Desde a criação dos três cartazes “This Is Our Memorial” em honra das vítimas de abuso sexual em criança na ICAR durante as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) que temos estado em contacto com associações de apoio à vítima, nomeadamente a Coração Silenciado, primeira associação de vítimas de abuso na ICAR, com quem temos colaborado e que nos têm informado de cada passo neste processo moroso e escandaloso.
Os abusos e o silêncio
Devemos todos ouvir o que estas pessoas passaram em criança durante anos e que a Igreja Católica Portuguesa (ICAR) abafou. Basta ver por exemplo o comportamento de D. Manuel Clemente perante uma denúncia em 1999. O padre agressor foi mantido em funções e não foi denunciado às autoridades. Para além de abusos sexuais, houve abusos físicos e muitas destas crianças foram exploradas, como se pode ver na Grande Reportagem da SIC, a 26 de setembro de 2024.
O testemunho à “Dar Voz ao Silêncio”
Após insistência do Papa Francisco e pressão social e política, finalmente a ICAR lançou a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI), com testemunhos recolhidos desde 11 de janeiro de 2022. A 13 de fevereiro de 2023 saiu o relatório final. As vítimas de abusos sexuais da ICAR que contactaram a CI, desenterraram os seus traumas mais profundos, trouxeram toda a dor para, tal como era o mote da iniciativa, “Dar Voz ao Silêncio”. Foram no total 512 testemunhos reunidos e verificados por Pedro Strecht, Álvaro Laborinho Lúcio, Ana Nunes de Almeida, Catarina Vasconcelos, Daniel Sampaio e Filipa Tavares. Estes testemunhos permitiram fazer uma estimativa de cerca de 4815 vítimas de 1950 a 2022.
O Grupo Vita
Depois da ex-CI ter finalizado o trabalho a que se tinha proposto com o relatório final em fevereiro de 2023, a ICAR criou o Grupo Vita, que se foca no “processo de escuta e acompanhamento das vítimas”, que de forma não anónima procuram ajuda e têm apoio psicológico e psiquiátrico.
Este grupo, contratado pela ICAR, apenas tem 111 dessas 512 vítimas, sendo que algumas preferiram recorrer a outras associações, outras preferiram voltar ao silêncio, talvez por se quererem manter anónimas e/ou devido ao envolvimento da ICAR neste grupo.
O Grupo Vita também colabora na elaboração do regulamento para as compensações financeiras e fez ações de formação e prevenção na Igreja e na sociedade civil. Na realidade há casos recentes de vítimas de abusos da Igreja, basta consultar o relatório da ex-CI para verificar que há vítimas nascidas em 2011, 2013 e 2016, a prevenção é o mínimo perante todo este cenário de abusos da ICAR e não chega, é necessário que a postura da igreja seja mais assertiva quando há denuncias de agressores.
A destruição dos dados pessoais das vítimas
Em março de 2024, os dados pessoais constantes no relatório da CI foram destruídos, para cumprir com regras da UE de “proteção de dados” (Regulamento 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados). Apesar de ser uma medida prevista desde o início da ex-CI, com a destruição dos dados todas estas vítimas têm de voltar a relatar os abusos que sofreram perante o Grupo Vita e Comissões Diocesanas ou Institutos Religiosos e Sociedades de Vida Apostólica para terem acesso à devida compensação financeira.
O Grupo Vita descredibiliza o trabalho da ex-CI
Rute Agulhas, psicóloga e coordenadora do Grupo Vita, escreveu um artigo de opinião no Expresso em que lançava dúvidas sobre o trabalho da ex-CI e a veracidade dos testemunhos das vítimas. Afirma que “a revitimização é para evitar sempre que possível”, refere que se depararam com dados eliminados e a “dificuldade em perceber o processo de validação efetuado pela ex-Comissão Independente”. Duvida da validação da ex-Comissão Independente porque foram preenchidos 563 inquéritos de forma anónima. Desses foram excluídos 51 e validados 512. Coloca em causa esta validação porque apenas houve 34 entrevistas.
Como já foi referido, em 512 vítimas apenas 111 contactaram o Grupo Vita, expuseram-se e identificaram-se perante um Grupo contratado pela ICAR, que apenas aceita testemunhos não anónimos, que colabora com esta instituição e põe em causa o trabalho de diversos profissionais independentes. Infelizmente há muita vergonha associada ao abuso sexual e muitas vítimas não querem que as suas famílias saibam o que lhes aconteceu. Pode ser esse o motivo de haver esta diferença tão grande nos contactos de vítimas à ex-CI vs ao Grupo Vita.
O direito de resposta da CI
Perante as acusações de Rute Agulhas, a ex-CI “Dar Voz ao Silêncio” usou o seu direito de resposta:
- Que garantia um total anonimato das vítimas, a base de dados era da responsabilidade exclusiva da ex-CI, e jamais poderia ser cedida a uma entidade externa;
- É referida a necessidade de proteção de dados de acordo com normas regulamentadas pela União Europeia;
- Que o relatório final foi entregue a D. José Ornelas, Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, com os testemunhos anónimos e está disponível para consulta no Arquivo Português de Informação Social;
- Que houve casos em que as próprias vítimas pediram para que os seus testemunhos à ex-CI fossem cedidos ao Grupo Vita;
- Que “a necessidade de resposta dos membros da ex-CI a essas mesmas afirmações surge inequivocamente perante o que estas pressupõem sobre testemunhos de vítimas, como se estas pessoas não tivessem, afinal, existido na realidade, simplesmente tivessem manipulado questionários ou dados com falsas afirmações ou ainda que não se tivesse seguido um complexo trabalho de validação e trabalho estatístico dos dados recolhidos no Estudo“;
- Que “sentiram pela primeira vez os membros da ex-CI a necessidade pública de repor a verdade dos factos, salvaguardando assim, e acima de tudo, o bom nome e a integridade moral e ética de tantas pessoas que ousaram “dar voz ao silêncio”, testemunhando os episódios traumáticos que viveram na infância e adolescência enquanto vítimas de abusos sexuais por membros da Igreja Católica Portuguesa e cujo impacto, como também se torna explícito no referido relatório, marcou para sempre e de forma negativa a sua vida individual, familiar, profissional e social.”
