgentes. Desde 1982, tanto as FARC quanto o ELN responderam às várias propostas de negociação de paz. Em meados dos anos 80, promoveram movimentos políticos legais, como a "União Patriótica", promovida pelas FARC, "A Lutar!", no caso do ELN, e a "Frente Popular", promovida por outro grupo armado , o Exército Popular de Libertação (EPL). Mas em cada caso as classes dominantes responderam com o extermínio.

Nesse período surgiram outros grupos guerrilheiros. Os mais conhecidos, o Movimento Armado Quintín Lame (MAQL), de origem indígena, o Movimento 19 de abril (M-19), nacionalista, e o já mencionado EPL, maoísta. Estes três, juntamente com as FARC e o ELN, fizeram os seus maiores esforços de unidade entre 1987 e 1990, quando formaram a Coordenador Guerrilheira Simón Bolívar. Mas o fenómeno da luta armada superou-os: segundo um estudo da Universidade Nacional, foram pelo menos 31 grupos rebeldes armados no país entre 1958 e 2012.

As FARC tiveram o seu momento de maior crescimento nos finais do século XX. Chegaram a contar com 12.000 combatentes, distribuídos em 70 frentes. O historiador Alfredo Rangel afirma que, juntamente com o ELN, conseguiram "o controle absoluto de 10% dos municípios e 95% dos corregimentos1 do país".

A resposta a essa expansão guerrilheira foi o Plano Colômbia (1999), desenhado pelos Estados Unidos. Foi um plano integral que forneceu às forças militares do Estado a tecnologia de guerra que lhes garantiria a superioridade no campo do combate e os recursos económicos para travar a batalha ideológica, que marcaria a ferro e fogo a associação entre esquerda armada e terrorismo.

A isso sumou-se a criminalidade com que foi levada aidante essa etapa da guerra contrainsurgente. Houve massacres de populações civis e fuzilamentos de jovens enganados com ofertas de trabalho para fazê-los passar por vítimas da guerrilha. A repressão estatal foi complementada com o paramilitarismo, que já vinha de antes e não deixou nenhuma barbárie por cometer: "casas de pique"2, onde desmembravam os corpos para fazê-los desaparecer, decapitações públicas, valas comuns.

Nessa altura, já se tinham consolidado os grandes cartéis da droga que disputaram território com os demais grupos armados. Nessa época, o narcotráfico começou a permear algumas organizações, como as FARC. À combinação de todas as formas de luta, a guerrilha somou a combinação de todas as formas de financiamento, o que em muitos casos obscureceu o seu projeto revolucionário. Os sequestros com fins económicos inicialmente visavam grandes proprietários de terras e empresários, mas continuaram com pequenos proprietários e gente do povo dependendo de cada região.

O ELN, que na época definiu a sua recusa ao tráfico de droga, partilhou no entanto a prática do sequestro e concentrou-se na gestão de economias territoriais como a mineração ilegal, às vezes em alianças com a comunidade, mas também disputando territórios com outros grupos armados. Somada a estes fatores de desgaste, a ofensiva contrainsurgente orientada e sustentada pelos Estados Unidos desferiu um golpe tão grande nas guerrilhas que as fez recuar.

Eduardo Pizarro caraterizou esse ponto de inflexão como uma "derrota estratégica" no caso das FARC, já que "embora [a partir de então] continuem a existir como grupo armado, não têm mais a possibilidade de chegar ao poder por meio das armas" . O ELN reconheceu algo semelhante no seu IV Congresso realizado em 2006, quando redefiniu a sua estratégia jã não em função da tomada do poder, mas sim no desenvolvimento da "resistência armada" e na construção do Poder Popular. Desde então, sem a possibilidade revolucionária no horizonte, ambas as guerrilhas entraram num período de insurgência crónica.

A desmobilização das FARC e as dissidências

Os acordos entre o Estado e as FARC, assinados em 2016, puseram fim à existência daquela organização como foi conhecida durante mais de cinquenta anos. A sigla sobreviveu, reformulada como Força Alternativa Revolucionária do Comum (o "partido FARC"), o primeiro nome por trás do qual se agruparam os signatários do Acordo de Paz. Mas a partir de janeiro de 2021, esse nome também deixou de existir: passaram a chamar-se Comuns (Comunes).

