Colômbia - As cinco teses incómodas da Comissão da Verdade sobre o conflito armado

A Comissão da Verdade mais do que desenterrar algo que o país não conhecia procurou fornecer um relato completo e complexo do que aconteceu no conflito armado. Chegou a conclusões que confirmam teses incómodas para o país. Por Santiago Rodríguez Álvarez

03 de agosto 2022 - 20:45
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Comissão da Verdade, ver composição em https://web.comisiondelaverdad.co/la-comision/los-y-las-comisionadas – Foto de La Silla Vacia
Comissão da Verdade, ver composição em https://web.comisiondelaverdad.co/la-comision/los-y-las-comisionadas – Foto de La Silla Vacia

Na Colômbia, o conflito armado tem sido contado pelos média, pela academia e pelas próprias vítimas. Por isso, a Comissão da Verdade mais do que desenterrar algo que o país não conhecia procurou fornecer um relato completo e complexo do que aconteceu no conflito armado. Como resultado, chegou a conclusões que incluiu no centro do seu relatório - o volume de Conclusões e Recomendações - que confirmam teses incómodas para o país sobre o conflito armado.

Estas são as cinco teses incómodas que o país precisa de conhecer, segundo a Comissão da Verdade:

1. O modelo de segurança do Estado gerou mais violência

Segundo o Relatório, os altos cargos do Estado tomaram decisões e os militares executaram ações sob a ideia de "inimigo interno", uma lógica de contra-insurgência e de defesa do Estado que produziu mais violência.

"O Estado caraterizou as propostas políticas alternativas e as comunidades ou os territórios ocupados pelas guerrilhas, como se fizessem parte da insurreição ou do conflito armado, e então considerou-as uma "ameaça" à segurança e rotulou-as frequentemente como "inimigos" que podem e devem ser perseguidos através dos poderes repressivos do Estado", lê-se no relatório.

Esta visão teve diferentes matizes, mas persistiu desde o Estatuto de Segurança do ex-presidente Julio César Turbay (1968 - 1972), até à política de segurança democrática durante os dois governos de Álvaro Uribe (2002 - 2010). Durante estes dois períodos, foram cometidas detenções arbitrárias, estigmatização e violações dos direitos humanos.

Para a Comissão, esta continuidade deve-se em parte à influência dos Estados Unidos na conceção da política de segurança. "Primeiro, a guerra contra o comunismo; segundo, a guerra contra as drogas; e terceiro, a guerra contra o terrorismo"

Para a Comissão, esta continuidade deve-se em parte à influência dos Estados Unidos na conceção da política de segurança. "Primeiro, a guerra contra o comunismo; segundo, a guerra contra as drogas; e terceiro, a guerra contra o terrorismo", diz.

Esta visão, por exemplo, acabou por conduzir a crimes graves, como os “falsos positivos”. "A pressão por baixas em combate aumentou nas Forças Armadas, o que encorajou a prática de crimes muito graves, tais como os chamados ‘falsos positivos’", diz a Comissão. Entre 2002 e 2008, houve 6.402 casos deste crime, segundo a Jurisdição Especial para a Paz.

Esta tese gerou controvérsia nos setores de direita. Por exemplo, o atual Ministro da Defesa, Diego Molano, pediu à Comissão que "não se concentrem apenas nas instituições, mas também nos verdadeiros perpetradores", tais como as FARC. Também provocou a saída do único comissário com formação militar, o major reformado Carlos Ospina.

2. O paramilitarismo foi um projeto com interesses políticos e económicos

Para a Comissão da Verdade, o paramilitarismo não foi, nem é, apenas um ator armado do conflito armado. É uma rede de interesses económicos e políticos que usaram a violência para atingir os seus fins.

"É uma rede de interesses e alianças associada a projetos económicos, sociais e políticos que conseguiu a imposição de controles territoriais armados, através do uso do terror e da violência", diz o relatório, em contraste com a visão do paramilitarismo como um fenómeno essencialmente armado.

