Cinema

Periferias: histórias de resistência que motivam reflexão

15 de agosto 2025 - 18:33

O Festival Periferias é uma iniciativa coletiva que promove cinema ao ar livre em localidades transfronteiriças luso-espanholas. Já na 13ª edição, o Festival Internacional de Cinema de Marvão e Valencia de Alcântara reforça a ligação cultural na região.

porPaulo Portugal

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Festival Periferias em La Fontañera.
Festival Periferias em La Fontañera. Foto de Montana Gama/Facebook do Festival.

Um ecrã escondido nas muralhas do castelo de Marvão, ou um outro plantado numa linha de comboio desativada, agora revestido de cadeiras para uma viagem de cinema ao ar livre. Em Beirã, uma povoação com menos de 500 pessoas. Mas também em Valência de Alcântara, numa praça testemunhada por mais de 700 pessoas. O motivo foi sempre o mesmo: ver o cinema que a 13ª edição do festival Periferias tem para mostrar.

Lá esta, o foco do Periferias reside precisamente na oferta às comunidades rurais, onde raramente há salas de cinema. Nesse sentido, o recurso a ruínas romanas, pontes medievais e estações antigas, promove uma experiência cultural única e acessível. A sua essência está na exibição de filmes de ficção e documentários que abordam temas de resistência, identidade.

A diretora Paula Duque refere que “o festival nasceu há mais de uma década, numa fronteira que nos une, promovendo a cultura como ferramenta de transformação social”. A responsável acrescenta que o Periferias foi criado com “um objetivo claro de defender o acesso à cultura nas zonas rurais da fronteira hispano-lusa”. Afinal de contas, uma missão de aproximação, de troca de experiências e de celebração de um cinema muitas vezes invisibilizado pelas grandes estruturas comerciais, mas que possui uma força e relevância incontestáveis na reflexão coletiva. Igualmente reforçada foi a reflexão que Paula Duque convidou a fazermos em cada sessão, sobre o atual genocídio a acontecer em Gaza, na Palestina.

Ao longo dos quatro dias em que acompanhámos o festival ficou clara a ideia de que o mundo rural – talvez mais correto seja elogiar a alternativa ao mundo urbano (ou suburbano) – se pode tornar deveras apelativo e, quem sabe até, provocador de mudanças de vida… Talvez seja mesmo este o elogio mais acertado ao Periferias.

Os filmes que vimos, com apresentação de Rui Tendinha, são exemplos de cinematografias que refletem a complexidade dos nossos tempos: seja a imigração, o envelhecimento, os direitos humanos ou o ambiente. Subimos ao Castelo de Marvão, para a sessão de inauguração, com a plateia a esgotar esta sala com vista para uma magnífica noite de luar, embora iluminada por uma projeção que deixa inveja a muitos multiplexes. Seguramente o espaço ideal para penetrar na curta-metragem brasileira Amazónia Vermelha, de Felipe Brêtas, a anteceder a O Último Azul, de Gabriel Mascaro, premiado ainda este ano no festival de Berlim, igualmente ambientado na Amazónia. A curta centra-se na natureza a assumir-se como personagem, em redor de uma floresta com problemas em respirar e a denunciar a sua destruição. Uma obra visualmente poderosa que nos transporta para um universo de beleza profunda e trágica.

Em O Último Azul, Mascaro prolonga o espaço. Há um lado arrebatador no poder da imagem e proposta narrativa que se assumem como veículos de meditação sobre o envelhecimento e o controle social no Brasil. A narrativa funciona como uma ode à resistência, calmamente observada pela protagonista, Teresa (uma interpretação brilhante de Denise Weinberg). Ela que se insurge contra o destino imposto de um asilo forçado. Com uma sensibilidade, que nos recorda Herzog na sua viagem pelo rio amazónico em Fitzcarraldo, Mascaro conduz-nos ao longo de uma jornada física e filosófica, tomando o leito do rio como espaço de narrativa embalada ao ritmo da música de Memo Guerra. Tereza é uma força da natureza que recusa a passividade, embarcando numa viagem de descoberta. Apesar de alguma cedência no desenlace final, o filme não abdica da metáfora da liberdade de escolha, mesmo numa sociedade preparada para nos limitar os movimentos.

De Marvão passamos para Beirã, onde uma estação de comboios desativada serviu de espaço ideal para receber a A História de Souleymane, o filme de Boris Lojkine que se revela como um potente retrato da imigração moderna. O protagonista, interpretado magistralmente por Abou Sangare, premiado em Cannes assume, com justiça, uma voz de emergência social. Ele é um imigrante ilegal que percorre Paris de bicicleta, numa rotina ‘uberizada’, na esperança de conquistar a sua permanência em França. O filme é uma denúncia, crua e honesta, de um sistema que tantas vezes trata estas pessoas como números, histórias a serem descartadas se não se encaixarem nos moldes burocráticos.

É vibrante a fotografia de Tristan Garland acompanhando a energia do protagonista desde as ruas iluminadas de Paris à sala de entrevista final onde a dignidade de Souleymane é posta à prova num retrato sobre a realidade de milhares de migrantes que chegam à União Europeia — como França, segundo dados recentes, a liderar em deportações forçadas — a convocar-nos a uma reflexão coletiva.

Ultrapassamos a fronteira de Valência de Alcântara para testemunhar, diante uma multidão de perto de 700 pessoas, uma outra história de resistência – no caso, El 47, de Marcel Barrena, evocando a vida de Manolo Vital, em particular o sequestro de um autocarro em Barcelona, em 1978, ainda hoje, símbolo da luta contra a repressão e pela Justiça. Apesar de ter estreado em Espanha há quase um ano, percebe-se o valor social que esta ação de desobediência civil tem na comunidade da Extremadura, de onde Vital é originário. El 47, que conquistou cinco Goyas, incluindo o de Melhor Filme, ilustra de forma convincente como as ações coletivas podem ser catalisadoras de mudanças sociais profundas, evidenciando o poder da resistência local na busca pelo bem comum. El 47 é um filme que celebra a coragem e a determinação de uma comunidade.

Paulo Portugal
Sobre o/a autor(a)

Paulo Portugal

Jornalista de cultura e cinema, autor do site insider.pt
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