Um punhado de ex-comandantes ainda se mantém neste rebatizado partido, embora de 2016 até hoje essa força política tenha sofrido mais de uma cisão. Em alguns casos, as figuras mais reconhecidas da ex-guerrilha ocuparam as cadeiras parlamentares que o acordo lhes concedeu, sem terem sido submetidas ao voto popular, em compensação pela perseguição do Estado que durante décadas os impediu de fazer política legal. Mas o dado mais importante é a quantidade de ex-combatentes que foram assassinados depois de entregarem as armas: segundo dados oficiais, 316 entre agosto de 2016 e o primeiro trimestre de 2022.

O Estado colombiano honrou a sua tradição e incumpriu sistematicamente todos os compromissos de garantias e direitos a quem depôs as armas. Virou-lhes as costas e, na forma de um novo governo uribista (Iván Duque, 2018-2022), continuou a guerra contra os desmobilizados por outros meios, "rasgando em pedaços" os acordos de paz, segundo confessou o próprio diretor do Centro Democrático, a força chefiada pelo ex-presidente Uribe.

Na época, estimou-se que, dos 13.000 integrantes das FARC, 1.800 não aceitaram os acordos, ou seja, 15%. Um número razoável, disseram os analistas, em sintonia com outras experiências internacionais de desmobilização de forças insurgentes. Com esses dados, naturalizou-se, num primeiro momento, a existência de dissidências.

Mas em 2016 já havia pelo menos 23 grupos de 30 a 40 combatentes dissidentes das FARC reorganizados em diferentes regiões. Ao longo dos anos, essas estruturas foram reagrupando-se no sudeste do país, nos departamentos de Guaviare, Meta e Vichada, este último com acesso à fronteira venezuelana. Também em Nariño (fronteira com o Equador) e regiões de Cauca com acesso ao Pacífico. Mais tarde fortaleceram-se no leste e em Chocó. Em cada caso, adotaram a forma de frentes guerrilheiras, o que se refletiu nos nomes pelos quais se deram a conhecer: Décima Frente Martín Villa, Frente Oliver Sinisterra, Frente Carolina Martínez, etc.

Quem conseguiu erigir-se como líder dessa confluência foi Gentil Duarte, comandante da histórica 7ª Frente das FARC, assassinado num acampamento do seu grupo armado no estado de Zulia, na Venezuela, em 24 de maio de 2022. Este grupo ficou associado ao narcotráfico, dedicado ao controle territorial que o negócio exige e à manutenção das vias para tirar a coca do país. Os analistas do conflito denominam esta deriva por “bandoleirização”.

Algo diferente é o caso das dissidências que se formaram em torno das figuras de Iván Márquez e Jesús Santrich. Ex-comandantes das FARC, chegaram a assinar o acordo de paz em 2016, mas voltaram à clandestinidade após serem perseguidos com processos de narcotráfico que incluíam pedidos de extradição para os Estados Unidos. O seu retorno à atividade armada, ao contrário de outros, foi revestida por uma mística fariana: chamaram o novo grupo de Segunda Marquetalia e difundiram uma proclamação reivindicando a origem da extinta organização (a "República de Marquetalia", o pequeno território libertado em Tolima, onde Tirofijo e Jacobo Arenas criaram o mito fundador das FARC). No entanto, os relatórios mais rigorosos indicam que reincidiram na gestão do tráfico de drogas.

Santrich, que chegou a ocupar uma cadeira parlamentar em nome das FARC antes de voltar à clandestinidade, foi assassinado em maio de 2021 na Venezuela, onde a organização reconheceu ter o seu acampamento. Presume-se que a sua morte foi resultado da ação de outro grupo armado em busca de cobrar a recompensa milionária oferecida pelo Estado colombiano. Dois outros ex-comandantes das FARC que integravam este reagrupamento, El Paisa e Romaña, foram igualmente assassinados em dezembro de 2021.

Uma página web reúne os posicionamentos deste setor. Aí incluem-se comunicados atuais do Partido Comunista Clandestino da Colômbia (PCCC); assim foi chamada a estrutura na qual as FARC se referenciaram após a sua rutura com o Partido Comunista em 1993. O comunicado mais recente, três dias após a segunda volta das eleições, intitula-se "A mudança é imparável". Aí saúdam a vitória de Gustavo Petro e Francia Márquez e dizem: "Metamo-nos com tudo, de corpo e alma, no processo coletivo de alcançar a paz completa para a Colômbia".

Em declarações anteriores, tinham aderido à "trégua unilateral declarada pelos camaradas do ELN" por ocasião das eleições, exigiam "que se abram as portas do diálogo" com a sua organização e "deploravam" a extradição de Otoniel (chefe do grupo paramilitar Clã del Golfo) para os Estados Unidos, facto que os atinge, pois um pedido semelhante pesa sobre a sua única figura pública ainda viva, Iván Márquez.