Para a Comissão, o que o país tem conhecido visivelmente como paramilitarismo é apenas o seu "braço armado". "Tem sido a parte mais visível, o fenómeno paramilitar tem mantido a participação de componentes do Estado como as forças de segurança, entidades de segurança e inteligência, órgãos estatais colegiados", afirma o relatório.

Afirma também que o projeto paramilitar procurava defender o establishment e os seus privilégios económicos e políticos; proteger a apropriação de terras; consolidar o controlo territorial através do extermínio de grupos armados rivais e da imposição de formas violentas de controlo social; roubar dinheiro de contratos públicos; exterminar rivais políticos; cooptar instituições do Estado e o sistema político.

Os grupos armados paramilitares são responsáveis por 47% dos atos vitimizantes, mais do que as guerrilhas ou o Estado

Os grupos armados paramilitares são responsáveis por 47% dos atos vitimizantes, mais do que as guerrilhas ou o Estado. A maioria destes acontecimentos ocorreu entre o final dos anos 90 e o princípio dos anos 2000, quando os paramilitares estavam numa cruzada para serem reconhecidos como o terceiro ator no conflito, "a sangue e fogo contra a população civil", diz a Comissão.

O que aconteceu em Urabá é chave para compreender como se configurou o paramilitarismo, pois este modelo foi mais tarde exportado para o resto do país e deu origem às Autodefesas Unidas da Colômbia. Nesta região, a partir do modelo legal das Convivir1, foram forjadas alianças entre civis armados que prestavam "serviços de segurança", que mais tarde se converteriam em paramilitares, com empresários, ganadeiros e proprietários de terras.

"Parte do que resta por desmantelar são, precisamente, as redes profundas das alianças", diz a Comissão sobre os desafios que subsistem. Isto fica latente com o pouco que se conhece sobre o testemunho de "Otoniel"2, que falou de alianças do Clan del Golfo, um grupo de origem paramilitar que tem a sua retaguarda em Urabá, com civis e militares.

3. O narcotráfico prolongou o conflito e aumentou as tensões nas zonas rurais

Para a Comissão da Verdade, o narcotráfico tem sido um fator de persistência do conflito e talvez "o maior obstáculo ao progresso na construção da paz". Um fator que não tem estado desligado das desigualdades e dos problemas no campo que foram assinalados por académicos e peritos como uma das causas do conflito.

No relatório, afirma-se que o narcotráfico teve relação com todos os atores armados e contribuiu para a sua degradação.

Mas, em contraste com a narrativa do conflito como a luta de um Estado contra as "narcoguerrilhas", a Comissão afirma que "irrompeu no país como um ator político e económico, que se encaixou perfeitamente no sistema clientelista, com uma dupla articulação social: pelas elites, através do comércio da droga e da lavagem de dinheiro; e pelos setores populares, através das culturas e dos exércitos privados".

O tráfico de droga e os conflitos rurais alimentaram-se mutuamente. Por um lado, a expulsão de milhares de famílias camponesas da fronteira agrícola devido aos problemas rurais tem "gerado incentivos para a expansão do narcotráfico", lê-se no relatório. E depois, o narcotráfico, por sua vez, "teve na Colômbia um profundo impacto na estrutura da posse e do uso da terra".

Tudo isto leva a recomendar uma mudança na política proibicionista de drogas

Isto, somado, gerou estigmatização e violência nas comunidades ao longo da fronteira agrícola, onde se concentram as culturas ilícitas e existem disputas pela posse da terra. Por exemplo, a Comissão menciona o assassinato de civis em Puerto Leguízamo no meio de uma operação militar este ano.

Tudo isto leva a recomendar uma mudança na política proibicionista de drogas.