- Que”agora, e no futuro, continue a existir o máximo respeito por essas pessoas, pelo seu sofrimento e ainda que junto de cada uma delas seja feita a reparação necessária por parte da Igreja Católica Portuguesa.”
O “regulamento de compensações financeiras”
Em março de 2023, depois do rebuliço gerado pelo relatório final da ex-CI, o ex-Cardeal Patriarca de Lisboa D. Manuel Clemente dizia o seguinte: “se nós tivermos factos e factos comprovados e sujeitos a contraditório, nós estamos num país de direito e de leis. Só pode ser feita pela Santa Sé, não é uma coisa que o Bispo possa fazer por si.” Quando questionado sobre as indemnizações: “até acho isso um bocadinho, desculpe-me a expressão, insultuoso para as vítimas até porque a realidade das vítimas, de nenhuma delas é a indemnização”. A prova que a ICAR continua a pensar da mesma forma que D. Clemente relativamente a este processo foi comprovado em julho de 2024 com a divulgação dos critérios e o regulamento para as compensações financeiras:
É referida a produção de prova em algumas destas etapas, tendo estes casos ocorrido há muitos anos que provas esperam ter para validar estes testemunhos? Se for necessária prova serão muito poucas as vítimas a obter a devida compensação, para que serviram todos os passos anteriores? Tendo em conta que tivemos 512 testemunhos que foram reduzidos para 111 a procurar o Grupo Vita e apenas 44 a pedir indemnização até setembro de 2024, prevê-se que seja um número muito reduzido de vítimas a receber compensação financeira.
Só nas JMJ a ICAR lucrou 31 milhões de euros. Não será certamente por falta de verbas que não são dadas as indemnizações devidas. É só vontade de meter areia na engrenagem, desvalorizar o sofrimento das vítimas, dificultar todo o processo.
E, cereja no topo do bolo, vai haver uma avaliação dos danos em vez de um modelo one size fits all, como se o trauma de um abuso sexual fosse comparável a um dano material, como se estivessem seguradoras a avaliar um carro após um acidente ou uma casa após um fogo doméstico. Os valores das indemnizações serão diferentes consoante o trauma. Estamos a falar de questões extremamente sensíveis e é impossível contabilizar um trauma em detrimento de outro. Todos são diferentes e as emoções não são quantificáveis. Isto quer dizer que em breve em Portugal a vítima X poderá receber mais dinheiro que a vítima Y e isto implica mais uma vez sentimentos de injustiça, para além de criar conflitos nesta comunidade. Na Suíça todas as vítimas receberam 25 mil francos suíços independentemente dos abusos que sofreram. E todos os anos organizam um almoço de convívio, sem olhar com inveja para a pessoa do lado por ter recebido mais dinheiro e o seu trauma ser avaliado como mais danoso.
Revitimizar e colocar comissões e vítimas em guerra
A ICAR parece querer revitimizar vezes sem conta de forma a que as vítimas desistam, fiquem derrotadas pelo cansaço e não recebam o mínimo dos mínimos, uma compensação financeira que jamais lhes tirará o trauma mas que pode ajudar em despesas de gastos em psiquiatria e psicologia que tiveram desde criança.
Grupo Vita contra Comissão Independente, vítimas contra vítimas, no final quem ganha é a ICAR que coloca todos contra todos fazendo com que as vítimas desistam e não queiram receber o que lhes é devido. Muito pouco católico.
Voltando ao Grupo Vita, foram eles que agilizaram a visita ao Papa, numa visita em que recebeu as vítimas portuguesas em agosto de 2024, sessão onde estiveram presentes 13 vítimas que contaram e ouviram os testemunhos havendo momentos de imenso sofrimento e angústia, colocando numa situação de privilégio as vítimas colaborantes com o Grupo Vita relativamente a outras vítimas. E o Grupo Vita exclui vítimas do processo devido a interferências e opiniões externas, basta ver a Grande Reportagem da SIC do jornalista Pedro Coelho. É o caso de Olinda Soares, o seu testemunho foi desconsiderado e foi removida das compensações financeiras.
Foi com um grande sentimento de revolta que criámos os cartazes “This is Our Memorial”, que gerou uma onda de solidariedade de cerca de 300 pessoas e foi uma forma de dar visibilidade às vítimas num evento mundial da ICAR. À semelhança deste memorial, que seja gerada uma nova onda de apoio às vítimas, que não nos calemos, que não permitamos esta revitimização constante. Porque não esquecemos.
O único memorial possível dos abusos sexuais por parte da ICAR era respeitar as vítimas e nem isso estão a ser capazes de fazer.
Apoio a vítimas
Se foi vítima de abusos sexuais da ICAR pode encontrar aqui contactos de várias associações que lhe podem dar apoio de forma anónima.
Artigo e infografias de Telma Tavares para esquerda.net