Em algumas cidades, reapareceram pichagens - e em algumas universidades, ações - em nome do Movimento Bolivariano (MB), o braço destinado a juntar os jovens à guerrilha que as antigas FARC souberam desenvolver a partir dos anos 90, atualmente vinculadas a este setor.

ELN, a guerrilha mais antiga que se mantém ativa

Após a ofensiva militar e paramilitar da primeira década deste século, a guerrilha camilista ficou “com problemas de ação coletiva, baseados em bases sociais heterogéneas”, segundo o investigador Andrés Aponte González.

No entanto, a conjuntura de diálogo vivida pelas FARC durante os governos de Juan Manuel Santos (2010-2018) tirou pressão ao ELN. Por um lado, o Estado colombiano concentrou os seus esforços na desmobilização do maior grupo guerrilheiro. Por outro lado, nas suas definições orgânicas o ELN condicionou o abandono da luta armada à realização de transformações estruturais no país, exigência que o Estado colombiano negou cabalmente. Portanto, o pouco interesse em negociar era de ambos os lados.

Esta situação permitiu aos do ELN respirar, recompor-se, crescer. Se no IV Congresso de 2006 tinham resolvido retirar-se da resistência armada, no V, realizado no início de 2015, decidiram que ocupariam os territórios deixados pelas FARC e aproveitariam a conjuntura de mobilização social para que a paz também se acumule no plano político.

Durante esse período, a sua agenda adaptou-se bem ao movimento popular. O ELN manifestou o seu apoio aos protestos sociais, que durante esses anos abundaram: tomadas de poder estudantis, bloqueios camponeses, mingas indígenas, greves cívicas e sindicais, mobilizações a favor da paz. Ao mesmo tempo, diante do convite ao diálogo, o grupo armado retomou a proposta que já havia levantado em conjunturas anteriores: que os acordos sejam alcançados com ampla participação da sociedade.

No pouco tempo que duraram as negociações com o Estado, o ELN declarou vários cessar-fogo unilaterais e o governo montou mesas de diálogo com a sociedade. Setores sociais, políticos, religiosos e intelectuais aproximaram-se do ELN, pelo menos para ver como seria a sua participação num grande acordo pela paz. Mas essa primavera de diálogo foi ofuscada quando se começou a verificar que os Acordos de Havana não seriam cumpridos e morreu quando o novo governo de Iván Duque descartou qualquer possibilidade de diálogo baseado na reciprocidade.

Nos últimos anos, o ELN avançou sobre os restos das FARC em várias regiões. Também entrou numa espiral de confrontos com as outras estruturas armadas onde nem sempre saiu bem.

Um relatório recente da Fundação Paz e Reconciliação descreve a sua realidade díspar: continua forte no leste (Arauca), no nordeste (Norte de Santander) e na zona fronteiriça do lado da Venezuela, apesar de teream recrudescido os confrontos com outros grupos armados pelo controle territorial. Além disso, mantém confrontos com dissidentes e paramilitares no Pacífico (Chocó), no contexto de uma situação de violência que gera um alto custo humanitário para as comunidades. Segundo esse mesmo relatório, eles estariam enfraquecidos numa região onde tiveram peso histórico, como o sudoeste do país (Nariño, Cauca, Valle del Cauca), também como resultado do confronto com vários grupos armados ; outras realidades são complexas de estabelecer, como a dimensão e o estado da sua frente urbana, já que o caráter clandestino nas cidades é total e não se conhece nenhuma atividade importante.

Outro aspecto difícil de elucidar é a relação que os membros do ELN mantêm com o movimento político e social. O ELN é uma organização classificada como terrorista, pelo que é de se esperar que as pessoas com ligações ao grupo sejam perseguidas. Isso significa que no movimento social mantenham as distâncias. Mesmo que em alguns casos essa prevenção seja exagerada.

Nas áreas onde a organização armada tem presença histórica, existe apoio, de maneira mais naturalizada ou menos explícita, pois sem ele a guerrilha não poderia sobreviver. Mas fora desses territórios não é possível saber muito mais. Exceto nos momentos em que as instâncias formais de diálogo com o Estado facilitam a esta guerrilha encontros com diferentes atores sociais, o resto dos vasos comunicantes que eventualmente existam não pode ser conhecido ou verificado.

Uma vez desmontada a mesa de negociações em 2019, o ELN reduziu a sua presença na agenda política e social. Ficou fora do momento mais vigoroso desses diálogos, entre 2017 e 2018, quando foram promovidos espaços de participação nutridos por setores sociais, como a Mesa Social para a Paz.