4. A democracia colombiana permitiu mais violência do que os regimes ditatoriais

"A democracia tem sido violenta", afirma a Comissão. "Tem-se desenvolvido mais a partir das trincheiras ideológicas que procuram a destruição física e moral do adversário, do que a partir do diálogo construtivo".

todos os atores armados (guerrilhas, paramilitares e Estado) degradaram o sistema político, ao misturá-lo com as armas

No relatório afirma-se que o conflito foi uma disputa pelo poder político nacional e local, o que afetou profundamente a democracia. E que todos os atores armados (guerrilhas, paramilitares e Estado) degradaram o sistema político, ao misturá-lo com as armas.

"A Colômbia não é uma ditadura e sempre houve lacunas e espaços para ampliar a democracia e impulsionar reformas de maneira pacífica", diz o relatório da Comissão. Mas também diz que tem sido uma democracia precária com números de crimes contra a humanidade que superam os das ditaduras de outros países da América Latina.

Segundo os números da Comissão, 121.768 pessoas desapareceram à força durante o conflito armado, entre 1985 e 2016. Isto é quatro vezes mais do que o número de pessoas que desapareceram durante a ditadura militar argentina entre 1976 e 1983.

Outro flagelo que ocorreu no meio da democracia colombiana em guerra foi a deslocação forçada, que deixou 7,7 milhões de vítimas. É como se todos os habitantes do Paraguai tivessem tido de emigrar.

5. As guerrilhas violentaram o povo que diziam defender

As guerrilhas sempre procuraram apoiar-se na população civil. Mas cometeram graves infrações ao Direito Internacional Humanitário (DIH) e relacionaram-se com os civis com "formas de controlo e ordens violentas baseadas na coação", diz a Comissão.

As insurgências de esquerda nasceram sob a ideia da combinação das formas de luta política e armada. Por isso, as guerrilhas combinaram a violência com a política e teceram redes de apoiantes civis com a sua aspiração de alcançar o que viam como uma sociedade mais justa. Isto acabou por estigmatizar setores da esquerda que não tinham necessariamente relação com as guerrilhas.

Além disso, procuraram estabelecer-se em territórios onde o Estado estava largamente ausente, a fim de se legitimarem como ator político e autoridade de facto. Nestas zonas de retaguarda, conviviam com as comunidades, contra as quais acabaram por cometer crimes graves.

Só a guerrilha das FARC cometeu 122.000 homicídios, 27% de todos os que foram cometidos durante o conflito. E sobretudo, incidiram no sequestro, que era uma política nacional desta guerrilha, pois segundo os números do Sistema Integral para a Paz, cometeram 40% dos sequestros, um total de 20.223 casos.

Entre eles não houve apenas sequestros de quem consideravam seus "inimigos", mas também da população que diziam defender. Nas recentes audições da JEP [Jurisdição Especial para a Paz], antigos membros do secretariado das FARC reconheceram que sequestraram, torturaram, violaram, escravizaram e fizeram desaparecer pessoas colombianas, apenas para assegurar o seu domínio territorial.

A Comissão constatou que o sequestro afetou profundamente a relação entre as guerrilhas e os civis, precisamente quando se estavam a degradar pelo seu envolvimento com o narcotráfico. "O poder do dinheiro e a proteção do negócio converteram-se em objetivos estratégicos com conflitos permanentes pela produção e, em geral, um endurecimento das relações com a população civil", afirma o relatório.

Artigo de Santiago Rodríguez Álvarez, jornalista, publicado em La Silla Vacía a 5 de julho de 2022. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

Notas:

1 Convivir, foram “cooperativas” de segurança, criadas em 1994 pelo presidente e o ministro da Defesa, decreto-lei 356 de 1994, ver https://es.wikipedia.org/wiki/Convivir_(cooperativas_de_vigilancia). O Tribunal Constitucional considerou a sua existência inconstitucional em 1997.

2 Otoniel, narcotraficante colombiano e líder do “Clã do Golfo”, extraditado para os EUA, em 6 de maio de 2022.

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