Mesmo com a dificuldade de obter detalhes sobre uma organização clandestina na atualidade, as informações conhecidas mostram um ELN travando disputas territoriais com outros grupos armados - e, em menor escala, com as forças militares do Estado - e com uma relação incerta com o movimento social.

Que podemos esperar

O panorama permite diferenciar duas modalidades de ação armada entre as organizações que se assumem como guerrilheiras. Por um lado, um setor que reivindica uma história e uma mística associada às guerrilhas do passado, mas concentra a sua atividade principalmente no tráfico de drogas. É o caso das dissidências das FARC. Por outro lado, o ELN, que mantém a sua centralidade na luta armada, mas persiste no seu caráter político integral. As suas ações guiam-se por objetivos que a organização traça nos seus congressos para alguns anos e manifesta-se através de diversos meios de difusão.

Mas ambas as expressões armadas não podem abstrair-se da necessidade, seja por cumplicidade ou disputa, de construir um quadro de convivência com um fator de peso que paira constantemente no território colombiano: o negócio da droga.

Após quatro anos de gestão, o governo de Iván Duque despede-se com o aumento da atividade do narcotráfico e da violência estatal e paramilitar. De mãos dadas com os cartéis mexicanos, que há anos desembarcaram na Colômbia para assumir a gestão do negócio, otimizou-se a produção.

Agora obtém-se mais cloridrato de cocaína em menos hectares plantados com coca. Isso explica o maior poder dos grupos armados que se dedicam ao processamento e tráfico dessa droga. Para que isso aconteça, é fundamental a cumplicidade das forças armadas do Estado.

Militares, paramilitares e parapolíticos beneficiam do negócio e da guerra crónica que sangra o país. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos aproveitam a desculpa da "guerra contra as drogas" para prolongar a sua presença na Colômbia através de bases militares e ingerência doutrinária. Essa confluência de interesses facilita a presença de grupos armados de diversos tipos em pelo menos 420 municípios do país - 37% do território nacional - até ao momento, segundo um levantamento da Fundação Paz e Reconciliação.

A descrição mais completa do processo da droga ajuda a compreender a complexa realidade que envolve as guerrilhas. O negócio da produção e exportação de cocaína gera espirais de violência que ainda são sofridas por quem tenta ficar à margem. No leste, o ELN propõe-se impedir a penetração da atividade de drogas, em parte para cumprir o mandato histórico da organização e em parte porque prioriza a arrecadação de impostos sobre a atividade petrolífera e outras economias regionais.

No entanto, muitas vezes isso gerou fortes disputas com as dissidências das FARC, que procuram levar o narcotráfico para essa zona estratégica da fronteira com a Venezuela. Por um motivo ou outro, por ação de quem quer evitar o tráfico de drogas ou de quem quer promovê-lo, nos últimos meses a comunidade vem sofrendo massacres, atentados e execuções, com uma intensidade que lembra os piores tempos.

Ainda assim, os grupos armados cresceram nos últimos anos. Isso deve-se, por um lado, à conquista do território anteriormente ocupado pelos desmobilizados em 2016. Mas também ao facto de jovens de comunidades afetadas pela guerra verem uma possibilidade económica ou melhores condições de segurança se se incorporarem nas fileiras da guerrilha.

Mas o aumento do número de combatentes e a maior extensão territorial não tem necessariamente correlação em apoio político. A maior parte da sociedade colombiana não quer mais guerra: isso é visto claramente nos setores populares que sofreram violência durante décadas. É nessas regiões onde mais se mostra o apoio aos processos de paz ou, como aconteceu recentemente, com a candidatura presidencial de Petro e Márquez.

A revisão anterior permite-nos refletir sobre a importância das tentativas de negociação entre o Estado colombiano e as insurgências. No caso das antigas FARC, porque dessa forma essa organização optou por encerrar o seu ciclo histórico. No caso do ELN, porque nesses contextos de diálogo eles puderam legalizar por algum tempo as suas delegações de Paz para fazer política com maior liberdade e legitimar as suas propostas ideológicas perante uma parcela maior da sociedade.

Assim que foi eleito, Gustavo Petro reiterou o seu compromisso com a busca de uma solução política para o conflito armado por meio do diálogo. Acompanha-o nesta intenção a maioria social que o colocou na presidência e uma ampla variedade de líderes políticos, sociais, religiosos, defensores dos direitos humanos, que afirmaram compreender a história, as causas e as motivações das insurgências e propõem um diálogo baseado na boa-fé e na honestidade.

No entanto, a boa vontade não será suficiente. Por um lado, estão as forças bélicas de direita que, embora tenham perdido o governo, mantêm a sua influência nas forças armadas e nas ações paramilitares, e certamente boicotarão as tentativas de paz. Também será complexo abordar a questão das dissidências das FARC.

E também não será fácil negociar com o ELN, porque esta organização ainda não tomou a decisão de depor as armas. Porém, de todas estas variáveis, o diálogo com o ELN é certamente o que ordena o panorama. Algo como foi, no ciclo anterior de negociações, a preponderância que teve a busca de acordos com as FARC.

Até agora, as definições orgânicas do ELN habilitaram-nos para formar uma delegação para enfrentar os diálogos “exploratórios” (V Congresso, 2015) sem mandato para acordar a entrega de armas até que se resolvam os “problemas estruturais” do país. Assim abordaram as negociações com o governo de Juan Manuel Santos. Se persistir nessa literalidade, é de se supor que o ELN voltará às expectativas moderadas para um novo processo de negociações, já que o governo progressista não tem no seu horizonte imediato a solução dos problemas de fundo. Isso implicaria ter um programa anticapitalista que não está na imaginação de quem vai governar daqui para frente.

No entanto, há outro aspecto da posição histórica dessa guerrilha que poderia levá-la a rever essa condição. A proposta de participação da sociedade nos assuntos do país é uma constante na política do ELN. Nesta conjuntura, como poucas vezes na história da Colômbia, o povo está a participar. E está a fazer-se ouvir. Hoje, o grosso do movimento popular organizado, a esquerda política e uma ampla maioria social reclamam mudanças substanciais no regime político e no sistema económico. Essa exigência expressa-se através de táticas que procuram avanços graduais no quadro deste marco institucional.

O clamor social para banir a violência da luta política faz parte desses avanços. Isso implica derrotar a máquina de guerra estatal e paramilitar que expressam o uribismo e outros setores das classes dominantes. Nessa luta, o povo está a dar passos firmes por meio de desabafos, disputas pelo bom senso e também no plano eleitoral. Se o ELN escutar e interpretar positivamente esse clamor e valorizar as conquistas recentes, como a vitória eleitoral de Petro e Márquez, talvez possa concordar em negociar com base em propostas parciais de mudança e garantias reais. Desse modo, poderá entrar em sintonia com a maioria do movimento popular que está a avançar concretamente no caminho da luta política legal.

Em todo o caso, simplifica ao extremo quem afirma que o conflito interno terminará se as insurgências negociarem o seu desarmamento. O espelho do que aconteceu após o acordo com as FARC é claro: a perpetuação da violência é em grande parte responsabilidade das forças militares do Estado, dos seus sócios, os grupos paramilitares, e dos seus mandantes, as classes dominantes. Após a entrega de armas por parte das FARC, intensificou-se o assassinato de ex-combatentes desmobilizados e também de lideranças sociais. Para o ELN, esse não será um caminho que vale a pena seguir.

Mesmo com esses ecos violentos de décadas de guerra que tardarão a cessar, o povo colombiano está a deixar claro que, se puder expressar-se sem condicionamentos, é capaz de enfrentar um processo de mudança para uma verdadeira transformação sociedade.

o povo colombiano está a deixar claro que, se puder expressar-se sem condicionamentos, é capaz de enfrentar um processo de mudança para uma verdadeira transformação sociedade

O passado do país não ajuda, pois o conflito armado sempre foi um fator crónico e constitutivo da vida política. Mas essa realidade também está para ser transformada. A história não é um desígnio fatal: ela é feita e refeita pelos povos quando decidem mobilizar-se por justiça e liberdade.

E isso está a acontecer. Não por meio das formas que pensou a esquerda no século XX, é certo. Mas quem pode duvidar que, à sua maneira, com novas dinâmicas que é preciso saber entender e valorizar, o povo da Colômbia já está a mudar a história. É de esperar que seja capaz de continuar a fazê-lo sem que lhe custe milhares de assassinatos mais. As mudanças sociais e garantias de vida: esta fórmula simples pode dar sentido às novas propostas de paz.

Artigo de Pablo Solana, publicado em Jacobin da América Latina a 26 de junho de 2022. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

Notas:

1 Corregimiento na Colômbia é uma divisão territorial que não chega a ser um município. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Corregimento

2 “Casas de pique” na Colômbia são casas de tortura e mutilação.

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